
O PAI
O pai vivia de hortelão; a filha
vivia da costura; ambos viviam de uma esperança
no futuro e de uma reparação do passado.
Tinha
cinqüenta anos o pai. Os cabelos brancos caíam-lhe em flocos da cabeça como uma cascata e davam realce ao rosto
severo, enérgico, mas ao mesmo tempo cheio de uma dor profunda e resignada. Os
anos o tinham curvado um pouco; mas era esse o único vestígio do tempo. Os
cabelos brancos e algumas rugas da cara
tinham-lhe aparecido em poucos dias, não gradualmente, por uma transformação
rápida, como se ali passasse um vento maldito e destruidor.
Os olhos
profundos, serenos, perscrutadores, pousavam em alguém como se foram os olhos
da consciência; e ninguém os sofria por muito tempo, tal era a magia deles.
Tinha a
franqueza, sem ter a intimidade; não oferecia a casa a ninguém nem ia à casa
alheia em ocasião alguma. Tinha fé nos homens, mas não a fé da credulidade
cega; era uma fé que examinava, perscrutava, esmerilhava, não se fiava nas
aparências, não se deixava fascinar pelos primeiros aspectos; quando acreditava
em um homem tinha-lhe analisado o coração.
E, ainda
assim, ninguém poderia contar a glória de lhe haver atravessado a soleira da
porta. Dali para dentro não era já o mundo; era um lugar de penitência e de
trabalho, onde nenhum olhar estranho podia penetrar; e, se nem o olhar, muito
menos o pé.
Duas
criaturas únicas viviam ali, naquele ermo, contentes uma da outra, vivendo uma
pela outra, aliadas ambas no serviço de um juramento de honra, de um dever de
consciência: o pai e a filha.
A filha
estava no verdor dos anos; vinte contava; vinte flores a julgar pela beleza e pela graça que a distinguiam; vinte lágrimas
a julgar pela tristeza e pela resignação que de toda a sua figura ressumbrava.
Triste e
resignada, como era, tinha no rosto impressa a consciência de uma missão que
desempenhava; a coragem de um dever que cumpria. O trabalho ainda não pudera
murchar a flor da beleza nem diminuir-lhe a exuberância da vida; mas via-se que
o olhar dela reproduzia um cuidado exclusivo, e que, nesse cuidado, deixava
correr os dias sem se lhe dar nem da vida nem da beleza.
Por quê?
Esta
pergunta de natural curiosidade e legítima admiração era a que sempre fazia um
poeta, não um poeta moço, mas um poeta velho, um poeta de cinqüenta anos,
vizinho daquela família singular.
Não menos
que aos outros, fizera impressão ao poeta aquela existência solitária, silenciosa,
próxima talvez de Deus, mas com certeza arredada do mundo.

O poeta
não era menos solitário que os dois, e para isso era poeta velho; isto é, tinha
o direito de conversar com o mundo de Deus como poeta, e tinha o dever de
conversar o menos possível com o mundo dos homens, como velho. Na idade a que
chegara pôde conservar o viço da impressão e o desgosto das coisas mundanas;
fora um dos enteados da glória, não encontrando para os auspícios de sua musa
mais do que um eco vão e negativo. Isolou-se, em vez de falar no mundo com a
língua que Deus lhe dera, voltou-se para Deus, para dizer, como Davi: “Andei
errante como ovelha que se desgarrou: busca o teu servo, porque me não esqueci
dos teus mandamentos”.
Tinha dois
livros: a Bíblia e Tasso; dois amigos: um criado e um cão. O criado chamava-se
Elói; Diógenes chamava-se o cão, que era a terceira pessoa daquela trindade solitária.
Muito
tempo, meses, anos, viveram estas duas famílias, metidas no seu isolamento, sem
se conhecerem, sem se falarem, vizinhas uma de outra, ambas parecendo tão
próprias para formar uma só.
O hortelão
saía poucas vezes; trabalhava desde a alva até o ocaso, ao lado da filha, que igualmente trabalhava nas suas
obras de costura. Quando acontecia sair o pai, a casa, se era silenciosa,
tomava aspecto tumular, e então nem um som saía dali de dentro.
Ora, um
dia em que todos estavam em casa, aconteceu andar o poeta e mais o cão a
passear no jardim que confinava com a chacarinha do hortelão.
O poeta ia
cismando, mais ermo de si do que nunca, quando deu por falta do cão; Diógenes
tinha passado para a horta do hortelão atraído não sei por quê; o poeta chamou
por ele, aproximou-se da pequena cerca e viu o vizinho ocupado em amimar
Diógenes.
— Ah!
O hortelão
voltou-se e deu com o poeta.
— Tinha
saltado para cá...
— É um
travesso. Fez-lhe mal às plantações?
— Oh! não!
—
Diógenes!
O cão
saltou a cerca e foi fazer festas ao dono. O poeta e o hortelão cumprimentaram-se e nada mais se passou
naquele dia entre ambos.
Tal foi o
primeiro encontro entre os dois vizinhos.
Mas este
encontro trouxe outros, e a conformidade da vida e dos sentimentos dos dois
velhos completou uma intimidade que dentro de pouco tempo se tornou perfeita.
Era o
primeiro a quem o velho hortelão tinha aberto completamente a sua alma e a sua
vida. Ainda assim, só o fez depois que uma longa observação trouxe-lhe em
resultado o conhecimento da existência retirada do poeta.
Só tarde
soube este que o vizinho tinha uma filha, uma linda e infeliz filha, no dizer
do próprio pai. Isto equivale a dizer que, apesar da mesma vitória alcançada
pelo poeta no espírito do hortelão, ainda não tinha conseguido transpor a
soleira da casa deste.

Assim era.
As conversas dos dois velhos, nas horas vagas, eram em casa do poeta, sendo o
operário o mais solicitado para essas práticas mansas e íntimas.
É
necessário, para comodidade da narração, dar a cada um dos personagens desta
história um nome. Será o do poeta: Davi; o do hortelão: Vicente; o da filha deste:
Emília.
Davi,
portanto, convidava Vicente muitas vezes para ir matar com ele algumas horas
aborrecidas depois do trabalho. Vicente acedia a esses desejos, ao princípio por
simpatia e conformidade da existência e idade, depois por ver a conformidade dos
sentimentos e do profundo desgosto que ambos pareciam ter, finalmente por motivo
de uma verdadeira e profunda amizade.
Ora, uma
tarde, em que ambos se achavam juntos, o poeta Davi dirigiu a Vicente estas
palavras:
— Meu
amigo, quero merecer de ti uma prova de confiança.
— Qual?
— Não
cuide que a sua existência, tão separada do mundo como a minha, deixe de me ter
feito impressão. Já lhe disse em poucas palavras como, tendo perdido as minhas
ilusões literárias, e, o que valia mais, tendo perdido um anjo que Deus me
deparou por mulher, vim viver, neste cantinho, disposto a não pedir nem dar nada
aos homens. Se alguma coisa me ficou ainda por contar, é esta da natureza daquelas
que a memória e o coração nem procuram conservar. Dessas não peço que me
contes, se as tens; mas daquilo que é lícito saber, declaro que teria desejo de
que me comunicasses, na plena confiança do coração. És capaz?
— Oh! não
vale a pena.
— Não é
possível; alguma coisa há na tua vida que merece a atenção de quem sabe olhar
para estas coisas...
—
Afirmo-lhe que...
— É
escusado negar. E por que negar? Se não tens confiança, dize logo. É melhor entre velhos. Entre velhos! Se há alguma
ocasião em que duas almas puras devem comunicar as desilusões do passado e as
crenças do futuro... o futuro de além-túmulo, é agora; é quando, chegados ao
cume da montanha, deitamos um último
olhar para o caminho que subimos e fixamos tranqüilamente o abismo que vamos
caminhar mais rapidamente.
— Pois
sim: essa confiança de que falas, não te nego que sinto por ti. É verdade. O
que te vou contar ainda ninguém o ouviu de minha boca. És a primeira pessoa. Quero
até que a tua aprovação, se eu a tiver, seja uma animação para o que ainda
tenho de lutar.
— Lutar?
— É
verdade. E muito. Mas não antecipemos nada. Hoje não pode ser.
— Quando?
— Domingo.
— Que dia
é hoje?
—
Sexta-feira.

— Pois
bem; domingo.
— Sem
falta. É dia livre.
Separaram-se
os dois.
No
domingo, com efeito, reuniram-se os dois amigos em casa de Davi, e Vicente contou
ao poeta as circunstâncias da situação e os episódios que o levaram a ela.
Esses
episódios e essas circunstâncias podem resumir-se do seguinte modo: Quatro anos
antes viviam em outra parte Vicente e a filha, felizes, contentes, esperançosos; ela com os seus dezesseis anos;
ele com o emprego público que lhe dava para manter a casa, e no qual esperava
uma favorável aposentadoria. Viviam
muito menos solitários do que hoje; então tinham amizades em grande número,
faziam e recebiam visitas, entravam como podiam no movimento e na vida. O que
Vicente previa era o casamento de Emília. Emília era bonita e requestada;
estava nos seus dezesseis anos; Vicente, como pôde, quis encaminhar o espírito da filha de modo tal que
nem lhe sugerisse ambições desmarcadas nem desarrazoadas pretensões.
Entre os
que freqüentavam a casa de Vicente, havia um rapaz de nome Valentim, cujo
coração estava em perfeita harmonia com uma fisionomia meiga e suave. Foi ao
menos essa a primeira impressão de Vicente e de Emília. Quem era Valentim?
Ninguém o soube nunca. O que ele dizia é que morava em casa de um parente. Mas
quem fosse esse parente sempre foi para todos um mistério.
As
previsões de Vicente realizaram-se; Emília não pôde ver Valentim sem amá-lo, não
com amor das loureiras, mas o amor dos corações feitos para amar, isto é, aspirar
as glórias e os gozos infinitos.
Imagine-se
o que seria este amor nascido em um coração virgem, novo, ardente, inspirado
por um rapaz belo, insinuante e apaixonado; um amor que parecia ter conduzido
de extremos opostos aquelas duas criaturas para ligá-las em um sentimento
único, exclusivo, absoluto.
Desde os
primeiros dias o amor de Valentim e Emília não pôde ser um segredo para
Vicente, tal foi a violência com que duas almas se arrojaram uma para a outra.
Vicente
era homem prudente; sem contrariar os sentimentos da filha, quis ver até onde
Valentim merecia o presente que a sorte lhe deparara.
Das
investigações resultou para o espírito de Vicente o mais completo assentimento
à união dos dois namorados.
Resolvido
a isso, entendeu que mostrar-se ignorante por mais tempo era prolongar uma
situação esquecida para os dois e um cuidado para o seu espírito de pai.
Dizer
francamente a Emília que ele sabia dos sentimentos que a ligavam a Valentim,
era, ao parecer do pai, encaminhar para os dois corações o complemento da
felicidade sem hesitações nem mortificações íntimas.
Pensando
assim, Vicente foi diretamente à filha e disse-lhe:
— Emília,
nunca pensaste no casamento?
— Eu, meu
pai?

— Sim, tu.
— Que
pergunta, meu pai!
— É uma
pergunta. Responde.
— Nunca!
— Ora,
para que dizes isso assim abaixando os olhos e ficando com as faces vermelhas?
Anda lá, minha filha, tu já pensaste no casamento...
— Meu pai
quer que eu lhe fale a verdade?
— Nunca se
mente a um pai.
— Pois
sim; já pensei no casamento.
— Ah... E...
— E?...
— E
pensaste que eu mais dia menos dia havia de bater a bota e que tu ficavas sozinha
no mundo.
— Oh! meu
pai...
— Em tal
caso, era preciso que o marido substituísse o pai... Ora, para substituir um
pai como eu, é preciso um marido como eu fui... Que te disse teu coração?
— Não
consultei...
— Não? É
mentira...
— Disse...
—
Valentim?
— É
verdade, meu pai.
— Pois
bem... Acho que fazes boa escolha. É um bom moço, ativo e que parece gostar de
ti com extremo. O segredo nestas coisas seria agora uma hipocrisia sem nome.
Melhor é que sejamos francos. Tu o amas e fazes bem. Se Valentim hesita em pedir-te em casamento, não o deixes
nessa hesitação...
— Oh!
obrigada, meu pai.
E Emília,
deitando a cabeça no seio de Vicente, deixava correr pelas faces lágrimas de
contentamento.
Na
primeira ocasião em que Emília se encontrou a sós com Valentim disse-lhe que
tinha razões para crer que seu pai não aceitaria mal uma proposta de casamento.
Valentim
pareceu morrer de alegria com a notícia.
Todavia, passaram-se
dois, três, cinco, dez dias, sem que Valentim dissesse nada nem a Emília nem a
Vicente.
Emília
insistiu.

— Creio
que você não me ama, disse ela ao rapaz.
— Por quê,
meu coração?
— Porque
nem falou ainda a meu pai... Olhe, estou certa de que ele não aceitará mal o
pedido...
— Concluis
disto que te não amo?
— Pois
então?
— Escuta,
Emília, disse Valentim, quero proceder como cavalheiro e homem de juízo. Sabes
que, como médico, não tenho um só
doente a quem
curar. Novo ainda, não tenho prática nem nomeada.
— Ah!
disse a moça.
— Não me
interrompas... Ouve: sendo assim, propor-me a ser teu marido é propor-me a
fazer a tua desgraça, quando o que eu desejo neste mundo, mais do que a
salvação, é fazer-te a mais feliz das mulheres... que fazer? Fui a um dos ministros
e pedi-lhe um emprego... por estes dias serei despachado. Com ele posso ser teu
marido, e sê-lo-ei, Emília, juro-te...
Estas
palavras ditas no tom mais insinuante convenceram a rapariga. Um beijo, um só,
mas casto, mas profundo, mas daqueles que fundem duas existências em uma só,
terminou a conversação e selou o juramento.
Emília deu
conta a seu pai dos projetos de Valentim. Vicente ouviu a narração de sua filha
com a alma nadando em júbilo. Era aquilo mesmo que ele desejara ao marido de
sua filha: a prudência, o tino, a dedicação.
A primeira
vez em que Valentim entrou em casa, Vicente não se pôde ter; atirou-se-lhe aos
braços.
— Muito
bem, meu rapaz.
— Que é?
perguntou Valentim, sem compreender.
— Muito
bem. Vejo que és um homem honesto. Teus projetos mostram de tua parte que és o
mais próprio marido que se podia escolher para minha filha... Queres que eu te chame meu filho?
— Meu pai!
disse Valentim, deitando-se-lhe nos braços.
Desde
então ficou assentado que Valentim, apenas empregado, casaria com Emília.
Foi deste
modo romanesco, fora dos hábitos comuns, que se tratou o casamento da filha de
Vicente.
Puseram-se
todos a esperar o despacho de Valentim. Todavia, ou porque não houvesse ainda
bom lugar a dar a Valentim, ou porque alguma estrela má perseguisse a família do pobre Vicente, o que
é certo é que o despacho não apareceu
ainda dois meses depois das cenas que narramos.
Valentim,
quando se tratava disso em conversa, respondia ao seu futuro sogro e à futura
mulher que o ministro costumava a afirmar-lhe que podia contar com o despacho,
mas que deixasse esperar melhor ocasião.
E nessa
expectativa andavam todos.

Mas os
dias e os meses corriam.
Um dia
entrou Valentim em casa da namorada dando gritos de grande contentamento:
— Que é
isso? perguntou-lhe Vicente.
— Meu
sogro, tudo está arranjado.
— Ah!
— Não saiu
ainda o despacho, mas há de sair daqui a um mês.
— Ainda um
mês!
— Todavia
o ministro exige que durante este tempo eu vá à província de *** cumprir uma
missão toda pessoal e não política. Não acha que devo ir?
— Deve...
— Não faço
despesa alguma. Tudo corre por conta do ministro...
— Um mês!
exclamou Emília.
— Um mês,
é verdade.
— Tanto
tempo!
— Depressa
se passa. Coragem, minha... D. Emília.
Vicente
ficou contente por ver que em breve se realizavam os seus desejos, e nesse
sentido falou a Emília, dizendo-lhe que não se assustasse com a viagem de
Valentim.
— Mas eu
tenho medo de duas coisas.
— O que é?
perguntou o namorado.
— O mar...
— Ora, o
mar.
— E o
esquecimento...
— O
esquecimento!
— Jura?
— Pela mão
de seu pai...
E Valentim
beijou respeitosamente a mão de Vicente.
Depois,
para expelir da cabeça de Emília as idéias que lhe haviam entrado, Valentim
continuou a conversar com Vicente:
— Com que,
então, disse ele, vamos ser colegas, empregados públicos...
— Ah!
não... respondeu Vicente; este casamento dá-me duas aposentações: a de pai e a de empregado público.

— Ah!
deixa a secretaria?
— Deixo;
tenho já anos de serviços...
Separaram-se
todos, e Valentim tratou de cuidar dos preparativos de viagem. As apreensões de
Emília dissiparam-se às palavras brandas e persuasivas de Vicente, e no fim de
oito dias a moça estava alegre e contente como dantes. Daí a três dias devia
partir Valentim.
A alegria
que por momentos voltara a Emília desaparecia nas vésperas da partida do vapor.
Era natural. Emília passava as noites em claro, chorava, rezava a Deus, à
Virgem, aos santos, para que a viagem fosse rápida e feliz, e sobretudo para que,
sob a ação do novo clima, Valentim não se esquecesse dela. Na véspera da partida
Valentim tomou chá em casa de Vicente; foi um chá triste e desconsolado.
Vicente procurava alegrar a conversação, mas via-se que ele próprio estava
contrafeito.
Às dez
horas despediu-se Valentim, prometendo-lhe Vicente que iria no dia seguinte ao
bota-fora do vapor.
Valentim e
Emília tinham a voz cortada pelas lágrimas. O moço mal pôde beijar a mão à
rapariga e fugir para a porta.
A moça
desatou a chorar.
Vicente
consolou-a como pôde, dizendo-lhe palavras de animação e dando-lhe mil garantias
da rapidez da viagem e do amor de Valentim.
Às onze
horas Emília retirou-se para o seu quarto.
Aí pôde
chorar mais à vontade. Enquanto as lágrimas lhe corriam ela fazia forças para
resistir à ausência.
Quando as
lágrimas cessaram de correr, a moça dirigiu-se para um oratório em que havia um
crucifixo de marfim, e ajoelhada pediu a Deus que favorecesse a viagem de
Valentim.
Seus
pensamentos elevaram-se puros a Deus como eram puras as palpitações do seu
coração virgem e sinceramente apaixonado.
No meio
das suas orações ouviu bater meia-noite.
Era tarde.
Levantou-se
disposta a descansar e conciliar, se pudesse, o sono.
Mas um
súbito rumor da parte da rua fê-la chegar à janela.
Não quis
abrir e espiou pelas venezianas.
Recuou.
Tinha dado
com os olhos no rosto de Valentim.
A janela
abriu-se e Valentim apareceu aos olhos da moça...
A moça
hesitou; recuou ainda, mas depois vencida por força interior, força inocente e
amorosa, foi à janela e beijou a testa do amante.

—
Obrigada, disse ela. Parece que te devia este beijo todo do coração...
Seguiu-se
um momento de silêncio. Um olhar profundo, intenso, e reflexão do coração,
prendeu aquelas duas almas por longos minutos.
Depois
Valentim começou a beijar os cabelos e as mãos de Emília. Emília tinha uns
belos olhos pretos que se escondiam sob os cílios ante as carícias do amante apaixonado.
Meia hora
passou-se assim.
Só no fim
desse tempo ocorreu a Emília perguntar onde estava apoiado Valentim.
Valentim
apoiava-se numa escada leve e construída de modo a poder dobrar-se. É preciso acrescentar que o que facilitava
esta escalada de Romeu era a solidão do lugar, cujo morador mais próximo estava
a cem passos dali.
Valentim
só reparou que estava fatigado quando esta pergunta lhe foi dirigida por Emília.
Então
sentiu que tinha as pernas frouxas e ia sendo presa de uma vertigem.
Para não
cair agarrou-se à janela.
— Ah!
exclamou Emília.
E
Valentim, não podendo segurar-se, julgou dever saltar para dentro.
E saltou.
A escada
ficou pendente e oscilou um pouco pela impressão do movimento de Valentim.
A janela
conservou-se aberta.
Estava uma
noite linda, linda como aquelas em que os anjos parece que celebram no céu as
festas do Senhor.
Valentim e
Emília encostaram-se à janela.
—
Amar-me-ás sempre? perguntou Emília fitando namorados e ciosos olhos no seu
amante.
— Oh!
sempre! disse Valentim.
— Não sei
por quê, diz-me o coração que, uma vez passado o mar, hás de
esquecer-me.
— Não
digas isso, Emília, Emília, nunca te esquecerei, nem fora possível depois que
jurei entre mim aceitar-te por mulher diante de Deus e dos homens. Mas se ainda
uma vez queres que to jure...
— Por esta
noite, por Deus que nos ouve?
— Sim.
Os dois
olharam-se de novo com aquele olhar supremo em que os corações apaixonados
sabem traduzir os seus sentimentos nas horas de maior exaltação.
Encostados
à janela os dois amantes viram correr os meteoros do alto do céu até
o horizonte, deixando após si um sulco
luminoso que se apagava logo. A noite era das mais belas noites de verão.
o horizonte, deixando após si um sulco
luminoso que se apagava logo. A noite era das mais belas noites de verão.
O espírito
suspeitoso de Emília achava, apesar dos juramentos reiterados de Valentim,
ocasião para revelar as suas dúvidas.
Olhando
tristemente a estrela que corria.
...Cette étoile qui file, Qui file, file et disparait, *
A moça
dizia baixinho:
— Quem
sabe se, como esta estrela que desapareceu, não há de ser o amor dele, que nem ao menos lhe deixará no coração uma
lembrança sequer, como esta estrela não deixa vestígios no céu?
— Sempre desconfiada,
Emília.
— Ah!
dizia ela como que acordando.
— Não te
jurei já?
—
Juraste... mas os pressentimentos...
—
Criancice!
— Às vezes
são avisos do céu.
— Contos
da carochinha! Não te disse já que te amava?...
E um beijo
longo, mais longo que o primeiro, uniu os lábios de Valentim aos de Emília.
A manhã
veio surpreender Emília à janela. Estava só. Nem Valentim, nem a escada estavam
ali.
Emília
tinha as feições alteradas e os olhos vermelhos de chorar. Dissera-se a deusa
da vigília vendo morrer no céu as últimas estrelas.
Quando ela
reparou que era dita, já de há muito tinham as sombras da noite sido expelidas,
e do oriente começavam a surgir os primeiros raios vivificantes do sol. Emília
retirou-se para dentro.
Estava
cansada. Mal pôde ir até o sofá. Ali lançou os olhos para um espelho que havia
em frente e pôde ver a mudança do rosto e a desordem dos cabelos.
Então duas
lágrimas correram-lhe pelas faces, e ela olhou para a janela como se ainda
pudesse ver a imagem do amante.
Mas o
cansaço e o sono venciam aquela fraca natureza. Quis resistir, não pôde. O espírito
não podia mais sustentar aquela luta desigual.
Emília
dirigiu-se para a cama e atirou-se a ela vestida como estava.
E
adormeceu.
Quanto a
Vicente, que dormira a noite inteira sem interrupção alguma, levantou-se às
sete horas, tomou uma xícara de café, vestiu-se e saiu.
Antes de
sair perguntou à mucama de Emília se estava acordada. Disse-lhe ela

que não.
Vicente deixou dito que ia ao bota-fora de Valentim.
E saiu,
com efeito, com direção ao cais próximo para tomar um escaler e daí seguir para
o vapor que devia partir às oito horas.
Valentim
já lá estava.
Quando
Vicente subiu à tolda, Valentim foi direito a ele para abraçá-lo.
O vapor
estava prestes a largar.
O pouco
tempo que havia foi empregado nas últimas despedidas e nos últimos protestos de amizade.
— Adeus,
meu pai! disse Valentim. Até breve.
— Breve,
deveras?
— Deveras.
— Adeus,
meu filho!
Tal foi a
despedida cordial, franca, sentimental. Vejamos agora o anverso da medalha.
Quando
Vicente voltou para casa encontrou Emília de pé. Estava pálida e desfeita.
Vicente foi a ela sorrindo.
— Não te
entristeças tanto, disse-lhe, ele volta.
— Partiu,
não?
— Agora
mesmo.
Emília
suspirou.
Vicente
fê-la sentar ao pé de si.
— Ora, vem
cá, disse-lhe, se te entregas a essa dor, ficas magra, feia, e quando ele vier,
em vez de eu lhe dar uma mulher refeita e bonita, dou-lhe uma que ele não
deixou e que não era assim. Um mês depressa se passa e as lágrimas não fazem
correr os dias mais depressa. Pelo contrário...
— Mas eu
não choro, meu pai.
— Choraste
esta noite. Era natural. Agora consola-te e espera. Sim?
— Sim. Ele
foi triste?
— Como tu.
É outra criança. Nada de choros. Esperança e confiança. Ora bem...
Emília
procurou rir, como podia, para consolar o pai; e durante os dias que se seguiram
não foi encontrada a chorar uma só vez que fosse, nem os seus olhos apareciam
vermelhos de chorar.
É certo
que se alguém enfiasse um olhar pela fechadura da porta do quarto de Emília vê-la-ia todas as noites antes de
deitar-se rezar diante do pequeno oratório e derramar lágrimas silenciosas.
Nesta
hipocrisia de dor, durante o dia, e neste desafogo do coração durante a
noite, passou Emília os primeiros quinze dias
depois da partida de Valentim.
noite, passou Emília os primeiros quinze dias
depois da partida de Valentim.
No fim de
quinze dias chegou a primeira carta de Valentim. Era uma ladainha de mil
protestos de que não se esquecera de ambos, e uma promessa formal que no fim do
mês estaria de volta.
Essa carta
foi lida, relida e comentada pela filha de Vicente.
Vicente,
mais contente com essa carta pelo efeito salutar que produzira em
Emília,
resolveu fazer o que pudesse para acelerar o tempo e tornar menos
sensível a
ausência de Valentim.
Multiplicou
e inventou passeios, visitas, jantares, distrações de toda a natureza.
Este meio
produziu algum efeito. Os outros quinze dias correram mais depressa, e Emília
chegou alegre ao último dia do mês da fatal separação.
Nesse dia
devia chegar exatamente o vapor que trazia Valentim. Levantou-se a moça mais
alegre e viva. Tinham-lhe voltado as cores às faces, a luz nos olhos. Era
outra. E para ela os objetos exteriores, que até então tinham conservado um aspecto
lúgubre, eram também outros. Tudo se fez risonho como o sol, que nesse dia
apareceu mais vivificador.
Vicente
levantou-se, abraçou a filha e preparou-se para ir a bordo buscar Valentim.
Emília
suplicou-lhe que se não demorasse por motivo algum; que viesse logo, mal
desembarcassem.
Vicente
saiu depois de fazer esta promessa à filha. Emília ficou ansiosa esperando o
pai e o noivo.
Infeliz.
Daí a uma hora voltava o pai, triste, cabisbaixo, só. O noivo não o acompanhava.
— E ele,
meu pai?
— Não
veio.
— Não
veio?
— Não.
— Nem uma
carta?
— Nada.
Mas é ainda cedo; pode haver cartas; porém mais tarde... É natural que escrevesse,
é mesmo certo. Esperemos.
Emília
desfez-se em prantos.
Mas
Vicente consolou-a dizendo que tudo podia ter explicação; que naturalmente a
missão a que fora Valentim o explicasse, e só daí a dias o pudesse fazer.
Esperaram
uma carta de explicações, um, dois, três, cinco e dez dias: nada.
— Nada,
meu pai! Nem uma carta! dizia ela. Ele não me ama.
Vicente
sofria vendo a dor de Emília. Não podia convencer pelo raciocínio a uma mulher
que se dirigia pelo sentimento. Preferiu deixá-la desabafar e escrever a Valentim,
ao mesmo tempo que procurava informar-se, como empregado público,
dos motivos que
teriam demorado Valentim na província.
dos motivos que
teriam demorado Valentim na província.
A carta de
Vicente contava tudo o que se passara, o desespero e a dor de Emília vendo-se
malograda, como ele próprio, na expectativa de ver chegar Valentim.
Expedida a
carta, Vicente procurou indagar as razões poderosas que tinham demorado o noivo
de sua filha; mas desde as primeiras tentativas viu logo que não se lhe seria
fácil entrar no conhecimento desses motivos atenta a gravidade da questão, e a
gravidade estava no segredo guardado pelo próprio mensageiro. Todavia uma
consideração se apresentou ao espírito de Vicente: a missão, por grave que
fosse, não era política; o ministro podia, sem entrar na explicação por menor
dessa viagem, dizer-lhe se Valentim voltava ou não cedo.
Quando se
resolveu definitivamente a ir ao ministro e dizer-lhe, se necessário fosse, as razões de seu passo, chegou novo
vapor e não trouxe carta alguma em resposta à escrita por Vicente.
Diante
desse fato Vicente não hesitou.
Foi ao
ministro.
Não era
esse o mesmo chefe da repartição em que Vicente era empregado, mas não era
absolutamente estranho ao velho pai, por já ter servido na pasta correspondente
à sua repartição.
Vicente
declarou-lhe os motivos que o levavam, e esperou, adiantando palavra de
honra, que
o ministro lhe dissesse qual a demora de Valentim.
O ministro
pareceu não perceber a pergunta e pediu que ele a repetisse mas nem depois da
repetição ficou mais instruído.
O ministro
não só não tinha prometido nada a Valentim, como até nem o conhecia.
Vicente
enfiou.
O caso
parecia-lhe tão extraordinário que não quis acreditar em seus próprios ouvidos.
Mas o
ministro repetiu o que dissera e deu-lhe palavra de honra e que dizia a verdade.
Vicente
despediu-se do ministro e saiu.
Que iria
dizer a sua filha? Como dar-lhe parte do ocorrido? Como evitar os perigos que
já se lhe antolhavam nesta revelação?
Vicente
hesitou, e caminhando para sua casa foi ruminando mil projetos, a ver qual era
melhor para sair desta dificuldade.
Mas na
confusão que naturalmente estas idéias lhe traziam, Vicente fixou o espírito no
ponto principal da questão: a perfídia de Valentim.
Essa
perfídia não carecia de provas. Estava patente, clara, evidente. Valentim tinha
usado de uma fraude para enganar Emília. Ou, se tinha motivo de sair, quis aproveitar
uma mentira, para mais a salvo poder escapar às promessas anteriores.
Tudo isso
é evidente; Vicente via em toda a nudez a triste situação em que ficava colocado.

As
circunstâncias contribuíam para aumentar a evidência dos fatos; o silêncio, o anúncio
mentiroso da próxima chegada, tudo.
Fazendo
todas estas reflexões, Vicente chegou à porta de casa.
E não
tinha inventado nada para dizer a Emília. Em tal caso o que cumpria fazer era
calar-se e esperar que o tempo tivesse, desfazendo o amor, minorado o sofrimento
do desengano.
Calou-se,
portanto.
Quando
pôde estar a sós refletiu no procedimento de Valentim; uma soma enorme de ódio
e despeito criou-se no seu coração. Vicente desejava estar naquele momento
diante de Valentim para lançar-lhe em rosto a sua infâmia e a sua baixeza.
Mas todas
essas raivas contidas e tardias nada mudavam a situação.
A situação
era: Emília definhando, Valentim ausente. O que cumpria fazer? Distrair a moça
para ver se ela voltava à vida, e ao mesmo tempo se o primeiro amor se
desvanecia naquele coração.
Nesse
sentido Vicente fez tudo quanto o amor de pai lhe sugeriu, sem que nos primeiros
dias nada pudesse conseguir. Mas os dias se passavam e a dor, se não desapareceu
de todo, ao menos não era tão ruidosa como outrora. Três meses se passaram
assim, e desde a única carta que Valentim escreveu a Vicente, nunca
mais houve
uma só letra, uma só palavra dele.
Mas no fim
desses três meses apareceu uma carta. Enfim! Vicente recebeu-a contente e não
quis logo comunicá-la a Emília. Quis lê-la antes. Era longa: leu-a toda.
Dizia
Valentim:
Meu caro
sr. Vicente. Se V. Sa. não compreendeu que a minha união com D. Emília era desigual,
mostra ter muito pouca prática do mundo. Em todo o caso é digno de desculpa,
porque eu também tive um momento em que não reparei nisso, que aliás não era muito
de admirar, atenta a maneira por que tinha preso o coração. Tinha preso, tinha.
Para que negá-lo? D. Emília é cheia de encantos e de graças; eu sou moço e ardente. O amor
pôs-me poeira nos olhos.
Enquanto eu estava nesse estado inteiramente de rapaz apaixonado, compreende-se facilmente
uma fantasia de momento. Então, como viu, fizemos ambos mútuas promessas.
Mas, não
há como o mar para dissuadir os homens, ainda os mais apaixonados, de algumas
idéias extravagantes que tenham em sua vida.
O mar
fez-me bem.
Quando cá
cheguei tinha o espírito mais lúcido e o coração mais calmo. Reparei que se lá fico mais tempo
destruía dois princípios de minha vida.
O primeiro
é o de nunca olhar para baixo; o segundo é o de não sacrificar a minha
liberdade a ninguém, de baixo ou de cima.

Este
sacrifício era inevitável se eu realizasse o casamento com D. Emília, pessoa a
quem, aliás, tributo a maior veneração.
Mal me
achei aqui e reconheci esta situação pensei logo em dizer a V. Sa. quais eram
as minhas intenções; mas era cedo, e talvez isso produzisse maus resultados, no
tocante à sensibilidade de D. Emília.
Por isso
escrevi-lhe aquela carta, única que lhe escrevi, e na qual eu lhe dizia mil
tolices tendentes a provar que ainda amava a filha de V. Sa.
Depois que
recebi uma carta que V. Sa. me contava umas coisas realmente enfadonhas é que
eu senti tê-las provocado. Mas, uma vez convertido ao bom senso, fora tolice
voltar atrás; calei-me à espera de que passasse mais tempo.
Hoje creio
que já as dores terão passado, e salvo ainda a ocasião para dizer-lhe todos estes meus pensamentos
com aquela franqueza própria de um cavalheiro como eu.
Não será
de falta de franqueza que V. Sa. me acusa.
Portanto,
e visto o mais dos autos, instituo a V. Sa. a palavra que me deu de dar-me sua
filha por esposa, presente este que eu aceitava com as mãos abertas a não sem
os supraditos princípios que eu enunciei e que são e serão sempre a norma de
minha vida.
Resta-me
informar a V. Sa. dos motivos que me trouxeram de lá para cá. Não foi nenhum
motivo de missão ministerial, nem coisa que com isso se pareça. Os motivos foram
dois: o primeiro, certo pressentimento de que eu estava fora dos eixos tentando
casar com D. Emília; o segundo, ir receber a herança daquela célebre tia de
quem eu lhe falei algumas vezes e que acabava de morrer.
Há de
convir que não podia tê-los mais poderosos.
Terminarei
com um aviso salutar.
Naturalmente
ao receber esta carta V. Sa. prorrompe contra mim e vai derramar em uma folha de papel todo o ódio
que me votar.
Declaro
que será trabalho inútil. E outro princípio meu: não responder a cartas inúteis.
Dito isto
não o enfado mais. Valentim.
A
insolência desta carta produziu em Vicente um efeito doloroso. Não era só a fé de
uma moça que fora iludida; era também a dignidade de pai e de ancião que o inconsiderado
moço ultrajava, no velho pai de Emília.
Vicente,
quando acabou de ler a carta, amarrotou-a com furor e levantou-se da cadeira
pálido e trêmulo.
Nesse
momento apareceu Emília, e vendo o pai naquele estado de agitação, correu para
ele:
— Que tem,
meu pai?

— Que
tenho? É esta carta...
— Esta
carta!?
E Emília
procurava ler as folhas amarrotadas que Vicente lhe mostrava sem as largar das
mãos.
— Que diz
esta carta, meu pai? perguntou Emília levantando os olhos para Vicente.
Vicente
olhou para ela, atirou a carta para uma gaveta, fechou-a, e foi sentar-se em um
sofá.
— Que
dizia aquela carta?
— Minha
filha... tens coragem?...
— Tenho...
mas...
— Escute
bem.
Emília
ajoelhou-se aos pés de Vicente e com a cabeça nos joelhos deste escutou.
— O que te
vou dizer é grave, continuou Vicente; prepara-te. Para que enganar-te mais
tempo? Melhor é que te desengane de uma vez. Emília, Valentim não te ama, não
volta cá, dispensa-te da fé que lhe juraste.
— Ah!
Foi um
grito, um só, mas que parecia saído do fundo do coração e que devia ir ecoar na
estância da eterna justiça.
Emília
caiu sem sentidos.
Vicente
enganara-se.
Uma
tranqüilidade mais aparente que real fizera-lhe supor que Emília podia suportar
o golpe daquela revelação.
Isto foi o
que o animou a falar.
O grito de
Emília teve um eco em Vicente. O velho soltou um grito igual quando viu a filha
a seus pés sem dar acordo de si.
Ao
princípio supô-la morta.
— Minha
filha! Morta! Morta!
Prestaram-se
a Emília os primeiros cuidados.
O infeliz
pai, quando teve conhecimento de que a filha ainda vivia, respirou de alívio.
Depois
mandou chamar o médico.
O médico
veio, e depois de examinar a moça disse que respondia pela vida dela.
— Sr.
doutor, disse Vicente ao médico à porta da rua, a morte desta menina é a minha
morte. Salve-a!

— Pode
ficar descansado, respondeu o médico.
Então
começou para Vicente uma vida de dedicação. Como exatamente nas vésperas
tivesse recebido o decreto de aposentação, achou-se ele livre da obrigação de
freqüentar a secretaria. Podia ser todo para a filha. Dias e noites passou-as
ao pé do leito de Emília, consolando-a, animando-a, pedindo-lhe que achasse na
própria enormidade do crime de Valentim razão para desprezá-lo. A ciência e os
conselhos animadores de Vicente obraram de comum no restabelecimento de Emília.
No fim de um mês, a moça estava de pé.
Enquanto
se achava fraca, e como já não houvesse razão para tocar no doloroso assunto da perfídia de Valentim, o pai de
Emília esquivou-se a falar-lhe dos motivos
que tinham prostrado a filha.
A
convalescença correu regularmente. O que não se pôde vencer foi a tristeza de Emília, mais profunda então do que outrora.
Muitas
vezes a moça esquecia-se do pai e de todos, e com o olhar fixo e sem expressão
parecia entregue a dolorosas reflexões.
Nessas
ocasiões Vicente procurava distraí-la de algum modo, sem, todavia, aludir a
nada que fosse de Valentim.
Enfim,
Emília ficou completamente restabelecida.
Um dia
Vicente, em conversa com ela, disse-lhe que passada a funesta tempestade do
coração cumpria-lhe não se escravizar a um amor que tão indignamente votara a
Valentim. Estava moça; considerar empenhado o coração naquele erro do passado
era cometer um suicídio sem proveito, nem razão legítima.
— Meu pai,
assim é preciso.
— Não é,
minha filha.
—
Afirmo-lhe que é.
— Tão
generosamente pagas a quem foi tão cruel para contigo?
— Meu pai,
disse Emília, cada um de nós foi condenado a ter neste negócio uma catástrofe.
É a sua vez.
—
Explica-te.
— Meu pai,
disse Emília, fechando o rosto nas mãos, eu sou dele quer queira quer não.
Uma idéia
pavorosa atravessou o espírito de Vicente. Mas tão impossível lhe pareceu, que,
sem dar crédito à imaginação, perguntou a Emília o que queria dizer.
A resposta
de Emília foi:
— Poupe-me
à vergonha, meu pai.
Vicente
compreendeu tudo.
O seu
primeiro movimento foi repelir a filha.
Levantou-se
desesperado.
Emília não
disse uma palavra. No fundo do abismo da desgraça em que se via, não podia desconhecer que a indignação de
Vicente era legítima e que devia respeitá-la.
Vicente fez
mil imprecações de ódio, mil protestos de vingança.
Passada a
primeira explosão, e quando, extenuado pela dor, Vicente caía em uma cadeira,
Emília levantou-se e foi ajoelhar-se aos seus pés.
— Perdão,
meu pai, exclamava ela entre lágrimas, perdão! Conheço todo o horror da minha
situação e respeito a dor que meu pai acaba de sentir. Mas vejo que mereço
perdão. Eu era fraca e amava. Ele era insinuante e parecia amar. Nada disto me
lava do pecado; mas se a indignação de um pai pode encontrar atenuação no ato
de uma filha, meu pai, eu ouso esperar isso.
Vicente
repeliu Emília com a mão.
Emília
insistiu, implorou, desfez-se em lágrimas, em súplicas, e em lamentos. Pediu
pela alma da mãe que Vicente não juntasse à dor da perfídia do amante a dor da
maldição paternal.
A voz do
arrependimento e da contrição de Emília teve eco no espírito de Vicente. O
velho pai, chorando também, voltou os olhos para a filha e estendeu-lhe os braços.
Na
consciência de Vicente Emília estava perdoada.
Mas o
mundo?
Os juízos
do mundo são singulares e contraditórios. Quando uma pobre rapariga cai num
erro, como Emília, o mundo fecha-lhe as portas e lavra mandamento de interdição.
É justo. Mas o que não é justo, o que é infame, o que clama justiça, é que
essas mesmas portas se abram ao autor do crime, e que este, depois de sofrer
uns simples murmúrios de desaprovação, seja festejado, acatado, considerado.
Ora, a
situação de Emília diante do mundo apresentou-se logo no espírito de Vicente em
todo o seu horror.
Vicente,
voltando do abalo que sofrera, procurou reunir as idéias e os fatos e meditou
sobre eles.
O que
havia de positivo era:
Uma menina
enganada e perdida.
Um
depravado alegre e feliz com o bom êxito da empresa, rindo-se de longe da credulidade
e do infortúnio de uma família honrada.
A par da
velhice desfeita, a felicidade dos seus últimos dias anulada.
Que fazer
diante disto?
Vicente
formou e desfez mil projetos, sem acertar com um que pudesse resolver todas as
dúvidas e preparar todas as conseqüências.
Estava
velho. Podia morrer de uma hora para outra. Emília ficava desamparada. Podia
perder-se, senão por tendência própria, ao menos por urgência das necessidades.
Ele sabia que a rapariga nas circunstâncias de Emília apresentava
este dilema: ou a morte ou a vergonha, pontos
horríveis, aos quais não é possível chegar sem ferir os preceitos divinos e
humanos.
este dilema: ou a morte ou a vergonha, pontos
horríveis, aos quais não é possível chegar sem ferir os preceitos divinos e
humanos.
Há uma
terceira solução que faz sair da morte e da vergonha; mas essa terceira seria
escolhida por Emília? Apesar das lições paternas, do exemplo, da índole, dos sentimentos
que nutria, ficaria ela a salvo das futuras seduções que, de envolta com a
necessidade, fossem debruçar-se à noite no leito de sua miséria?
Vicente
sentia, via, adivinhava toda esta situação, mas desesperava por não poder achar
um só meio de preveni-la, e dissipar as suas tristes apreensões.
Entretanto
o mais fúnebre silêncio sucedeu em casa às explosões de dor e de indignação do
pai e da filha.
Esta vivia
quase sempre no quarto, evitando o mais que pudesse a vista do pai, que era
para ela a imagem da consciência viva.
Vicente do
mesmo modo recolhia-se ao seu quarto, e ali passava horas e horas, só com a sua
dor e com as suas considerações do futuro.
Um dia
Vicente entrou no quarto de Emília e foi sentar-se ao pé dela.
—
Emília...
— Meu pai.
— Já te
perdoei, como sabes, o erro em que caíste; reconheci, minha filha, que a boa fé
do teu coração foi iludida. Tudo isto pertence ao passado. Mas pensaste no futuro?
— No
futuro?
— Sim,
pensaste na tua posição de ora avante, nas circunstâncias penosas em que te achas, mas ainda mui penosas com que
hás de achar-te quando eu morrer?
— Oh! meu
pai, eu também morrerei...
— Ouve.
Não digas isso. Não sabes se poderás ou não resistir à minha morte, e no caso
afirmativo, que é o que se há de dar, porque é o que se dá sempre, só recorrendo
ao crime terás a morte, e então...
— Meu pai!
— E então
terás aumentado as torturas eternas do meu espírito... Ah! é preciso que te não
esqueças de que há um Deus que nos olha e nos julga. Para esse, apelo eu, apelarás tu, no que diz respeito ao
infame. Mas enquanto esse Deus não te
chamar a si, tu não tens, nem eu tenho, o direito de atirar à margem o fardo da
vida.
— Bem sei,
meu pai...
— Ora,
pois. Morto eu, qual é a tua posição? Ficas desamparada à beira de um abismo. É
preciso que conjures esse perigo, e eis o meio: mudar-nos-emos daqui. A casa a
que eu for morar terá capacidade para que possamos eu e tu trabalhar em uma só
coisa: fazer um pecúlio para ti. Serei hortelão; serás costureira. O que nos
render nessas duas ocupações, junto com o que o Estado me dá, servirá para
sustentar a casa e economizar de modo que, no fim de alguns anos, quando a
morte me chamar, tu fiques desassombrada, ao abrigo das necessidades e das
tentações.
— Oh! meu
pai! exclamou Emília deitando-se aos braços de Vicente.
— Queres?
— De todo
o coração, meu pai.
Desde este
dia foi assentado que ambos se ocupariam na reparação do passado por meio da
esperança do futuro.
Mudaram-se
para a casinha em que os encontramos, leitor, no começo desta narrativa.
Aí
viveram, longe do mundo, entregues só ao cumprimento da palavra jurada e no
desempenho dos encargos que o funesto amor de Valentim trouxera àquela infeliz
família.
Quanto ao
rapaz, Vicente entendeu que não devia por modo algum procurar vingar-se. Qual seria a vingança? Vicente,
profundamente religioso, julgou entre si que a justiça de Deus bastava para
reparar os casos onde fosse impotente a justiça dos homens.
Votando-se
a uma vida de trabalho e de obscuridade, o pai e a filha buscaram reparar os
erros do passado, amando-se mais e fazendo convergir os seus esforços, para a
compra da tranqüilidade futura.
Tal foi,
em resumo, a narração feita por Vicente a Davi.
Quando o
velho hortelão acabou de falar ia a noite adiantada. Davi estava pensativo e
concentrado. Não perdera uma só das revelações do velho, e às últimas palavras
dele lançou-se-lhe aos braços.
— Muito
bem! muito bem! exclamou o poeta. Obrou como um homem de honra e de prudência.
Não era outro o seu procedimento. Este abraço é de irmão, e de admirador.
— Fiz o
dever, não?
— Fez!
fez! Devem todos os que o conhecem felicitá-lo por tal... Ainda bem, que não
morro inteiramente desgostoso com a minha espécie; ainda há indivíduos que lhe
fazem honra... Mas diga-me, nunca mais ouviu falar de Valentim?
— Nunca
mais. Foi um ingrato.
— Foi um
infame.
— É a
mesma coisa.
— Sim, mas
hoje, pelo tom que as coisas levam, já se vai dando à ingratidão a significação
de independência... É com efeito independência, mas independência do justo e do
honesto... E sua filha... pobre menina!
— Coitada.
Trabalha contente e alegre. Nossas economias são muitas, porque reduzimos o
mais que nos é possível as nossas despesas, de modo que, se eu hoje morrer, já
Emília não fica inteiramente abandonada. Ai está a história da nossa vida. Adeus. É tarde. Até amanhã!
Vicente
voltou ainda:
— É o
primeiro a quem revelo todas estas coisas. Será também o primeiro a

quem dê
entrada em minha casa. Agora é tarde. Amanhã entrará no santuário do trabalho
em que eu e minha filha somos sacerdotes...
— Até
amanhã.
No dia
seguinte, com efeito, Vicente apresentou-se em casa do poeta às 9 horas da
manhã.
Davi
coordenava uns papéis.
— Ponho em
fuga a musa? disse Vicente à porta.
— Não;
pode entrar. Isto não são versos. Já perdi o gosto de rever os versos que faço. Isto foi bom em outros tempos. Agora
faço versos e atiro-os à gaveta, para lá dormirem com as minhas ilusões.
Preparo uma ode, é verdade, mas não é agora... Vem buscar-me?
— Venho.
— Pois
vamos.
O poeta
guardou os papéis e entrou com Vicente na casa deste.
Emília
veio recebê-lo à sala.
Era uma
bela criatura, apesar da magreza e da palidez, sendo que essa palidez e essa
magreza davam ainda realce à beleza natural da moça em virtude do vestido negro
que trazia, como luto de sua honra, e os cabelos desleixadamente atados sobre a
nuca.
Davi não
pôde deixar de parar uns segundos diante de Emília sem dirigir-lhe uma só
palavra. Se depois da narração feita pelo pai a que dava a vida da moça um fundo
romanesco, Davi encontrasse uma mulher de aspecto vulgar, a impressão seria
menor; não acontecendo assim, realçando a beleza de Emília o episódio tão curioso
dos amores de Valentim, Davi, que, como todo o verdadeiro poeta, conservava,
apesar dos anos, a fantasia e o coração, não pôde deixar de ficar impressionado.
Passado o
primeiro momento de admiração, Davi encaminhou-se para a moça, e disse-lhe
algumas palavras próprias da ocasião.
Depois
sentaram-se todos.
Não fora
convencionado, mas o velho poeta compreendeu bem que era descabida toda a
convenção no assunto do amor e do crime de Valentim.
A conversa
versou portanto sobre coisa diferente e estranha daquela, mostrando-se Davi, o
mais que pôde, ignorante do passado de Emília.
Davi
despediu-se e voltou para casa.
Vicente e
Emília insistiram para que ele lá voltasse, e Davi prometeu.
E, com
efeito, durante oito dias, Davi fazia regularmente uma visita diária ao amigo e
vizinho.
Mas no fim
de oito dias Davi não foi lá, nem deu sinais de si.
Durante dois
dias conservou-se a casa fechada; mal aparecia, uma ou outra vez o criado Elói.
Vicente
cuidou que o poeta estivesse doente, e lá foi. Elói apareceu e disse que o poeta
tinha saído declarando que não voltaria antes de dois meses. Entretanto, deixara
uma carta para ser entregue a Vicente.
Vicente
recebeu a carta e foi lê-la em casa.
Dizia o
poeta:
Meu caro
amigo. Esta carta dar-lhe-á notícia, quando aí for, de que eu me ausento por
dois meses.
Os motivos
desta ausência são particulares. Talvez lhos diga depois. O que lhe peço é que,
no caso de mudar de casa, faça-me chegar a notícia exata da sua nova
residência.
Adeus; até
breve. — Davi, poeta para si, amigo para Vicente, estranho para toda a humanidade.
Vicente
leu esta carta a Emília, e lamentou com ela a repentina saída de Davi.
— Era o
meu único amigo, e esse mesmo me falta.
— Mas, por
dois meses...
— Eu sei
lá... Dois meses... Também...
Vicente
concluiu mentalmente a frase que dizia respeito a Valentim.
Entretanto
voltaram os dois às funções regulares da horta e da costura, à espera que
chegasse o dia da volta do poeta.
Tudo
continuou, portanto, como outrora.
Não durou,
porém, isto mais do que quinze dias, ao cabo dos quais Vicente adoeceu.
Foi o
sinal da agitação naquela família, que tão sossegada e silenciosamente vivia.
Emília,
assustada ao princípio com os sintomas de uma grave enfermidade para seu pai,
quis ir ela própria chamar o médico.
Vicente
disse-lhe que chamasse antes o criado de Davi, e que por caridade este se
prestaria a isso.
Com
efeito, mal a filha do hortelão fez saber a Elói o serviço que exigiam dele, o criado
apressou-se em ir à cata de um médico, e depois à compra dos medicamentos
precisos.
Esta
solicitude, confessou depois o próprio Elói, era ordem expressa de Davi.
— Ah!
dizia Vicente quando soube desta circunstância, e aquele amigo tão longe! Se eu
morrer?...
— Morrer?
Não fale nisso, meu pai...
— É muito
possível, minha filha, eu nem sempre hei de viver, e bom é que nos acostumemos
a este pensamento, de que, aliás, nunca nos devíamos esquecer.
Emília
chorava ouvindo estas palavras de seu pai. Vicente, para distraí-la, começava
de afagá-la e passava a assuntos diferentes.
Entretanto,
a moléstia de Vicente agravou-se, e o médico chegou a recear pelos dias do
enfermo.
Quando
Emília soube do estado grave de seu pai quase endoideceu.
Não era só
o arrimo que perdia; era a imagem viva da consolação e do conforto que ela
tinha nele e que estava prestes a separar-se dela.
Redobraram
os cuidados.
Elói durante
algumas noites deixou a casa do amo para ir passá-las ao pé do enfermo.
Emília por
seu lado passava as noites em claro, e só cedia às instâncias do criado para
que fosse descansar, quando já lhe era absolutamente impossível conservar-se
acordada.
Ainda
assim pouco dormia. Passando da realidade dos fatos, Emília era dominada pelos
mistérios da imaginação. Os sonhos mais lúgubres e assustadores atordoaram o
seu espírito durante o sono.
Uma noite,
em que Elói, sentado em um pequeno banco, fazia esforços incríveis contra o
sono que o invadia, Vicente acordou de uma madorna de meia hora. Viu que o
criado fugia embalde ao sono, e cuidou que a filha também estivesse repousando.
Mas,
desviando o olhar para o fundo do quarto, deu com os olhos em Emília, ajoelhada, apoiada em uma cadeira, implorando
não sei que santo invisível pela saúde do pai.
Este
espetáculo comoveu o doente. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Lembrou-se então
das horas longas e choradas que passara igualmente junto ao leito da filha, implorando
ao Senhor pela saúde dela.
E não pôde
deixar de dizer com voz fraca, mas suficiente para que ela ouvisse:
— Deus te
ouça, minha filha.
— Meu pai!
E Emília
dirigiu-se para o leito do enfermo, que lhe beijou as mãos de agradecido.
Esta cena
repetiu-se ainda algumas vezes durante as crises da enfermidade de Vicente.
À força de
cuidados e de remédios Vicente pôde melhorar, e tão a olhos vistos, que um dia
de manhã Emília, ao levantar-se e ao ver a fisionomia do doente, julgou que se
tivesse operado um milagre.
Vicente
melhorou e ficou restabelecido. O médico proibiu-lhe expressamente que voltasse
tão cedo ao trabalho.
— Mas como
passaremos nós? perguntou Vicente a Emília quando esta lhe comunicou as
determinações do médico.
—
Trabalharei eu, e com o mais que há iremos passando...
— Mas tu,
trabalhares sozinha? Isso não pode ser.
— Tanto
pode, que há de ser...
— Mas...
Enfim, lá diz o rifão que Deus dá o frio conforme a roupa. Podia ser pior, e eu
ficava aí perdido de uma vez.
— Não podia
ser pior, meu pai.
— Por quê?
— Porque
eu pedi à minha madrinha...
A madrinha
era a mãe de Deus. Esta devoção tão cândida e tão sincera fez sorrir de
contentamento ao hortelão.
— Pedi-lhe
a sua saúde, meu pai, e bem vê que ela me ouviu.
— Dize-me
cá, Emília, se eu morresse que farias tu?
— Morria
também... Não me seria possível sobreviver-lhe. Que me restava mais neste
mundo? Não é meu pai o único fio que me prende à vida?
— Pobre
filha!
Esta
exclamação pintava toda a situação daquelas duas criaturas, situação dolorosa e
admirável, em que a vida de uma dependia da de outra, sem outra solução
possível, visto que a morte de uma tirava à outra toda a esperança de felicidade
e de paz.
E o que
era esta moléstia de Vicente? Que resultado teria no futuro daquela família? A
ruína. O pecúlio feito à custa de tantas economias, de tantos trabalhos, de
tantas misérias, fora absorvido com a moléstia de Vicente. Dora em diante deviam começar de novo a ajuntar o patrimônio
do futuro, que era a segurança da honra e da paz.
E aqueles
dois Sísifos olhavam-se rindo, contentes de si e de Deus, sem repararem nas
atribulações e nas fadigas por que deviam passar de novo.
Já Vicente
terminara a convalescença quando recebeu uma carta de Davi.
Aproximava-se
o tempo marcado para a volta do poeta, e a carta fez-lhe supor que o poeta não
voltaria ainda.
— Para que
me escreveria se voltasse já?
Abriu a
carta e leu-a:
Meu caro
amigo. Dentro de pouco estarei aí e então para nunca mais fazer viagem alguma.
Nunca lhe
disse que havia em minha vida alguns desgostos a respeito dos quais nunca
procurava conversar? Pois saiba que um deles
foi o que me trouxe cá.
Ficou-me
de minha mulher um filho a quem eduquei com desvelo paternal.
Prometia
ser até à idade dos quinze anos um modelo de retidão e
de sisudez.
de sisudez.
Más
companhias o perderam. Tendo chegado a uma certa idade em que o olhar paterno
não podia segui-lo em toda a parte, o rapaz esqueceu as lições que eu tanto lhe
ensinei e deixou-se levar pela torrente da rapaziada.
De perdição
em perdição este filho chegou a sair-me de casa e a desconhecer até a minha
autoridade.
Separamo-nos.
Ora,
imagine que tive ultimamente um sonho e que se me afigurou ver o rapaz contrito
e morigerado pedir-me a bênção paternal.
Não
hesitei um momento. Vim ter ao lugar onde em natural encontrá-lo e vi a
realidade do meu sonho...
Lá vou ter
dentro de poucos dias. Esperem aí o velho amigo. Davi.
Conforme
dizia a carta, apareceu no fim de pouco tempo o nosso poeta. O sinal da chegada
de Davi foi a presença de Diógenes na horta de Vicente. O cão acompanhara o
senhor.
Sabendo da
presença do vizinho, Vicente lá foi ter e abraçá-lo; contou-lhe o que sofrera,
os perigos de que escapara e até os atos de dedicação e amor da parte de
Emília.
E,
concluindo a narrativa, disse Vicente:
— Enfim...
já é para agradecer que me salvasse e esteja aqui livre de tudo, disposto a
recomeçar os meus trabalhos... Mas, então, encontrou seu filho?
— É
verdade, respondeu Davi.
— Foi um
verdadeiro achado... não?
— Um
achado sublime. Achei-o corrigido pelo tempo e pelas desgraças. O cadinho
serviu; antes era um peralta; agora é um homem de bem.
— Ora,
deixe-me abraçá-lo...
—
Abrace-me... abrace-me. E a menina?
— Está
boa...
— Mais
alegre?...
— Vai
vivendo...
— Pois eu
lá hei de ir hoje... Crê que ela terá prazer em ver-me?
— Por que
não?
Os dois
velhos separaram-se. Quase a sair, Vicente foi chamado por Davi, que lhe disse:
— Olhe,
sabe que meu filho vem amanhã?
— Ah!
— Há de
ver... que rapagão!
No dia
seguinte o poeta apresentou-se em casa de Vicente. Emília foi recebê-lo.
— Ora,
viva! disse ela, como está? Como se deu fora estes dois meses?... Sabe que a
sua ausência foi sentida como se fora a de um amigo de longo tempo?
—
Desconfio...
— Pois é
verdade. Então, ainda volta?
— Não.
Fico de uma vez.
— Tanto
melhor.
— E desde
já imponho, como condição disto, um perdão de sua parte.
— Um
perdão?
— É
verdade: um perdão.
— Que
crime cometeu?
— Ah! não
sou eu o culpado... é outro... É ele.
Emília
abaixou os olhos e estremeceu.
— Ele...
Valentim... meu filho.
— Filho...
Pois?...
Vicente
entrou na sala...
—
Ajude-me, amigo, nesta empresa: eu peço o perdão de sua filha para meu filho.
— Seu
filho... Quem?
—
Valentim!
— Ah!
— E ao
mesmo tempo pedir licença para uma reparação. Mas ouçam antes: não lhe disse
algumas vezes, sr. Vicente, que eu tinha um desgosto em minha vida? Era
Valentim. Saiu-me um filho mau como lhe contei na carta. Agora, como também lhe
contei, fui buscá-lo. O motivo era simples. Soube da história de sua filha e
fui em casa do rapaz com a intenção de fazer dele um marido capaz, custasse o
que custasse. Fui ainda mais feliz. Achei-o mudado: o tempo e o infortúnio
tinham-lhe mostrado o caminho errado em que andara. Trago-lhes uma pérola.
— Ah! —
disse Emília lançando-se aos braços de Davi.
Dai a
alguns minutos entrava na casa de Vicente o filho do poeta. Estava mudado até
no rosto. Via-se que ele sofrera e aprendera com os anos.
Entrando
foi ajoelhar-se aos pés de Emília e de Vicente. Ao perdão de ambos seguiu-se o
casamento. Como fora convencionado os dois velhos não se mudaram, nem os dois
filhos.
Valentim
tornou-se um marido exemplar, um filho modelo. Esquecido o passado, cuidaram
todos de fazer do presente a realidade daqueles sonhos de paz e de ventura que
tantas vezes haviam tentado em sua vida.
E
conseguiram.
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Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865. Disponível digitalmente
no site: Domínio Público
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