quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Cláudio Manuel da Costa: "5 Poemas"

FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO
SONETO

A vós, canoras Ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós apartado;
A vós do pátrio Rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.
Vede a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de Fauno, ou de Pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.
Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
Aonde levantado
Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade,
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas
Em rendimentos mil, em glórias tantas,
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via
Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a Pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei se inda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo
Se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela Ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d’ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do Pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino que uma dura
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor, para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu Nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu como tinha
Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso
Desde a Pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu Pai, que de nada era ciente,
Assim pois prevenido
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da Ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega força tanta
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços...!
Onde te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mais ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela Ninfa, já roubada
Do Numen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da Deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata,
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência;
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte ímpia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou à verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Numen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo em meu dano,
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sobre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser ímpia uma Deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Que nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah Mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu Reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra;
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigos o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívios me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas que choro,
A Deidade absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De um grande Cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior Cidade.
As Ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o Deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus Engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura.



POLIFEMO
ÉCLOGA

Ó linda Galatéia,
Que tantas vezes quantas  
Essa úmida morada busca Febo,
Fazes por esta areia,
Que adore as tuas plantas
O meu fiel cuidado: já que Erebo
As sombras descarrega sobre o mundo,
Deixa o reino profundo:
Vem, ó Ninfa, a meus braços;
Que neles tece Amor mais ternos laços.

Vem, ó Ninfa adorada;
Que Ácis enamorado,
Para lograr teu rosto precioso,
Bem que tanto te agrada,
Tem menos o cuidado,
Menos sente a fadiga, e o rigoroso,
Implacável rumor, que eu n'alma alento.
Nele o merecimento.
Minha dita assegura;
Mas ah! que ele de mais tem a ventura. 

Esta frondosa faia
A qualquer hora (ai triste!)
Me observa neste sítio vigilante: 
Vizinho a esta praia
Em uma gruta assiste,
Quem não pode viver de ti distante.
Pois de noite, e de dia
Ao mar, ao vento às feras desafia
A voz do meu lamento:
Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.
Não sei, que mais pretendes.
Desprezas meu desvelo;
E excedendo o rigor da crueldade,
Com a chama do zelo
O coração me acendes:
Não é assim cruel a divindade.
Abranda extremo tanto;
Vem a viver nos mares do meu pranto:
Talvez sua ternura
Te faça a natureza menos dura.

E se não basta o excesso
De amor para abrandar-te,
Quanto rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo ofereço;
Esta obra do divino Alcimedonte,
Este branco novilho,
Daquela parda ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta,
Quem guarda amor, e zelos apascenta.



LISE
ROMANCE

Pescadores do Mondego,
Que girais por essa praia,
Se vós enganais o peixe,
Também Lise vos engana.

Vós ambos sois pescadores;
Mas com diferença tanta,
Vós ao peixe armais com redes,
Ela co'olhos vos arma.

Vós rompeis o mar undoso:
Para assegurar a caça;
Ela aqui no porto espera,
Para lograr a filada.

Vós dissimulais o enredo,
Fingindo no anzol a traça;
Ela vos expõe patentes
As redes, com que vos mata.

Vós perdeis a noite, e dia
Em contínua vigilância;
Ela em um só breve instante
Consegue a presa mais alta.

Guardai-vos, pois, pescadores,
Dos olhos dessa tirana;
Que para troféus de Lise
Despojos de Alcemo bastam.

Enquanto as ondas ligeiras
Desta corrente tão clara
Inundarem mansamente
Estes álamos, que banham;

Eu espero, que a memória
O conserve nestas águas,
Por padrão dos desenganos,
Por triunfo de uma ingrata.

E na frondosa ribeira
Deste rio, triste a alma
Girará sempre avisando,
Quem lhe soube ser tão falsa.



ANTANDRA
ROMANCE

Pastora do branco arminho,
Não me sejas tão ingrata:
Que quem veste de inocente,
Não se emprega em matar almas.

Deixa o gado, que conduzes;
Não o guies à montanha:
Porque em poder de uma fera,
Não pode haver segurança.

Mas ah! Que o teu privilégio,
É louco, quem não repara:
Pois suavizando o martírio,
Obrigas mais, do que matas.

Eu fugirei; eu, pastora,
Tomarei somente as armas;
E hão de conspirar comigo
Todo o campo, toda a praia.

Tenras ovelhas,
Fugi de Antandra;
Que é flor fingida,
Que áspides cria, que venenos guarda.



ALTÉIA
ROMANCE

Aquele pastor amante,
Que nas úmidas ribeiras
Deste cristalino rio
Guiava as brancas ovelhas;

Aquele, que muitas vezes
Afinando a doce avena,
Parou as ligeiras águas,
Moveu as bárbaras penhas;

Sobre uma rocha sentado
Caladamente se queixa:
Que para formar as vozes,
Teme, que o ar as perceba.

Os olhos levanta, e busca
Desde o tosco assento aquela
Distancia, aonde, discorro,
Que tem a origem da pena:

E depois que esmorecidos
Da dor os olhos, na imensa
Explicação do tormento,
Sufocada a luz, se cegam;

Só às lágrimas recorre,
Deixando-se ouvir apenas
Daquelas árvores mudas,
Daquela mimosa relva!

Com torpe aborrecimento
A companhia despreza
Dos pastores, e das ninfas;
Nada quer; tudo o molesta.

Erguido sabre o penhasco
Já vê, se é grande a eminência:
Por que busque o fim da vida,
Na violência de uma queda.

Já louco se precipita;
E já se suspende: a mesma
Apetência do tormento
Maior tormento lhe ordena.

Pastores, vede a Daliso;
Vede o estado qual seja
De um pastor, que em outro tempo
Glória destes montes era:

Vede, como sem cuidado
Pastar pelos montes deixa
As ovelhas oferecidas
As iras de qualquer fera.

Vede, como desta rama,
Que fúnebre está, suspensa
Deixou a lira, que há pouco,
Pulsava pela floresta.

Vede, como já não gosta
Da barra, dança, e carreira;
E ao pastoril exercício
De todo já se rebela.

Segundo o volto, que neste
Rústico penedo ostenta,
Cuido, que o fizeram louco

Desprezos da bela Altéia.


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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