quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Raul Machado: "5 Poemas"

AS ESTÁTUAS
Dentro da noite morta, sonham as estátuas...
Espada em punho, montado no cavalo de bronze,
Recorda um general o campo de batalha:
Tarde rica de sol, num céu sem nuvens...
E, na moldura de oiro dessa tarde,
O quadro em sangue vivo do combate:
Irrompem no ar os toques de cornetas,
Gritos de homens... relinchos de cavalos.
Rolam carretas sobre o chão varrido
Pelo granizo em fogo da metralha.
E em toda parte cruzam, coruscantes,
Entre os trovões da artilharia grossa,
Os relâmpagos de aço das espadas.
Mas, por fim,
A fuga e o desbarato do inimigo!
E o momento de glória
Do Pavilhão da Pátria desfraldado,
Em sinal de Vitória!

Que dia! E que momento!
Era o seu nome que vencia o Tempo!
Era o seu vulto que invadia a História
E ia ficar, eterno, numa estátua,
Vencendo a própria Morte,
Qual vencera o inimigo!

Em outro pedestal, num jardim sossegado,
Sonha a estátua de um poeta, em recanto florido.
Tênue raio de luar, filtrado na folhagem,
Improvisa-lhe à fronte um diadema de prata.

Lembra os versos que fez... Idéia e sentimento!
A frase musical, de um colorido novo,
Fulgurando em clarões de beleza emotiva.
E pensar ouvir ainda,
Num milagre de enlevo,
O último canto de amor, que escreveu em soluços,
Repetido em murmúrio
Pela brisa que passa entre as cordas retesas
Da sua lira de bronze...

Em frente a um casarão: – templo de ciência e estudo,
Soturno de feição, antiquado nas linhas,
Num pedaço de terra arenosa e sem flores,
Vê-se a herma de um sábio.

Tudo nele traduz vida de pensamento:
Fronte enrugada, rosto grave, ar concentrado,
Como quem ainda está sangrando a Inteligência
Em busca da Verdade!

Dentro da noite morta, sonham as estátuas...

No silêncio contrito um murmúrio perpassa.
Não é asa do vento ou marulho das ondas...
Nem balouço de ramo, nem queda de folha...
É qualquer coisa que lembra
À alma do poeta em êxtase
Uma prece da Pátria agradecida,
Enquanto a noite acende nas Alturas,
Como um culto aos heróis,
As lâmpadas votivas das estrelas...
  


O MENSAGEIRO DE FLORES

Com uma cesta de flores sobre os ombros,
Lá ia o homem pobre pela rua:
uma festa de cores tropicais
em oferenda ao sol do meio-dia!

Seu destino lembrava o dos poetas:
ser portador de uma riqueza efêmera.
Porque a vida de glória das imagens
tem a beleza e a duração das flores.

E no próprio labor do seu ofício
havia ainda o encanto da poesia,
pois ele, muita vez, sem que o soubesse,
como improvisador de primaveras,
engrinaldou de rosas as “Madonas”;
pôs toalhas de perfume nos altares;
abriu recantos de jardins, à luz
de lampadários em salões festivos;
incendiou os bojos de cristal
com a flama vegetal das parasitas...
e coloriu o mármore das lápides
como um voto de saudade sobre túmulos...

Mas, de repente, um vendaval irrompe.
E entre nuvens de pó
E a dança exótica das folhas
à música bárbara do vento,
o homem pobre que levava as flores
vê, com os olhos de espanto e de tristeza,
seu pequeno jardim suspenso
desfeito pela fúria do tufão.

Rolam nos ares pétalas de rosas.
Parte-se a urna de prata das angélicas
e a estrela vegetal dos lírios brancos...
e se ensangüenta o espaço, a cada instante,
com os cálices de são Graal dos cravos rubros.

Ante o quadro vandálico e aflitivo,
num instintivo gesto de defesa,
cerrei os braços sobre o próprio peito
como quem protegia alguma coisa...

É que o tufão lembrava a hora presente,
destruidora de vidas e de almas,
hora que enche de sombras o destino
da espiritualidade... e da beleza.

E eu tinha, dentro em mim, no coração,
uma roseira do Éden florescendo
nas madrugadas de ouro da Poesia!
Lírios do vale sobre o altar do Sonho...
violetas humildes de Ilusão...
cravos vermelhos, cujos cálices ardiam
cheios do sangue quente da Paixão!



VENDEDORA DE BILHETES DE LOTERIA

Aquela mulher, de olhos tristonhos,
Que vende sortes de loteria,
Fala em riqueza, promete sonhos,
Com o “prêmio grande”, que tem na mão...
E assim (contraste feito ironia!)
Numa indigência, que mal encobre,
Fala em riqueza quem é tão pobre!
Promete oiro quem não tem pão!

De rua em rua, na amarga luta,
Com o olhar sumido, que o pranto molha
E a voz tão baixa, como uma prece...
Passa um banqueiro, que não a olha;
Passa um soldado, que a não escuta;
Passa um poeta, que ela entristece.

Se a chuva cai, não lhe importa a roupa,
Que até se lava com a chuva forte.
Só os bilhetes é que ela poupa!
Nem a doença lhe dá cuidados,
Pois a pobreza não teme a morte...

A noite chega. E ela, vencida,
Do ingrato ofício na luta em vão,
Retorna à casa, desiludida,
Depois de haver, por um dia inteiro,
Vendido aos outros tanta ilusão!



A ILUSÃO DO ESCRAVO

Homem, que odeias todas as grilhetas,
Onde existe, escondida, a liberdade?
Vê que o sol, as estrelas, os planetas,
malgrado a sua vida de esplendores
e a amplitude infinita do Universo,
têm o próprio destino acorrentado
a um círculo fatal de leis eternas...

E tu queres ser livre!

Vê o mar, com a força indômita das águas,
Arremessado no fragor das ondas
De encontro à indiferença dos rochedos,
Espumando de raiva, aprisionado
No limite de cárcere das praias...
E tu queres ser livre!
Olha a Terra em que vives orgulhoso
condenada a perpétuo movimento,
açoitada por múltiplos flagelos,
impotente ao furor das tempestades,
rolando as grossas lágrimas dos rios
pelo rosto de pedra das cascatas...
com as árvores erguendo para o céu
braços verdes, chamando liberdade,
e eternamente presas, como escravas,
às algemas ocultas das raízes!

E tu queres ser livre!

O mundo toma o aspecto que lhe emprestas:
A vida te aparece boa ou má
conforme a mutação do estado d’alma.
Nada existe sem causa ou sem origem...
Tua própria vontade só se exerce
Em razão dos motivos que a dirigem...

E tu pensas ser livre!

Homem! Atenta, enfim, nesta verdade:
serás sempre um vencido das paixões
que abrirão asas para erguer-te à glória
ou cerrarão teus punhos revoltados,
em arremesso de vingança e crime!

O Ódio te cega! O Amor te exalta! A morte te acobarda!
E tu pensas ser livre! E tu pensas ser livre!



TEMPORAL

Um rumor de trovões o espaço todo invade.
A látegos de fogo, o raio os céus recorta.
Chuva forte: – em caudal. Infinda escuridade.
E o vento, como um cão, uiva, de porta em porta.

No vale, nas rechãs, no campo, na cidade,
O vendaval, em fúria, as árvores entorta;
E no mar, aumentando o horror da tempestade,
A água cresce, a rugir, dentro da noite morta!

Oh! a dor da floresta, em contorções hediondas!
E a pobreza sem teto e o tormento dos ninhos!
E o destino das naus, cambaleando nas ondas!

E o naufrágio!... E o terror!... E o desespero forte!
E a desconsolação dos que vivem sozinhos,
Para o tédio... a amargura... o desânimo... a morte!


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Fonte:
Revista da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras: nº 7 - março de 2005

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