
O ORÁCULO
Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má
fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.
Leonardo
(era o nome dele) começara por ser mestre de meninos, mas tão mal se houve que
no fim de um ano perdera o pouco que possuía e achou-se reduzido a três alunos.
Tentou
depois um emprego público, arranjou as cartas de empenho necessárias, chegou mesmo
a dar um voto contra as suas convicções, mas quando tudo lhe sorria, o
ministério, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da véspera e
pediu demissão. Subiu um ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se
tornado suspeito ao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.
Auxiliado
por um amigo da família, abriu uma casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a
velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nosso
negociante levantou as mãos para o céu quando os credores concordaram em
receber uma certa quantia inferior ao débito, isto em tempo indeterminado.
Dotado de
alguma inteligência e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundou uma
gazeta literária; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem
pagar a impressão, deram à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de
cinco meses.
Entretanto,
subiu de novo o partido a que ele sacrificara a sua consciência e pelo qual
sofrera os ódios de outro. Leonardo foi a ele e lembrou-lhe o direito que tinha
à sua gratidão; mas a gratidão não é a bossa principal dos partidos, e Leonardo
teve de ver-se preterido por algumas influências eleitorais de quem os novos homens dependiam.
Nesta
sucessão de contratempos e azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na
Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos, ele
preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havia
lido, não me lembra aonde: “A fortuna é como as mulheres, vence-a a tenacidade”.
Preparava-se,
pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagem ao norte,
quando viu pela primeira vez Cecília B..., filha do negociante Atanásio B...
Os dotes
desta moça consistiam nisto: um rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos de
Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era um
oficial de marinha de nome Henrique
Paes. O pai opôs-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que
Cecília não amava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no
dia seguinte tão fresca e alegre como se lhe não houvesse empalmado um noivo.

Dizer que
Leonardo se apaixonou por Cecília é mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos;
mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de fazer alguma
impressão em Leonardo.
O que
causou profunda impressão no ânimo do nosso mal-aventurado e conquistou desde
logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote.
Leonardo não hesitou em abençoar o mau destino que tanto o perseguira para
atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela ordem.
Que
impressão produziu Leonardo no pai de Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto
à menina, recebeu-o indiferente. Leonardo confiou em que venceria a indiferença
da filha, visto que já possuía a simpatia do pai.
Em todo o
caso desfez a viagem.
A simpatia
de Atanásio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado
Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.
Dentro de
pouco tempo era ele um íntimo da casa.
Um dia
Atanásio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:
— Tem
sabido corresponder à minha estima. Vejo que é um bom moço, e segundo me disse
tem sido infeliz.
— É
verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de júbilo que lhe assomou
aos lábios.
— Pois
bem, depois de estudá-lo tenho resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.
— Ah!
— Espere.
Já o é pela estima, quero que o seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu estabelecimento.
Leonardo
ficou um pouco enfiado; esperava que o próprio velho fosse oferecer-lhe a
filha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois refletiu; um emprego era
aquilo que depois de tanto cuidado vinha encontrar; não era pouco; e daí podia
ser que lhe resultasse mais tarde o casamento.
Assim,
respondeu beijando as mãos do velho:
— Oh!
obrigado!
— Aceita,
não?
— Oh! sem
dúvida!
O velho ia
levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.
— Mas
escute...
— O que é?
— Não
quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que não posso deixar de
ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma
condição. Amo D. Cecília com todas as forças
de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o
coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família,
como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está
acima das forças humanas.
condição. Amo D. Cecília com todas as forças
de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o
coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família,
como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está
acima das forças humanas.
Em honra
da perspicácia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em Atanásio
uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.
Não se
enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:
— Oh! se
eu não desejo outra coisa!
— Meu pai!
exclamou Leonardo abraçando o pai de Cecília.
O quadro
tornou-se comovente.
— De há
muito, disse Atanásio, que eu noto a impressão produzida por Cecília e pedia no
meu íntimo que uma tão feliz união se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina
sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou
esperemos?
— Como
queira...
— Ou
antes, seja franco; possui o amor de Cecília?
— Não
posso dar uma resposta positiva. Creio que não lhe sou indiferente.
— Eu me
incumbo de investigar o que há. Demais, a minha vontade há de entrar por muito
neste negócio; ela é obediente...
— Oh! forçada,
não!
— Qual
forçada! É sisuda e há de ver que lhe convém um marido inteligente e laborioso...
—
Obrigado!
Separaram-se
os dois.
No dia
seguinte devia Atanásio instalar o seu novo empregado.
Nessa
mesma noite, porém, o velho tocou no assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha
vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com
um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da
parte de Leonardo.
Cecília
recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse que ia
consultar o oráculo.
O velho
não deixou de admirar-se com esta consulta de oráculo e interrogou a filha
sobre a significação das suas palavras.
— É muito
simples, disse ela, vou consultar o oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa sem
consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de consultá-lo.
Farei o que ele mandar.
— É
esquisito! mas que oráculo é esse?
— É
segredo.
— Mas
posso dar esperanças ao rapaz?
—
Conforme; depende do oráculo.
— Ora, tu
estás caçoando comigo...
— Não, meu
pai, não.
Era
necessário conformar-se à vontade de Cecília, não porque realmente fosse imperiosa,
mas porque no modo e no sorriso com que a moça falou o pai descobriu que ela
aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por espírito de casquelhice.
Quando
Leonardo soube da resposta de Cecília não deixou de ficar um tanto atrapalhado.
Mas Atanásio tranqüilizou-o comunicando ao pretendente as suas impressões.
No dia
seguinte é que Cecília devia dar a resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio
estava decidida; no caso de ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele
persistiria em obrigar a filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o
casamento.
Ora, no
dia aprazado apresentaram-se em casa de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da
casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis
casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas
sobrinhas, não.
— A que
lhes devo esta visita?
— Vimos
pedir-lhe desculpa do nosso erro.
— Ah!
— Tinha
razão, meu tio; e, demais, parece que há um novo pretendente.
— Como
souberam?
Cecília
mandou-nos dizer.
— Vêm
então opor-se?
— Não;
apoiar.
— Ora,
graças a Deus!
— Nosso
desejo é que Cecília se case, com este ou com aquele; é todo o segredo da nossa
intervenção em favor do outro.
Feita
assim a reconciliação, Atanásio participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta
de Cecília. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a
resposta do oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram
esperar a resposta dele.
— Se for
contrária, apoiar-me-ão?
— Decerto,
responderam as duas sobrinhas.

Os maridos
destas chegaram pouco depois.
Enfim
apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as
respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com
seu uso.
Durante
todo o tempo em que as duas moças, os maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto
consultando, dizia ela, o oráculo.
A conversa
versou a respeito do assunto que reunia a todos.
Enfim, seriam
oito horas da noite quando Cecília apareceu na sala.
Todos
foram a ela.
Depois de
feitos os primeiros cumprimentos, Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou
à filha:
— Então?
que disse o oráculo?
— Ah! meu
pai! o oráculo disse que não!
— Então o
oráculo, continuou Atanásio, é contrário ao teu casamento com o sr. Leonardo?
— É
verdade.
— Pois
sinto dizer que sou de opinião contrária ao sr. oráculo, e como a minha pessoa
é conhecida enquanto a do sr. oráculo é inteiramente misteriosa, há de fazer-se
o que eu quiser, mesmo apesar do sr. oráculo.
— Ah! não!
— Como,
não? Queria ver isso! Se eu aceitei essa idéia de consultar bruxarias foi para
brincar. Nunca me passou pela cabeça ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião.
E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas... Meus senhores,
vamos descobrir o tal oráculo.
A este
tempo apareceu um vulto na porta e disse:
— Não
precisa!
Todos
voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala. Tinha
um papel na mão.
Era o
oficial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca.
— Que faz
aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.
— Que
faço? Sou o oráculo.
— Não
aturo caçoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar?
Henrique
Paes por única resposta deu a Atanásio o papel que trazia na mão.
— Que é
isto?
— É a
resposta à sua pergunta.
Atanásio
chegou-se para a luz, tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o
papel.
Durante
este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.
Quando o
velho chegou ao meio do escrito que tinha na mão, voltou-se para Henrique e
disse com o maior grau de assombro:
— O senhor
é meu genro!
— Com
todos os sacramentos da igreja. Não leu?
— E se
isto for falso!
— Alto lá,
acudiu um dos sobrinhos, nós fomos os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas
do casamento de nossa prima D. Cecília B... com o sr. Henrique Paes, o qual se
efetuou há um mês no oratório de minha casa.
— Ah!
disse o velho caindo numa cadeira.
— Mais
esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto.
Epílogo
Se perdeu
a noiva, e tão ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao
velho que faria um esforço, mas que ficava para corresponder à estima que o
velho lhe tributava.
Mas estava
escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.
Daí a
quinze dias Atanásio foi acometido de uma congestão de que morreu.
O
testamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo.
Quanto à
casa, teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importância de quinze dias de
trabalho.
O
mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia de
Icaraí.
Henrique e
Cecília vivem como Deus com os anjos.
---
Nota:
Textofonte:
Publicado originalmente emJornal das Famílias, 1866. Disponível
digitalmente no site: Domínio Público
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