sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Paulo Setúbal: "5 Poemas"

A FAZENDA
Ao meu querido Laerte

Seis horas... Salto do leito.
Que céu azul! Que bom ar!
Ai, como eu sinto no peito,
Moço, vivo, satisfeito,
O coração a cantar!

No meu quarto, alegre e claro,
Há rosas e girassóis.
Eu, com enlevo, reparo
No mínimo do seu preparo,
Na alvura dos seus lençóis.

Que doce encanto, e que graça,
Nesta simpleza aldeã,
Têm, sobre os vãos da vidraça,
Leves cortinas de cassa,
Bailando ao sol da manhã!

E da florida janela
Que eu abro de par em par,
- Verde painel, larga tela,
Da cor mais viva e mais bela,
Desdobra-se ao meu olhar!

A manhã, que é fresca e branda,
A rir, gloriosa e feliz,
Doura a casa veneranda,
Com sua quieta varanda
Cheirosa de bogaris...

Um renque de altos coqueiros
Circunda o velho pomar;
Toscos, enormes tabuleiros,
Ficam em frente os terreiros,
Com grãos em coco a secar.

Num quadro, curvo e sozinho,
Um pobre negro, o Bié,
A passo, devagarinho,
Com seu rumoroso ancinho,
Lá vai, rodando o café...

Depois - a máquina, a tulha,
O alpendre, o farto paiol:
Ah, como a roça se orgulha
De ver subir a fagulha
Que lança a máquina ao sol!

Branca, entre tufos, a escola,
Na estrada logo se vê:
Aí, nessa casinhola,
A filha de nhá Carola
Vive a ensinar o a b c.

Fulgem, na estrada tranquila,
Casinhas brancas de cal:
É a colônia que cintila,
Graciosa como uma vila,
Risonha como um pombal.

Ao longe, o pasto, a cancela,
- Um boi deitado no chão:
Paisagem rude e singela,
Daria fina aquarela
De puro estilo aldeão.

E além, para lá da ponte,
Ao lado do matagal,
Por sobre as lombas do monte,
Por todo o imenso horizonte,
- Alastra-se o cafezal!

O olhar, tonto, se extasia
Na cena rústica e chá;
E a gente sente a poesia.
Sente a radiosa alegria
De tão soberba manhã!

Absorto no panorama
Que assim contemplo, de pé,
Eis que uma velha mucama,
Surgindo à porta, me chama:
"Nhonhô, tá pronto o café...



A GENTE

Saio a passear... Claro e quente,
O sol na altura sorri.
Eu sigo, de alma contente,
Saudando esta boa gente
Dos sítios onde nasci!

Lá vou, por entre este povo,
Com tanta ingênua emoção,
Que eu, sem querer, me comovo,
Revendo agora, de novo,
Nhô Lau, seu Juca, o Bastião...

***

Aquele... Nossa Senhora!...
- Aquele é o seu Nicanor:
O mesmo, tão curvo agora,
Que foi, nos tempos de outrora,
O meu grande professor!

É um velho... Um republicano
Desde o tempo que lá vai!
Vive a falar no Floriano,
Dizendo que é veterano
Da guerra do Paraguai...

***

E este?... O Mendonça afamado,
O célebre caçador!
Traz a lapeana de lado,
E um perdigueiro malhado
Que salta no carreador.

Rude, feroz, barba intonsa,
Com a sua desfaçatez,
A todos narra o Mendonça
Terríveis caçadas de onça,
- Caçadas que nunca fez.

***

Lá está na foice, roçando,
O velho Jeca Morais:
Caboclo bom, gênio brando,
Apenas, de quando em quando,
Bebe algum trago demais.

***

No dia em que se endominga,
Vai ao povoado passear;
E à volta, cheirando à pinga,
Discute, provoca, xinga,
Querendo à força brigar!

***

Junto, o Nicola persiste
Em consertar um moirão;
Não sei se no mundo existe
Outro violeiro mais triste
Que esse infeliz mocetão.

Louca paixão, louca e imensa,
Sempre em angústias o traz:
É que ele, o poeta, só pensa
Na filha do Quim Proença,
Que gosta de outro rapaz.

Quando o luar desenrola,
No espaço, o místico alvor,
Sonhando um sonho, o Nicola
Põe-se a chorar na viola
As mágoas do seu amor...

***

Guiando os bois do seu carro,
Que ringe num alto som,
Nhô João, na estrada de Barro,
Lá vai, pitando um cigarro,
Cheiroso de fumo bom.

Com seu enorme trabuco,
Calça xadrez, pé no chão,
Na venda do Zé Macuco,
Sentado à mesa do truco,
- Que noites passa nhô João!

***

Ao longe, num largo trote,
Com elegâncias de peão,
- Bombacha, espora e chicote -
Passa na estrada o Mingote,
Montado num alazão.

Moço dos mais arrogantes,
De claro olhar, claro e azul,
Conta as paixões delirantes
Que teve em terras distantes,
Ao vir com tropas do Sul...

***

Eu sigo... Festivamente,
O sol na altura sorri;
Assim, risonho e contente,
Revejo toda esta gente
Dos sítios onde eu nasci...



VIDA CAMPÔNIA

Como um caboclo bem rude,
Eu vivo aqui, nesta paz,
Recuperando a saúde,
Que eu esbanjei, quanto pude,
Nas tonteiras de rapaz.

Mal brilha o primeiro raio
Da aurora rubra e louçã,
Eu monto um fogoso baio,
E alegre, e lépido, saio
Pelo esplendor da manhã.

Lorde, o meu bravo cachorro,
Vem pela estrada a saltar:
E a várzea, e os pastos, e o morro,
Tudo, a galope, eu percorro,
Numa alegria sem par.

Do mato, cerrado e umbroso,
Vêm cheiros de manacás;
Num pau-d'alho, alto e frondoso,
Vai um concerto furioso
De bem-te-vis e sabiás.

Vespas, cor de ouro brunido,
Lentejouladas de luz,
Fazem, com surdo zumbido,
Num tronco já carcomido,
O escasso mel dos enxus.

Fulguram, pelos caminhos,
Gotas de luz, como sóis;
Ruflos, canções, burburinhos,
Noivado em todos os ninhos,
Por toda a relva, aranhóis.

E em tudo quanto eu diviso,
Há tal brilho tal clarão,
Como se, do paraíso,
Deus acendesse um sorriso
Em cada ervinha do chão.

Volto... Os caboclos, no eito,
Vão desbastando os juás.
Eu venho tão satisfeito,
Como se houvesse em meu peito
- Um baile de tangarás!

Apeio. E então vivo e moço,
No claro terno de brim,
Vou eu, com grande alvoroço,
Sentar-me à mesa do almoço,
Que espera apenas por mim.

Risonha, a fumaça voa
Em densos, cálidos véus:
É o lombo, é a fava, é a leitoa,
- Toda a cópia, farta e boa,
Dos nossos ricos pitéus!

Depois, ao longo do dia,
Ferve, requeima o verão.
E há o pêssego, a melancia,
A fruta nova e sadia
Colhida em plena estação.

À noite, o luar, que fulgura,
Por tudo estende o seu véu.
Brilham estrelas na altura.
Uma infinita doçura
Penetra os campos e o céu.

Nessa calma, enquanto rola
A lua pela amplidão,
Subitamente se evola
O som duma grafonola,
Quebrando a paz do sertão.

Num timbre gasto e confuso,
Pelo silêncio rural,
Ecoa a voz do Caruso,
Velhas canções em desuso,
E fados de Portugal...

Nisto, o relógio badala:
Dez horas. Quê? Já é tarde assim?
Toca a dormir! Fechem a sala!
A casa inteira se cala,
Tomba um silêncio sem fim

Cheiro acre, de mangerona,
Lá fora embalsama o ar;
Tudo se aquieta. Ressona...
Eis que uma tarda sanfona
Passa na estrada, a chorar.



CHIQUITA

"Bom dia! Sempre bonita?"
- É assim que eu vou, de manhã,
Saudar a linda Chiquita,
Que, toda em frios, tirita
No seu vestido de lã.

Maneiras brandas e amenas,
Olhos de negro fulgor,
Chiquita, a flor das morenas,
Com seus quinze anos apenas,
É um mimo de graça e amor.

De estranho tédio ferida
No seu colégio francês,
Quisera, langue e abatida,
Mudar um pouco de vida,
Passar nos campos um mês.

E em festa e risos, agora,
Nos ares bons do sertão,
Chiquita se revigora,
E alegra-se, e viça, e cora,
Como uma rosa em botão.

Mal surge, fresca e orvalhada,
No céu azul, a manhã,
Saímos nós pela estrada,
Com alma leve, e dourada
Pela alegria mais sã.

Que graça!... Ela tudo admira:
O campo, as roças, os bois.
Às vezes passa um caipira,
Que, com espanto, nos mira,
E fica a rir de nós dois!

Em casa, o dia inteiro, ela
Faz mil perguntas pueris.
Ah, como é ingênua e singela!
Conversa. Ri. Tagarela.
É um pássaro feliz!

Sol a pino, a todo transe,
Quer ir saltar no café;
E à volta, sem que descanse,
Começa a ler um romance,
Ou trabalhar num crochê

De quando em quando, um espinho
Sangrar o peito me vem.
A tarde inteira, sozinho,
Sentado ao pé do caminho,
Fico a lembrar-me de alguém.

Eis que ela chega, de branco,
Cabelo negro, em bandós;
Festiva, num riso franco,
Ali, no pobre barranco,
Sentamos os dois a sós...

Na tarde azul, merencória,
Dum sossego espiritual,
Chiquita, como uma glória,
Repete-me toda a história
Da vida de colegial.

Então, nesse ermo pacato,
Ela, menina e mulher,
Relembra, fato por fato,
As diversões do internato,
Os ralhos da Notre-Mère...

Fala... E eu, ouvindo a macia
Brandura do seu falar,
Sinto, no olhar que me envia,
A doce melancolia
Do seu nostálgico olhar.

Não há feitiço que prenda
Como o dulçor dessa voz.
Assim, sem que ela o compreenda,
Chiquita é o sol da fazenda,
É a festa de todos nós!


 
EU TE AMO MUITO

De todos que me beijaram
De todos que beijei

De todos que me abraçaram
De todos que abracei

São tantos que me amaram
São tantos que amei

Mas tu (que rude contraste)
Tu que jamais beijastes
Tu que jamais abracei
Só tu nesta alma ficaste
De todos que amei...

 
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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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