À SOMBRA DE MEU PAI
Hoje, pensando em
ti, fiquei parado, o coração aberto.
Tua sombra veio e
poisou levemente sobre o meu ombro cansado
e as tuas mãos
quase tocaram de leve os meus olhos que não te verão mais.
Ah, se o
impossível acontecesse.
Eu poderia
dizer-te como num triunfo:
– “Que tal o teu
filho, feliz como um rei?”
E o meu riso
vitorioso havia de convencer-te, finalmente.
Mas os meus olhos
se embaciaram
E a tua mão tremeu
de leve sobre o meu ombro cansado.
No entanto, quando
apareceste,
tu estavas sereno,
sereno,
infinitamente
sereno,
meu pai.
E agora, esta
noite, esta febre, esta voz que ninguém escuta.
(Que mundo se
forma
entre a sombra da
noite e a tua presença como um nevoeiro pálido!)
A voz chega de
longe, não é de esperança, nem de agonia.
É uma voz apenas.
Mas, que poder de sacudir as almas,
que poder de criar
e de destruir. Que força!
E, agora, de
repente, esse sopro de eternidade ou talvez de infância.
CANTIGA DE SOLITÁRIO
Os que deixei no
caminho,
sôbolos rios que
vão...
onde é que estão?
Onde é que estão
os que deixei no
caminho?
– Todos, todos já
dormindo
sôbolos rios que
vão
à escuridão.
Os que deixei no
caminho
se detiveram tão
cedo
que me deixaram
sozinho.
Os que deixei no
caminho
sôbolos rios que
vão...
onde é que estão?
Se havia sol no
caminho,
que pensamento os
deteve,
que fel, que
sombra, que espinho?
Os que deixei no
caminho
dormindo estão
sôbolos rios que
vão...
DESPEDIDA DE JOÃO ALPHONSUS
“Los que se van
para siempre
poco a poco nos
arrastam.”
E. Frugoni
Alguém te chama,
Alphonsus.
Alguém que está
presente e, no entanto, é a Ausência.
O chamado é tão
grave, não comporta lágrimas;
o caminho é tão
longo, não chegarias nunca.
Alguém te chama,
Alphonsus.
Que grande sorriso
sorris, de
repente.
Pensei que
tombavas
na noite, mas
noite
só esta.
PALAVRAS A RAINER MARIA RILKE
(Depois da leitura
de Rilke, de Cristiano Martins)
Estás agora diante
de nós em tua atmosfera própria e te transfiguras.
Não és apenas o
poeta, já te fizeste o canto.
Não és apenas a
voz. Se ainda te apegas às palavras
é para que te
levem ao intraduzível.
Se criar é
criar-se,
cantar é ser,
como realizar tua
integração, ó Rilke,
no sentido do
eterno,
no mundo do
invisível,
solitário e
desassistido em tua fome de absoluto e de irrealidade?
A vida é rápida,
um sopro,
nada?
Do fundo do
presente
a eternidade te
espia.
Por isso é que
alimentas
tua noção do
divino.
“E assim, meu
Deus, é cada noite:
sempre existem os
solícitos
que caminham,
caminham, e não te encontram.”
Mas, que espécie
de Deus se revela agora diante de teus olhos,
se recria em tua
consciência?
É antes “o vizinho
Deus”, não a “Torre antiqüíssima”,
não o “obscuro
Desconhecido, de eternidade em eternidade”.
Se és o seu
invólucro e a sua substância,
Por ti, que és a
Canção, é que Ele se formará e se fará rima;
em ti e contigo,
que te fazes o sonho, é que se perderá o seu sentido.
Assim é que o
interrogas,
na antevisão da
morte:
“Que será de ti,
meu Deus? Sinto-me inquieto.”
E inquieto
permaneces.
Pois quem, se tu
gritasses, te escutaria
dentre a ordem dos
anjos?
PALAVRAS A ISAÍAS
“De que servirá
que eu vos fira de novo?”
Isaías, 1,5.
Aqui estamos.
Olha:
de áspero mundo
vimos,
áspero e triste.
Que elo
invisível e tenso
nos submete,
súbito,
à tua eternidade?
Quiséramos
ouvir-te.
Entretanto tememos
tua ígnea palavra
– sangue, cristal
e chama.
Que pensarás de
nós?
Intacto, o teu
silêncio
fecha-se em ermo e
cinza.
E há tanto tempo
observas
nosso reino de
loucos.
Esta é a face
perplexa
Que se descobre;
aquela
é a destra que
oculta,
em nossa carne e
espírito,
viva, a marca do
eterno.
E eis que tudo
perdemos,
ou olvidamos.
Tudo.
Aqui estamos.
Olha!
É em nós que a
noite nasce.
Somos nós o deserto.
Que vale o teu
furor,
tua luz e teu
látego,
se já somos de
pedra?
Há musgo em nós.
Em nós
há musgo e há
sono. E há treva.
Há sobretudo
treva.
Nada nos salva. A
treva
já nos engole. É
noite.
É noite, Profeta,
é noite!
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Fonte:
Revista Brasileira - Fase VII - OUTUBRO-NOVEMBRO-DEZEMBRO 2002 - Ano IX - Nº 33 (Academia Brasileira de Letras)
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