TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é
ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte
estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de
repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma
parte
na outra parte
— que é uma
questão
de vida ou morte —
será arte?
O AÇÚCAR
O branco açúcar
que adoçará meu café
nesta manhã de
Ipanema
não foi produzido
por mim
nem surgiu dentro
do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao
paladar
como beijo de
moça, água
na pele, flor
que se dissolve na
boca. Mas este açúcar
não foi feito por
mim.
Este açúcar veio
da mercearia da
esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de
açúcar em Pernambuco
ou no Estado do
Rio
e tampouco o fez o
dono da usina.
Este açúcar era
cana
e veio dos canaviais
extensos
que não nascem por
acaso
no regaço do vale.
Em lugares
distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não
sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e
colheram a cana
que viraria
açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este
açúcar
branco e puro
com que adoço meu
café esta manhã em Ipanema.
MEU PAI
meu pai foi
ao Rio se tratar
de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo
com
o nome da loja
dobrou
a nota de compra
guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai
dizer
que eu nunca
estive
no Rio de Janeiro
CANTIGA PARA NÃO MORRER
Quando você for se
embora,
moça branca como a
neve,
me leve.
Se acaso você não
possa
me carregar pela
mão,
menina branca de
neve,
me leve no
coração.
Se no coração não
possa
por acaso me
levar,
moça de sonho e de
neve,
me leve no seu
lembrar.
E se aí também não
possa
por tanta coisa
que leve
já viva em seu
pensamento,
menina branca de
neve,
me leve no
esquecimento.
EXTRAVIO
Onde começo, onde
acabo,
se o que está fora
está dentro
como num círculo
cuja
periferia é o
centro?
Estou disperso nas
coisas,
nas pessoas, nas
gavetas:
de repente
encontro ali
partes de mim:
risos, vértebras.
Estou desfeito nas
nuvens:
vejo do alto a
cidade
e em cada esquina
um menino,
que sou eu mesmo,
a chamar-me.
Extraviei-me no
tempo.
Onde estarão meus
pedaços?
Muito se foi com
os amigos
que já não ouvem
nem falam.
Estou disperso nos
vivos,
em seu corpo, em
seu olfato,
onde durmo feito
aroma
ou voz que também
não fala.
Ah, ser somente o
presente:
esta manhã, esta
sala.
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Poemas publicados para divulgação da obra do grande Poeta.
Poemas publicados para divulgação da obra do grande Poeta.
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