quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Emílio Moura: "5 Poemas"

À SOMBRA DE MEU PAI

Hoje, pensando em ti, fiquei parado, o coração aberto.
Tua sombra veio e poisou levemente sobre o meu ombro cansado
e as tuas mãos quase tocaram de leve os meus olhos que não te verão mais.

Ah, se o impossível acontecesse.
Eu poderia dizer-te como num triunfo:
– “Que tal o teu filho, feliz como um rei?”
E o meu riso vitorioso havia de convencer-te, finalmente.

Mas os meus olhos se embaciaram
E a tua mão tremeu de leve sobre o meu ombro cansado.

No entanto, quando apareceste,
tu estavas sereno,

sereno,
infinitamente sereno,
meu pai.

E agora, esta noite, esta febre, esta voz que ninguém escuta.
(Que mundo se forma
entre a sombra da noite e a tua presença como um nevoeiro pálido!)
A voz chega de longe, não é de esperança, nem de agonia.
É uma voz apenas. Mas, que poder de sacudir as almas,
que poder de criar e de destruir. Que força!
E, agora, de repente, esse sopro de eternidade ou talvez de infância.

  

CANTIGA DE SOLITÁRIO

Os que deixei no caminho,
sôbolos rios que vão...
onde é que estão?
Onde é que estão
os que deixei no caminho?

– Todos, todos já dormindo
sôbolos rios que vão
à escuridão.

Os que deixei no caminho
se detiveram tão cedo
que me deixaram sozinho.

Os que deixei no caminho
sôbolos rios que vão...
onde é que estão?

Se havia sol no caminho,
que pensamento os deteve,
que fel, que sombra, que espinho?

Os que deixei no caminho
dormindo estão
sôbolos rios que vão...



DESPEDIDA DE JOÃO ALPHONSUS
Los que se van para siempre
poco a poco nos arrastam.”
E. Frugoni

Alguém te chama, Alphonsus.
Alguém que está presente e, no entanto, é a Ausência.

O chamado é tão grave, não comporta lágrimas;
o caminho é tão longo, não chegarias nunca.

Alguém te chama, Alphonsus.

Que grande sorriso
sorris, de repente.

Pensei que tombavas
na noite, mas noite
só esta.



PALAVRAS A RAINER MARIA RILKE
(Depois da leitura de Rilke, de Cristiano Martins)

Estás agora diante de nós em tua atmosfera própria e te transfiguras.
Não és apenas o poeta, já te fizeste o canto.
Não és apenas a voz. Se ainda te apegas às palavras
é para que te levem ao intraduzível.

Se criar é criar-se,
cantar é ser,
como realizar tua integração, ó Rilke,
no sentido do eterno,
no mundo do invisível,
solitário e desassistido em tua fome de absoluto e de irrealidade?

A vida é rápida,
um sopro,
nada?
Do fundo do presente
a eternidade te espia.
Por isso é que alimentas
tua noção do divino.

“E assim, meu Deus, é cada noite:
sempre existem os solícitos
que caminham, caminham, e não te encontram.”
Mas, que espécie de Deus se revela agora diante de teus olhos,
se recria em tua consciência?
É antes “o vizinho Deus”, não a “Torre antiqüíssima”,
não o “obscuro Desconhecido, de eternidade em eternidade”.

Se és o seu invólucro e a sua substância,
Por ti, que és a Canção, é que Ele se formará e se fará rima;
em ti e contigo, que te fazes o sonho, é que se perderá o seu sentido.

Assim é que o interrogas,
na antevisão da morte:
“Que será de ti, meu Deus? Sinto-me inquieto.”
E inquieto permaneces.

Pois quem, se tu gritasses, te escutaria
dentre a ordem dos anjos?



PALAVRAS A ISAÍAS
“De que servirá que eu vos fira de novo?”
Isaías, 1,5.

Aqui estamos. Olha:
de áspero mundo vimos,
áspero e triste. Que elo
invisível e tenso
nos submete, súbito,
à tua eternidade?
Quiséramos ouvir-te.
Entretanto tememos
tua ígnea palavra
– sangue, cristal e chama.

Que pensarás de nós?
Intacto, o teu silêncio
fecha-se em ermo e cinza.
E há tanto tempo observas
nosso reino de loucos.
Esta é a face perplexa
Que se descobre; aquela
é a destra que oculta,
em nossa carne e espírito,
viva, a marca do eterno.
E eis que tudo perdemos,
ou olvidamos. Tudo.

Aqui estamos. Olha!
É em nós que a noite nasce.
Somos nós o deserto.
Que vale o teu furor,
tua luz e teu látego,
se já somos de pedra?
Há musgo em nós. Em nós
há musgo e há sono. E há treva.
Há sobretudo treva.
Nada nos salva. A treva
já nos engole. É noite.

É noite, Profeta, é noite!


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Fonte:
Revista Brasileira - Fase VII - OUTUBRO-NOVEMBRO-DEZEMBRO 2002 - Ano IX - Nº 33 (Academia Brasileira de Letras)

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