
FERNANDO E FERNANDA
A fazenda da Soledade está situada no
centro de um rico município fluminense, e pertencia há dez
anos ao comendador Faria, que a deixou em herança ao único filho que teve do
primeiro matrimônio, e que se chama o dr. Amaro de Faria. O comendador
Tinham os
mesmos nomes. Cresceram juntos, à sombra do mesmo amor materno. Ele era órfão,
e a mãe dela, que o amava como se ele fora seu filho, tomou-o para si, e reuniu os dois debaixo do
mesmo olhar e dentro do mesmo coração. Eram quase irmãos, e sê-lo-iam sempre
completamente, se a diferença dos sexos não viesse, um dia, dizer-lhes que um
laço mais íntimo podia uni-los.
Um dia,
tinham ambos quinze anos, descobriram os dois que se amavam, e mais do que se
amam irmãos. Esta descoberta foi feita durante uma troca de olhares e um
contato de mãos.
—
Fernanda! disse ele.
—
Fernando! respondeu ela.
O resto
foi dito nessa linguagem muda e eloqüente, em que o maior ignorante faz prodígios
de retórica, retórica do coração, retórica universal.
Mas o amor, sobretudo o amor calouro, como era
o dos meus heróis, tem o inconveniente de supor que todo o resto da humanidade
está com os olhos tapados e os ouvidos surdos, e que ele pode existir só para
si, invisível e impalpável.
Ora, não
sendo assim, apesar da boa fé de Fernando e Fernanda, aconteceu que a velha mãe
deu pelas coisas logo dois dias depois da primeira revelação.
Esperavam
os três a hora do chá, reunidos em torno de uma pequena mesa, onde Madalena (a
mãe de ambos) punha em ordem uns papéis. Os papéis diziam respeito a várias
reclamações que Madalena devia fazer, por parte de seu finado marido, à fazenda
pública.
Isto se
passava em uma província do norte, e Madalena preparava-se, no caso de ser
preciso, a vir pessoalmente ao Rio de Janeiro, apresentar as suas reclamações.
Nesse
serviço era a boa velha ajudada pelos dois filhos, a legítima e o adotivo; mas
estes, sem quebra do respeito que votavam à mãe comum, esqueciam-se muitas vezes do que faziam, para confundirem
por longo tempo os olhos, que, na frase chistosa de H. Murger, são os
plenipotenciários do coração.
Em uma
dessas ocasiões, Madalena, com os olhos baixos, reunindo os papéis que lhe eram
mais necessários, disse a Fernando que lhe fosse buscar um maço de documentos
esquecidos no gabinete.

Fernando
não atendeu à ordem.
Madalena
repetiu as palavras, segunda vez, sem levantar os olhos.
Igual
silêncio.
Madalena
levantou a cabeça e ia pela terceira vez dizer a mesma coisa, quando reparou no êxtase em que estavam Fernando e
Fernanda.
Então,
erguendo a voz, repetiu a ordem a Fernando.
Este
estremeceu, levantou-se e foi buscar o maço de documentos.
Daí a pouco
serviu-se o chá; porém Madalena, que era, sempre, tanto ou mais gárrula que os
dois namorados, mostrou-se durante o chá de uma completa taciturnidade.
Isto
causou estranheza à filha e ao filho, mas não lhes inspirou suspeita alguma, pela simples razão de que nem ele nem ela
conheciam ainda bem o alcance e a natureza do sentimento que os dominava.
Explicarei
a razão desta ignorância em corações de quinze anos. Nem Fernando nem Fernanda
tinham prática do mundo; não viam ninguém; nada sabiam além do amor fraterno e
filial em que foram criados.
Um velho
padre, parente afastado de Madalena, ensinara-lhes a ler e a escrever várias línguas e a história sagrada; mas o
modo por que era feito o ensino, a tenra idade em que eles começaram a
aprender, a cor legendária que eles viam nos textos sagrados, tudo isso
contribuía para que a idéia do amor dos sexos nunca se lhes apresentasse no espírito de um
modo claro e positivo.
Deste modo
o episódio de Rute, verdadeira página da poesia rústica, era lido pelos dois
sem comentário do coração, ou do espírito.
Nem por
curiosidade aconteceu perguntarem nunca o fim dos meios empregados pela irmã de
Noemi em relação ao rico homem Booz.
Eva, o
fruto, a serpente, eram para Fernando e Fernanda a mesma serpente, o mesmo
fruto, a mesma Eva, ocultos nos princípios da humanidade pelas névoas da legenda religiosa.
Quanto ao
Cântico dos Cânticos, o padre-mestre julgou dever suprimi-lo na Bíblia em que
aprendiam os dois jovens parentes. Esse padre-mestre, apesar de insistir no caráter alegórico do livro de Salomão,
segundo a versão católica, julgou não dever dá-lo em leitura ao espírito de
Fernando e Fernanda.
Resultou
de todo este cuidado que o coração juvenil dos dois namorados nunca teve idéia
clara do sentimento que os unia tão intimamente. Era a natureza quem fazia as
despesas daquele amor sem conseqüências.
No dia
seguinte ao da cena que narrei rapidamente, Madalena chamou os dois namorados
em particular e interrogou-os.
Os
cuidados de Madalena eram mui legítimos. Apesar do recato com que tinham sido
educados os dois filhos, ela não podia saber até que ponto a inocência deles era
real. Sondar-lhes o espírito e o coração parecia-lhe um dever imperioso. Fê-lo com
toda a habilidade; Fernando e Fernanda, confessando uma afeição mais terna que
antiga, nada sabiam, todavia, do caráter e do mistério dessa afeição.
Madalena,
para quem o amor de Fernando por Fernanda não era mais do que o
sonho de sua vida realizado, beijou-os,
abraçou-os e prometeu-lhes que seriam felizes.
sonho de sua vida realizado, beijou-os,
abraçou-os e prometeu-lhes que seriam felizes.
— Mas,
acrescentou ela, explicando como podia as coisas, é preciso que o meu Fernando
se faça homem; tome um bordão de vida, para cuidar da sua... irmã; ouviu?
E tratou
de consultar a vocação de Fernando, consultando também o padre-mestre, não sem comunicar-lhe
as descobertas que fizera.
O
padre-mestre contrariou-se um bocado com a tal descoberta. Em seus projetos secretos
a respeito de Fernando, que era a um tempo discípulo e afilhado, entrara o de
fazê-lo entrar para um seminário e depois para um convento. Queria, disse ele a Madalena, fazer de
Fernando uma coluna da Igreja. Era um menino inteligente, mostrava entusiasmo
pelas letras sagradas, podia, com os desenvolvimentos que se lhe desse ao
espírito, tornar-se o S. Paulo do novo mundo.
Madalena
declarou-lhe que era necessário tirar daí o pensamento. O padre-mestre
resignou-se.
Depois de
muito discutirem, em presença de Fernando, resolveu-se que o rapaz estudasse
medicina.
Em
conseqüência foi determinado que fizesse os preparatórios e seguisse para a corte
para continuar os estudos superiores.
Esta
resolução entristeceu Fernando. Foi comunicá-la a Fernanda, e ambos se desfizeram
em lágrimas e protestos de uma afeição eterna.
Mas quis a
felicidade que Madalena precisasse ir ao Rio de Janeiro para cuidar dos papéis
de suas reclamações. Assim toda a família se pôs a caminho, e daí a alguns
meses estavam todos, menos o padre-mestre, definitivamente instalados na
capital.
Fernando
seguiu os estudos necessários à carreira escolhida.
A idade, a
maior convivência na sociedade, tudo revelou aos dois namorados a razão de ser
da afeição mais terna que sentiam um pelo outro.
O
casamento apareceu-lhes no horizonte como uma estrela luminosa. Daqui vieram os
projetos, os planos, as esperanças, os edifícios de felicidades construídos, e
destruídos para dar lugar a outros de maiores proporções e mais imponente estrutura.
Eram
felizes. Não conhecendo nenhuma das misérias da vida, viam o futuro pelo prisma
da própria imaginação e do próprio desejo. Parecia-lhes que o destino ou as
circunstâncias não tinham o direito de impedir a realização de cada um de seus sonhos.
Entretanto,
tendo Fernando concluído os seus estudos, foi decidido que iria à Europa
estudar e praticar ainda por dois anos.
Era uma
separação de dois anos! E que separação! A separação do mar, a mais tremenda de
todas as barreiras, e que aos olhos de Fernanda era como que o perigo certo e
inevitável. A pobre menina dizia muitas vezes a Fernando:
— Quando
fores meu marido, proíbo-te que ponhas pé no mar!
— Não
ponho, não, respondia Fernando sorrindo, o navio é que há de pôr a
quilha.
quilha.
Anunciava-se
agora uma viagem. Cedo começavam os sustos e as desgraças de Fernanda.
A pobre
menina chorou muitas lágrimas de pesar e até de raiva por não poder impedir que
Fernando partisse.
Mas era
preciso.
Fernando
partiu.
Madalena
procurou o mais que podia animar o rapaz e consolar a filha. Ela própria sentia
rasgarem-se-lhe as entranhas ao ver partir aquele que por dois motivos era seu
filho; mas tinha coragem, e coragem filha de dois sentimentos elevados: — o
primeiro era que se devia completar a educação de Fernando, que ela tomara a
seu cuidado; o segundo era que para marido da sua Fernanda devia dar um homem
completo e apto a alcançar os mais honrosos cargos.
Fernando
compreendia isto, e soube ser corajoso.
Não entra
no meu propósito contar, cena por cena, dia por dia, os acontecimentos que
preencheram o intervalo da ausência do jovem médico pela ciência e doente pelo amor.
Corramos
folha e entremos logo no dia em que o navio em que saíra Fernando se achou de
novo no porto da capital.
Madalena
recebeu Fernando como se recebe a luz depois de uma longa prisão em cárcere
escuro. Indagou de muitas coisas, curiosíssima pelo menor incidente, e risonha
de felicidade a todas as narrações do filho.
— Mas
Fernanda? perguntou ele depois de algum tempo.
A mãe não
respondeu.
Fernando
insistiu.
— Fernanda
morreu, disse Madalena.
— Morreu!
exclamou Fernando levando as mãos à cabeça.
— Morreu
para ti: está casada.
A
previdente Madalena começara do menor para o maior. Com efeito, para Fernando melhor fora que Fernanda tivesse
morrido do que se tivesse casado.
Fernando
desesperou ao ouvir as palavras de sua mãe. Esta veio com imediatos conselhos
de prudência e resignação. Fernando a nada atendia. Formara durante tanto tempo
um castelo de felicidade, e eis que uma simples palavra derrubara tudo. Mil
idéias lhe atravessaram o cérebro; o suicídio, a vingança, voltavam a ocupar-lhe
o espírito, cada qual por sua vez; o que ele via no fundo de tudo era a perfídia
negra, a fraqueza do coração feminino, a zombaria, a má fé, ainda nos corações
mais virgens.
Enfim,
Madalena pôde tomar a palavra e explicar ao desditoso mancebo a história do
casamento de Fernanda.
Ora, a
história, a despeito de sua vulgaridade, deve ser contada aqui para conhecimento
dos fatos.
Fernanda
sentira, e sinceramente, a ausência de Fernando.
Chorou
longos dias sem consolação. Para trazer-lhe algumas distrações ao espírito,
Madalena resolveu levá-la às reuniões e introduzi-la entre as moças da mesma
idade, cuja convivência não podia deixar de ser-lhe útil, visto que lhe tranqüilizaria
o espírito, sem varrer-lhe da memória e do coração a idéia e o amor do
viajante.
Fernanda,
que até ali vivera uma vida modesta e retirada, achou-se de repente ante um
mundo novo. Sucediam-se os bailes, as visitas, as simples reuniões. Pouco a
pouco a tristeza foi desaparecendo e dando lugar a uma satisfação completa e de
bom agouro para Madalena.
— Bem,
pensava a velha mãe, deste modo Fernanda poderá esperar Fernando, sem
murchar-lhe a beleza da mocidade. Estas relações novas, esta nova convivência,
tirando-lhe a tristeza que a acabrunhava, dar-lhe-á mais força ao amor, em
virtude do espetáculo do amor alheio.
Madalena
raciocinava bem até certo ponto. Mas a prática demonstrou que a sua teoria era
errada e não concluía como o seu coração.
O exemplo
alheio, longe de fortificar Fernanda na fidelidade ao amor jurado, trouxe-lhe
um prurido de imitação; ao princípio, simples curiosidade; depois, desejo menos indiferente; mais tarde, vontade
decidida. Fernanda desejou imitar as novas amigas, e teve um namorado. A
algumas ouvira que não ter um namorado, pelo menos, era dar prova de péssimo
gosto, e de nenhum espírito; e Fernanda não queria de modo algum ficar neste
ponto atrás das suas companheiras.
Entre os
rapazes que a requestavam havia um certo Augusto Soares, filho de um rico capitalista, que era o seu primeiro
mérito, sendo o segundo a mais bem merecida fama de néscio que ainda coroou uma
criatura humana.
Mas os
néscios não trazem na testa o dístico de sua necedade; e, se é certo que Soares
não podia encadear duas frases sem ferir o senso comum, também é certo que
muitas mulheres perdoam tudo, até a tolice, em ouvindo tecer um gabo às suas
graças naturais.
Ora,
Soares começava por aí, o que foi meio caminho andado. Fernanda, vendo que o
rapaz era da mesma opinião que o seu espelho, não indagou de outras qualidades;
deu-lhe o sufrágio... não do coração, mas do espírito. O coração veio mais
tarde.
Ter um
preferido, como objeto de guerra para os mais, e ver assim mais requestada a
sua preferência, era trilhar o caminho das outras e ficar na altura do bom tom.
Fernanda, desde o primeiro dia, mostrou-se tão hábil como as outras.
Mas quem
pode lutar com um néscio em ele tomando ao sério o seu papel? Soares era ousado.
Não tendo
consciência da nulidade do seu espírito, obrava como se fosse um espírito
eminente, de modo que conseguia aquilo que nenhum homem avisado fora capaz de
conseguir.
Deste
modo, ao passo que a ausência de Fernando se prolongava, iam calando no espírito
as declarações reiteradas de Soares, e o coração de Fernanda foi pouco a pouco
cedendo o amor antigo ao recente amor.

Veio a comparação
(a comparação, que é a perdição das mulheres). Fernando amava com toda a sinceridade e singeleza do
seu coração; Soares amava de modo diverso; sabia entremear uma declaração com
três perífrases e dois tropos, destes que já cheiram mal, por andarem em tantas
bocas, mas que Fernanda ouvia com encanto porque era uma linguagem nova para
ela.
Finalmente,
um dia declarou-se a vitória de Soares no coração de Fernanda, não sem alguma
luta, à última hora, e que não era mais do que um ato voluntário de Fernanda
para tranqüilizar a consciência e deitar a sua traição para as costas do destino.
O destino
é o grande culpado de todas as más ações da humanidade inocente...
Um dia
Soares, tendo previamente indagado das posses de Fernanda, foi autorizado por
esta a pedi-la em casamento.
Madalena
não deu logo o seu consentimento; quis antes consultar Fernanda e ver até que
ponto era séria a nova resolução de sua filha.
Fernanda
declarou amar deveras o rapaz, e fez depender a sua vida e felicidade de tal
casamento.
Madalena
julgou dever guiar aquele coração que lhe parecia transviado. Foi luta vã:
Fernanda estava inabalável. Depois de três dias de trabalho, Madalena declarou
a Fernanda que consentia no casamento e mandou chamar Soares para dizer-lhe a
mesma coisa.
— Mas
sabes tu, perguntou a boa mãe à sua filha, sabes a que vais expor o coração de
Fernando?
— Ora! há
de sentir um pouco; mas depois esquecer-se-á...
— Julgas
isso possível?
— Por que
não? E quem sabe o que ele estará fazendo? Os países aonde foi talvez lhe dêem
alguns novos amores... É uma por outra.
—
Fernanda!
— Esta é a
verdade.
— Está
bem, Deus te faça feliz.
E, tendo
chegado o namorado pintalegrete, Madalena deu-lhe verbal e oficialmente a filha
em casamento.
O
casamento efetuou-se pouco depois.
Ouvindo
esta narração, Fernando estava aturdido. Desfazia-se em névoa a esperança
suprema das suas ambições de moço. A donzela casta e sincera que supunha vir
encontrar desaparecia para dar lugar a uma mulher de coração pérfido e vulgar
espírito.
Não pôde
reter algumas lágrimas; mas poucas foram; às primeiras palavras de sua mãe
adotiva pedindo-lhe coragem, Fernando ergueu-se, enxugou os olhos e prometeu
não abater-se. Procurou mesmo ficar alegre. A pobre Madalena receou alguma
coisa e consultou Fernando sobre os seus projetos.
— Oh!
descanse, minha mãe, respondeu este; supõe talvez que eu me mate ou mate
alguém? Juro-lhe que não farei nem uma nem outra coisa. Olhe, juro por
isto.
isto.
E Fernando
beijou respeitosamente a cabeça encanecida e veneranda de Madalena.
Passaram-se
alguns dias depois da chegada de Fernando. Madalena, vendo que pouco a pouco se
tranqüilizava o espírito de Fernando, tranqüilizou-se também.
Um dia
Madalena, ao entrar Fernando para jantar, disse-lhe:
—
Fernando, sabes que Fernanda vem hoje visitar-me?
— Ah!
Fernando
não pensara nunca que Fernand a podia visitar sua mãe e encontrar-se com ele em casa. Todavia, depois da primeira
exclamação, pareceu refletir alguns segundos e disse:
— Isso que
tem? Ela pode vir; eu cá estou: somos dois estranhos...
Madalena
ficou desta vez plenamente convencida de que Fernando não sentia mais nada por
sua filha, nem amor, nem ódio.
À noite,
com efeito, na ocasião em que Fernando se preparava para ler à sua mãe uns
apontamentos de viagem que estava escrevendo, parou à porta um carro conduzindo
Soares e Fernanda.
Fernando
sentiu palpitar-lhe violentamente o coração. Duas lágrimas, as últimas, saltaram-lhe
dos olhos e correram pelas faces abaixo. Fernando enxugou-as ocultamente.
Quando Madalena olhou para ele, estava completamente calmo.
Entraram
os dois.
O encontro
de Fernando e Fernanda não foi sem alguma comoção em ambos; mais apaziguada em
seus amores por Soares, Fernanda entrava já na reflexão, e a vista de Fernando
(que aliás ela sabia já ter voltado) era para ela uma exprobração viva do seu
procedimento.
Era mais:
a presença do primeiro amante lembrava-lhe os primeiros dias, a candura do
primeiro afeto, os sonhos de amor, sonhados por ambos, na doce intimidade do
lar doméstico.
Quanto a
Fernando, sentia também que lhe voltavam estas lembranças ao espírito; mas, ao mesmo tempo, unia-se à
saudade do passado um desgosto pelo aspecto presente da mulher que amara.
Fernanda estava uma casquilha. Ar, maneiras, olhares, tudo era característico
de uma revolução completa em seus hábitos e em seu espírito. Até a palidez
natural e poética do rosto desaparecia debaixo de umas posturas de carmim, sem
tom nem graça, aplicadas unicamente para afetar um gênero de beleza que não
tinha.
Esta mudança
era resultado do contato de Soares. Com efeito, desviando os olhos de Fernanda
para cravá-los nos do homem que lhe roubara a sua felicidade, Fernando pôde ver
nele um tipo completo do pintalegrete moderno.
Madalena
apresentou Fernando a Soares, e os dois retribuíram friamente o cumprimento do
estilo. Por que friamente? Não é que Soares já soubesse do amor que houvera
entre sua mulher e Fernando. Não quero deixar supor aos leitores uma coisa que
não existe. Soares era de natural frio, como um homem cujas preocupações não
vão além de certas futilidades. Quanto a Fernando, compreende-se bem que não era o mais próprio a
cumprimentar calorosamente o
marido de sua ex-amada.
marido de sua ex-amada.
A conversa
entre todos foi indiferente e fria; Fernando procurava e requintava nessa
indiferença, nos seus parabéns a Fernanda e na narração que fazia das viagens.
Fernanda estava pensativa e respondia por monossílabos, sempre com os olhos
baixos.
Tinha
vergonha de fitar aquele que primeiro lhe possuíra o coração, e que era agora o
remorso vivo do seu amor passado.
Madalena
procurava conciliar tudo, aproveitando a indiferença de Fernando para estabelecer
uma intimidade sem perigo entre as duas almas que um terceiro divorciara.
Quanto a
Soares, esse, tão frio como os outros, dividia a sua atenção entre os interlocutores
e a própria pessoa. A um espírito atilado bastavam dez minutos para conhecer a
fundo o caráter de Soares. Fernando no fim de dez minutos sabia com que homem lidava.
A visita
durou pouco menos do que costumava. Madalena tinha por costume conduzir sua
filha à casa todas as vezes que esta a visitava. Desta vez, quando Soares a convidou a tomar lugar no carro,
Madalena pretextou um ligeiro incômodo e pediu desculpa. Fernando compreendeu
que Madalena não queria expô-lo a ir também levar Fernanda até à casa;
interrompeu a desculpa de Madalena e disse:
— Por que
não vai, minha mãe? É perto a casa, creio eu...
E dizendo
isto interrogou Soares com o olhar.
— É perto,
é, disse este.
— Pois
então! continuou Fernando; vamos todos, e depois voltamos nós. Não quer?
Madalena
olhou para Fernando, estendeu-lhe a mão e com um olhar de agradecimento
respondeu:
— Pois
sim!
— Devo
acrescentar que eu não posso ir já. Tenho de ir buscar uma resposta daqui a
meia hora; mas apenas estiver livre lá vou ter.
— Muito
bem, disse Soares.
Fernando
informou-se da situação da casa, e despediu-se dos três, que entraram para o
carro e apartaram-se.
A mão de
Fernanda tremia quando esta a estendeu ao moço. A dele não; parece que a maior indiferença reinava naquele
coração. Fernanda ao sair não pôde deixar
de soltar um suspiro.
Fernando
não tinha resposta alguma a ir buscar. Não queria utilizar-se de objeto algum
que pertencesse a Soares e Fernanda; desejava trazer sua mãe, mas em carro que não
fosse daquele casal.
Com
efeito, depois de deixar correr o tempo, para verossimilhança do pretexto, vestiu-se e saiu. Chamou o primeiro carro que
encontrou e tomou a direção da casa de Soares.

Aí o
esperavam para tomar chá.
Fernando
mordeu os beiços quando lhe declararam isto; mas, cobrando o sangue-frio, disse
que não podia aceitar, visto ter já tomado chá com a pessoa de quem fora buscar
a resposta.
Não
escapou a Madalena o motivo das duas recusas, a do carro e a do chá.
Às dez
horas e meia Madalena e Fernando estavam de volta para casa.
Passaram-se
vinte dias depois destas cenas, e sempre que elas se repetiam Fernando era o
mesmo, respeitoso, frio e indiferente.
Madalena,
tranqüila até certo ponto, sentia profundamente que Fernando não voltasse à
franca alegria dos tempos passados. E para fazer-lhe entrar alguma nova luz no
espírito, a boa mãe instava com ele para que entremeasse os estudos e os
trabalhos de sua profissão com alguns divertimentos próprios da mocidade.
— Por que
não passeias? Por que não vais aos bailes? Por que não freqüentas as reuniões a
que és convidado? Por que foges do teatro, de tudo o que a mocidade procura e
precisa?
— Não
tenho gênio para essa vida agitada. A solidão é tão boa! ...
Enfim, um
dia Madalena conseguiu que Fernando fosse ao teatro lírico com ela. Cantava-se
a Favorita. Fernando ouviu pensativo e absorto aquela música que em tantos
lugares fala à alma e ao coração. O ato final sobretudo deixou-o comovido.
Estas distrações repetiram-se algumas vezes.
De
concessão em concessão, Fernando achou-se repentinamente freqüentando com
assiduidade os bailes, os teatros e as reuniões. O tempo e as distrações iam apagando
no espírito de Fernando os últimos vestígios de um destes ressentimentos que,
em certo grau, é amor disfarçado.
Já se
aproximava de Fernanda sem comoção nem acanhamento: sua indiferença era mais
espontânea e natural.
Afinal de
contas, pensava ele, aquele coração, tão volúvel e estouvado, não devia ser
meu; a traição mais tarde seria mais funesta.
Esta
reflexão filosófica era sincera e denotava bem como a razão dominava já, no espírito
de Fernando, as memórias saudosas do passado.
Mas
Fernanda? Oh! o estado dessa era outro. Aturdida a princípio com a vista de Fernando;
um pouco arrependida depois, quando lhe pareceu que Fernando morria de dor e pesar; mais tarde, despeitada,
vendo e conhecendo a indiferença que respiravam as maneiras e as palavras dele;
finalmente combatida por mil sentimentos
diversos, o despeito, o remorso, a vingança; desejando fugir-lhe e sentindo-se
arrastada para o homem que desprezara; vítima de um conflito entre o
arrependimento e a vaidade, a esposa de Soares sentiu que se operava uma revolução no seu espírito e na sua vida.
Em mais de
uma ocasião Fernanda fizera sentir, em palavras, em olhares, em suspiros, em
reticências, o estado do seu coração. Mas Fernando, a quem já não causava
comoção a presença de Fernanda, não dava fé das revelações, às vezes demasiado
eloqüentes, da esposa do pintalegrete.
Mas quem
dava fé era o pintalegrete. Sem dispor de grande atilamento, o jovem Soares
chegara a perceber que o espírito de sua mulher sofria alguma alteração. Começou
a suspeita pela indiferença com que Fernanda o acompanhara na
discussão dos méritos de duas novas qualidades
de posturas do rosto, assunto grave, em que Soares desenvolvia riquezas de
dialética e grande soma de elevação.
Prestou mais atenção e convenceu-se de que Fernanda tinha alguma coisa no
espírito que não era a pessoa dele, e como marido previdente, tratou de indagar
o motivo e o objeto da preocupação.
discussão dos méritos de duas novas qualidades
de posturas do rosto, assunto grave, em que Soares desenvolvia riquezas de
dialética e grande soma de elevação.
Prestou mais atenção e convenceu-se de que Fernanda tinha alguma coisa no
espírito que não era a pessoa dele, e como marido previdente, tratou de indagar
o motivo e o objeto da preocupação.
Seus
esforços foram vãos ao princípio. Despeitado interrogou Fernanda, mas esta não só não o iluminou na dúvida, senão que o
desconcertou com uma apóstrofe de simulada indignação.
Soares
julgou dever-se recolher aos quartéis da expectativa.
Estavam as
coisas neste pé quando o parente de Madalena que levara Fernando à Europa deu
um sarau por motivo do aniversário de sua mulher.
Não só
Fernando, como Soares e Fernanda, foram convidados para aquele sarau.
Fernando,
como disse, já ia a essas reuniões por vontade própria e natural desejo de
aviventar o espírito.
Neste
alguma coisa mais o esperava, além da simples e geral distração.
Quando
Fernando chegou ao sarau, seriam onze horas da noite, cantava ao piano uma moça
de 22 anos, alta, pálida, de olhos e cabelos pretos, a quem chamavam todos
Teresa.
Fernando
chegou a tempo de ouvir toda a canção que a moça cantou, inspirada e febril.
Quando ela
acabou, um murmúrio de aprovação soou em toda a assembléia, e no meio da
confusão em que o entusiasmo deixara todos, Fernando, mais instintiva que
voluntariamente, atravessou a sala e foi dar o braço a Teresa para conduzi-la à sua cadeira.
Nesse
momento o anjo dos destinos escrevera no livro dos amores mais um amor, o de
Teresa e Fernando.
O súbito
efeito produzido no coração de Fernando pelo canto de Teresa não foi só resultado
da magia e do sentimento com que esta cantara. Durante as primeiras notas, isto
é, quando a alma de Teresa ainda se não tinha derramado toda na voz argentina e
apaixonada, Fernando pôde conversar com alguns rapazes a respeito da cantora.
Disseram-lhe que era uma donzela desprezada no amor que votara a um homem;
profetizaram a paixão com que ela cantaria, e por fim indicaram-lhe, a um lado
da sala, a figura indiferente ou antes zombeteira do traidor daquele coração. A
identidade das situações e dos sentimentos foi o primeiro elo da simpatia de
Fernando para com Teresa. O canto confirmou e desenvolveu a primeira impressão.
Quando Teresa acabou, Fernando não se pôde ter e foi prestar-lhe o apoio do seu
braço para voltar à cadeira que ficava junto de sua mãe.
Durante a
noite Fernando sentiu-se mais e mais impressionado pela bela desdenhada. No fim
do sarau estava decidido. Devia amar aquela mulher e fazer-se amar por ela.
Mas como?
Ainda no coração de Teresa existia alguma coisa da flama antiga. Era aquele o estado em que o seu coração ficou
logo desde que soube da perfídia de Fernanda. O moço contava com o
apaziguamento da primeira paixão, de modo que um dia os dois corações
desprezados se ligassem em um mesmo amor e envergonhassem por uma união sincera aqueles
que os não tinham compreendido.
Esta nova
mudança no espírito de Fernando escapou, a princípio, à mulher de Soares. Devo
dizê-lo, se ainda algum leitor não o compreendeu, que Fernanda estava de novo apaixonada por Fernando; mas
agora era um amor egoísta, calculado, talvez misturado de remorso, um amor com
que ela pretendia, resgatando a culpa, quebrar de uma vez a justa indignação do
seu primeiro amante.
Não
reparando o moço nas reticências, nos suspiros, nos olhares, em todos esses anúncios
do amor, ficando insensível às mudas revelações da esposa de Soares, resolveu esta ser mais explícita um dia em que
conversava a sós com Fernando.
Era um mau
passo que dava, e em sua consciência de mulher casada, Fernanda conhecia o erro
e temia as conseqüências. Mas o amor próprio leva longe quando se apossa do
coração humano. Fernanda, depois de hesitar um pouco, determinou-se a tentar o seu projeto. Fernando
foi de bronze. Quando a conversação tomou um caminho mais positivo, Fernando
fez-se sério e declarou à mulher de Soares que não podia amá-la, que o seu
coração estava morto, e que, mesmo que revivesse, seria pela ação de um hálito
mais puro, à luz de um olhar mais sincero.
Dito isto,
retirou-se. Fernanda não desesperou. Pensou que a constância seria uma arma
poderosa, e acreditou que só no romance ou na comédia podiam existir tais firmezas de caráter.
Esperou.
Esperou em
vão.
O amor de
Fernando por Teresa crescia mais e mais; Teresa atravessava, uma por uma, as
fases por que passara o coração de Fernando. Era outra; o tempo trouxe o
desprezo e o esquecimento. Uma vez esquecido o primeiro amor, que restava mais?
Cicatrizar as feridas adquiridas no combate; e que melhor meio de cicatrizá-las
que aceitando o concurso de uma mão amiga e simpática? Tais foram os
preliminares do amor de Fernando e Teresa. O conforto comum trouxe a afeição recíproca. Um dia descobriu Teresa que
amava aquele homem. Quando dois corações se querem entender, ainda que falem
hebraico, descobrem-se logo um ao outro.
No fim de algum tempo foi jurada entre ambos uma sincera e eterna fidelidade.
Fernanda
não foi das últimas a saber da nova paixão de Fernando. Desesperou. Se o coração entrava por pouco no amor que
confessara ao médico, se era mais o amor-próprio a razão de ser dessa paixão
culpada, foi ainda o amor-próprio, e mais indomável, que se apoderou do
espírito de Fernanda e induziu-a a queimar o último cartucho.
Desgraçadamente,
nem o primeiro nem o último cartucho eram de incendiar, com um fogo criminoso,
o coração de Fernando. O caráter de Fernando era mais elevado que o dos homens que rodeavam a esposa
de Soares, de maneira que, supondo dominar, Fernanda achou-se dominada e
humilhada.
Neste
ponto devo transcrever uma carta de Fernando ao parente em cuja casa vira
Teresa pela primeira vez.
Meu bom
amigo, dizia ele, está na sua mão concorrer para a minha felicidade, ou antes
completá-la, porque foi em sua casa que eu comecei a adquiri-la.
Sabe que
amo a D. Teresa, aquela interessante moça abandonada no amor que votava ao F...
Conhece ainda a história do meu primeiro amor. Somos dois corações igualados
pelo infortúnio; o amor pode completar a nossa fraternidade.
E deveras
nos amamos, nada se pode opor à minha felicidade; o que eu desejo é que me
ajude neste negócio, assistindo o meu acanhamento com o seu conselho e a sua mediação.
Tenho
ânsia de ser feliz; é a melhor ocasião; entrever, por uma porta aberta, as glórias
do paraíso, sem fazer um esforço para gozar da luz eterna, fora loucura. Não
quero para o futuro um remorso e uma dor.
Conto que
as minhas aspirações sejam satisfeitas e que eu tenha mais um motivo de ser-lhe eternamente grato. — Fernando.
Daí a dois
dias, graças à intervenção do referido parente, que aliás fora desnecessária,
Teresa estava prometida a Fernando.
O último
lance desta simples narrativa passou-se em casa de Soares.
Soares,
mais e mais desconfiado, lutava com Fernanda para conhecer as disposições do seu coração e as determinações
de sua vontade. Andava escuro o céu daquele casamento, realizado sob tão maus
auspícios. Desde muito que a tranqüilidade desaparecera dali, deixando o
desgosto, o tédio, a desconfiança.
— Se eu
soubera, dizia Soares, que no fim de tão pouco tempo a senhora me faria beber
fel e vinagre, não teria prosseguido em uma paixão que foi o meu castigo.
Fernanda,
muda e distraída, mirava-se de quando em quando em um psyché, corrigindo o penteado ou simplesmente
admirando a esquivança desarrazoada de Fernando.
Soares
insistia no mesmo tom meio sentimental.
Afinal,
Fernanda respondia desabridamente, exprobrando-lhe o insulto que fazia à sinceridade dos seus protestos.
— Mas
esses protestos, disse Soares, é que eu não ouço; é exatamente o que eu peço;
jure que eu estou em erro e fico contente. Há uma hora que lho digo.
— Pois
sim...
— O quê?
— Está em
erro.
—
Fernanda, juras-me isso?
— Juro,
sim...
Entrou um
escravo com uma carta para Fernanda; Soares deitou um olhar para o sobrescrito
e reconheceu a letra de Fernando. Contudo, depois do juramento de Fernanda não quis ser o primeiro a ler a
carta, esperou que ela começasse.
Mas
Fernanda, estremecendo à vista da letra e do mimo do papel, guardou a carta,
mandando embora o escravo.
— De quem
é essa carta?
— É de
mamãe.
Soares
estremeceu.
— Por que
não a lês?
— Já sei o
que é.
— Oh! é
demais!
E
levantando-se de sua cadeira dirigiu-se para Fernanda.
— Vamos
ler essa carta.
— Depois...
— Não; há
de ser já!
Fernanda
resistiu, Soares insistiu. Depois de algum tempo viu Fernanda que lhe era
impossível guardar a carta. E por que a guardaria? Fernanda cuidava ainda que,
melhor avisado, Fernando voltasse a aceitar o coração ofertado e recusado. A vaidade produzia este erro.
Aberta a
carta, eis o que Soares leu:
Mana.
Sábado dezessete caso-me eu com D. Teresa G... É um casamento
de amor. Peço-lhe que dê parte disto a meu cunhado, e que ambos venham ornar a
pequena festa desta união. Seu irmão. — Fernando.
A decepção
de Fernanda foi grande. Mas pôde dissimulá-la algum tempo; Soares vendo o
conteúdo da carta e acreditando que sua mulher apenas quisera entretê-lo com um
engano, pagou-lhe em beijos e carícias a felicidade que semelhante descoberta
lhe deu.
É inútil
dizer que Fernanda não foi assistir ao casamento de Fernando e Teresa. Pretextou
moléstia e lá não pôs os pés. Nem por isso a festa foi menos brilhante. Madalena
estava feliz e contente vendo o contentamento e a felicidade de seu filho.
Daí para
cá, vai para três anos, o casamento de Fernando e Teresa é um paraíso, em que ambos, novo Adão e nova Eva, gozam da
paz do espírito, sem intervenção da serpente nem conhecimento do fruto do mal.
Não menos
feliz é o casal Soares, ao qual voltaram, depois de algum tempo, os dias saudosos da pieguice e da puerilidade.
Se algum
leitor achar esta história muito nua de interesse, reflita nestas palavras que
Fernando repete aos amigos que costumam visitá-lo:
— Consegui
uma das coisas mais raras no mundo: a perfeita conformidade das intenções e dos
sentimentos entre duas criaturas, tão longe educadas e tanto tempo separadas e
desconhecidas uma para outra. É que aprenderam na escola do infortúnio.
Vê-se, ao
menos nisto, uma máxima em ação.
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Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1866. Disponível
digitalmente no site: Domínio
Público
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