FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO
SONETO
A vós,
canoras Ninfas, que no amado
Berço
viveis do plácido Mondego,
Que sois
da minha lira doce emprego,
Inda
quando de vós apartado;
A vós do
pátrio Rio em vão cantado
O sucesso
infeliz eu vos entrego;
E a vítima
estrangeira, com que chego,
Em seus
braços acolha o vosso agrado.
Vede a
história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de
Fauno, ou de Pastor ouvida,
Jamais
cantada na silvestre avena.
Se ela vos
desagrada, por sentida,
Sabei que
outra mais feia em minha pena
Se vê
entre estas serras escondida.
Aonde
levantado
Gigante, a
quem tocara,
Por
decreto fatal de Jove irado,
A parte
extrema e rara
Desta
inculta região, vive Itamonte,
Parto da
terra, transformado em monte;
De uma
penha, que esposa
Foi do
invicto Gigante,
Apagando
Lucina a luminosa,
A lâmpada
brilhante,
Nasci;
tendo em meu mal logo tão dura,
Como em
meu nascimento, a desventura.
Fui da
florente idade
Pela
cândida estrada
Os pés
movendo com gentil vaidade,
E a pompa
imaginada
De toda a
minha glória num só dia
Trocou de
meu destino a aleivosia.
Pela
floresta e prado
Bem polido
mancebo,
Girava em
meu poder tão confiado,
Que até do
mesmo Febo
Imaginava
o trono peregrino
Ajoelhado
aos pés do meu destino.
Não ficou
tronco, ou penha,
Que não
desse tributo
A meu
braço feliz; que já desdenha,
Despótico,
absoluto,
As tenras
flores, as mimosas plantas
Em
rendimentos mil, em glórias tantas,
Mas ah!
Que Amor tirano
No tempo,
em que a alegria
Se
aproveitava mais do meu engano;
Por
aleivosa via
Introduziu
cruel a desventura,
Que houve
de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao
berço caro,
Aonde a
Pátria tive,
Vivia
Eulina, esse prodígio raro,
Que não
sei se inda vive,
Para
brasão eterno da beleza,
Para
injúria fatal da natureza.
Era Eulina
de Aucolo
A mais
prezada filha;
Aucolo tão
feliz, que o mesmo Apolo
Se lhe
prostra, se humilha
Na cópia
da riqueza florescente,
Destro na
lira, no cantar ciente.
De seus
primeiros anos
Na beleza
nativa,
Humilde
Aucolo, em ritos não profanos,
A bela
Ninfa esquiva
Em voto ao
sacro Apolo consagrara;
E dele em
prêmio tantos dons herdara.
Três
lustros, todos d’ouro,
A gentil
formosura,
Vinha
tocando apenas, quando o louro,
Brilhante
Deus procura
Acreditar
do Pai o culto atento,
Na grata
aceitação do rendimento.
Mais
formosa de Eulina
Respirava
a beleza;
De ouro a
madeixa rica, e peregrina
Dos
corações faz presa;
A cândida
porção da neve bela
Entre as
rosadas faces se congela.
Mas inda
que a ventura
Lhe foi
tão generosa,
Permite o
meu destino que uma dura
Condição
rigorosa
Ou mais
aumente enfim, ou mais ateie
Tanto
esplendor, para que mais me enleie.
Não sabe o
culto ardente
De tantos
sacrifícios
Abrandar o
seu Nume: a dor veemente,
Tecendo
precipícios,
Já quase
me chegava a extremo tanto,
Que o
menor mal era o mortal quebranto.
Vendo
inútil o empenho
De
render-lhe a fereza,
Busquei na
minha indústria o meu despenho:
Com
ingrata destreza
Fiei de um
roubo (oh mísero delito!)
A ventura
de um bem, que era infinito.
Sabia eu
como tinha
Eulina por
costume,
(Quando o
maior planeta quase vinha
Já
desmaiando o lume,
Para
dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se
nas correntes de uma fonte.
A fugir
destinado
Com o
furto precioso
Desde a
Pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi
numeroso
Tesouro,
que roubara diligente
A meu Pai,
que de nada era ciente,
Assim pois
prevenido
De um
bosque à fonte perto,
Esperava o
portento apetecido
Da Ninfa;
e descoberto
Me foi
apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego;
abraço a mais rara gentileza.
Quis
gritar; oprimida
A voz
entre a garganta
Apolo?
diz, Apol... a voz partida
Lhe nega
força tanta
Mas ah! Eu
não sei como, de repente
Densa
nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente
ao vento
Vou
estendendo os braços:
Buscar nas
sombras o meu bem intento:
Onde a
meus ternos laços...!
Onde te
escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto
estrago contra mim fulmina?
Mais ia
por diante;
Quando
entre a nuvem densa
Aparecendo
o corpo mais brilhante,
Eu vejo
(oh dor imensa!)
Passar a
bela Ninfa, já roubada
Do Numen,
a quem fora consagrada.
Em seus
braços a tinha
O louro
Apolo presa;
E já
ludíbrio da fadiga minha,
Por
amorosa empresa,
Era
despojo da Deidade ingrata
O bem, que
de meus olhos me arrebata,
Então já
da paciência
As rédeas
desatadas,
Toco de
meus delírios a inclemência;
E de todo
apagadas
Do acerto
as luzes, busco a morte ímpia,
De um
agudo punhal na ponta fria.
As
entranhas rasgando,
E sobre
mim caindo,
Na funesta
lembrança soluçando,
De todo
confundindo
Vou à
verde campina; e quase exangue
Entro a
banhar as flores de meu sangue.
Inda não
satisfeito
O Numen
soberano,
Quer
vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo
em meu dano,
Que em
pequena corrente convertido
Corra por
estes campos estendido.
E para que
a lembrança
De minha
desventura
Triunfe
sobre a trágica mudança
Dos anos,
sempre pura,
Do sangue
que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda
conservo peregrina.
Porém o
ódio triste
De Apolo
mais se acende;
E sobre o
mesmo estrago, que me assiste,
Maior
ruína empreende:
Que
chegando a ser ímpia uma Deidade,
Excede
toda a humana crueldade.
Por mais
desgraça minha,
Dos
tesouros preciosos
Chegou
notícia, que eu roubado tinha
Aos homens
ambiciosos;
E crendo
em mim riquezas tão estranhas,
Me estão
rasgando as míseras entranhas.
Polido o
ferro duro
Na
abrasadora chama
Sobre os
meus ombros bate tão seguro,
Que nem a
dor, que clama,
Nem o
estéril desvelo da porfia
Desengana
a ambiciosa tirania.
Ah
Mortais! Até quando
Vos cega o
pensamento!
Que
máquinas estais edificando
Sobre tão
louco intento?
Como nem
inda no seu Reino imundo
Vive
seguro o Báratro profundo!
Idolatrando
a ruína
Lá
penetrais o centro,
Que Apolo
não banhou, nem viu Lucina;
E das
entranhas dentro
Da
profanada terra;
Buscais o
desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos
vos não dita
Do
ambicioso empenho
De
Polidoro a mísera desdita!
Que
perigos o lenho,
Que
entregastes primeiro ao mar salgado,
Que
desenganos vos não tem custado!
Enfim sem
esperança,
Que
alívios me permita,
Aqui
chorando estou minha mudança;
E a enganadora
dita,
Para que
eu viva sempre descontente,
Na muda
fantasia está presente.
Um
murmurar sonoro
Apenas se
me escuta;
Que até
das mesmas lágrimas que choro,
A Deidade
absoluta
Não
consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à
compaixão meu terno pranto.
Daqui vou
descobrindo
A fábrica
eminente
De um
grande Cidade; aqui polindo
A
desgrenhada frente,
Maior
espaço ocupo dilatado,
Por dar
mais desafogo a meu cuidado.
Competir
não pretendo
Contigo, ó
cristalino
Tejo, que
mansamente vais correndo:
Meu ingrato
destino
Me nega a
prateada majestade,
Que os
muros banha da maior Cidade.
As Ninfas
generosas,
Que em
tuas praias giram,
Ó plácido
Mondego, rigorosas
De
ouvir-me se retiram;
Que de
sangue a corrente turva, e feia
Teme
Ericina, Aglaura, e Deiopéia.
Não se
escuta a harmonia
Da
temperada avena
Nas
margens minhas; que a fatal porfia
Da humana
sede ordena,
Se atenda
apenas o ruído horrendo
Do tosco
ferro, que me vai rompendo.
Porém se
Apolo ingrato
Foi causa
deste enleio,
Que muito,
que da Musa o belo trato
Se ausente
de meu seio,
Se o Deus,
que o temperado coro tece,
Me foge,
me castiga, e me aborrece!
Enfim sou,
qual te digo,
O Ribeirão
prezado,
De meus
Engenhos a fortuna sigo;
Comigo
sepultado
Eu choro o
meu despenho; eles sem cura
Choram
também a sua desventura.
POLIFEMO
ÉCLOGA
Ó linda
Galatéia,
Que tantas
vezes quantas
Essa úmida
morada busca Febo,
Fazes por
esta areia,
Que adore
as tuas plantas
O meu fiel
cuidado: já que Erebo
As sombras
descarrega sobre o mundo,
Deixa o
reino profundo:
Vem, ó
Ninfa, a meus braços;
Que neles
tece Amor mais ternos laços.
Vem, ó
Ninfa adorada;
Que Ácis
enamorado,
Para
lograr teu rosto precioso,
Bem que
tanto te agrada,
Tem menos
o cuidado,
Menos
sente a fadiga, e o rigoroso,
Implacável
rumor, que eu n'alma alento.
Nele o
merecimento.
Minha dita
assegura;
Mas ah!
que ele de mais tem a ventura.
Esta
frondosa faia
A qualquer
hora (ai triste!)
Me observa
neste sítio vigilante:
Vizinho a
esta praia
Em uma
gruta assiste,
Quem não
pode viver de ti distante.
Pois de
noite, e de dia
Ao mar, ao
vento às feras desafia
A voz do
meu lamento:
Ouvem-me
as feras, ouve o mar, e o vento.
Não sei,
que mais pretendes.
Desprezas
meu desvelo;
E
excedendo o rigor da crueldade,
Com a
chama do zelo
O coração
me acendes:
Não é
assim cruel a divindade.
Abranda
extremo tanto;
Vem a
viver nos mares do meu pranto:
Talvez sua
ternura
Te faça a
natureza menos dura.
E se não
basta o excesso
De amor
para abrandar-te,
Quanto
rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo
ofereço;
Esta obra
do divino Alcimedonte,
Este
branco novilho,
Daquela
parda ovelha tenro filho,
De dar-te
se contenta,
Quem
guarda amor, e zelos apascenta.
LISE
ROMANCE
Pescadores
do Mondego,
Que girais
por essa praia,
Se vós
enganais o peixe,
Também Lise
vos engana.
Vós ambos
sois pescadores;
Mas com
diferença tanta,
Vós ao
peixe armais com redes,
Ela
co'olhos vos arma.
Vós
rompeis o mar undoso:
Para
assegurar a caça;
Ela aqui
no porto espera,
Para
lograr a filada.
Vós
dissimulais o enredo,
Fingindo
no anzol a traça;
Ela vos
expõe patentes
As redes,
com que vos mata.
Vós
perdeis a noite, e dia
Em
contínua vigilância;
Ela em um
só breve instante
Consegue a
presa mais alta.
Guardai-vos,
pois, pescadores,
Dos olhos
dessa tirana;
Que para
troféus de Lise
Despojos
de Alcemo bastam.
Enquanto
as ondas ligeiras
Desta
corrente tão clara
Inundarem
mansamente
Estes
álamos, que banham;
Eu espero,
que a memória
O conserve
nestas águas,
Por padrão
dos desenganos,
Por
triunfo de uma ingrata.
E na
frondosa ribeira
Deste rio,
triste a alma
Girará
sempre avisando,
Quem lhe
soube ser tão falsa.
ANTANDRA
ROMANCE
Pastora do
branco arminho,
Não me
sejas tão ingrata:
Que quem
veste de inocente,
Não se
emprega em matar almas.
Deixa o
gado, que conduzes;
Não o
guies à montanha:
Porque em
poder de uma fera,
Não pode
haver segurança.
Mas ah!
Que o teu privilégio,
É louco,
quem não repara:
Pois
suavizando o martírio,
Obrigas
mais, do que matas.
Eu
fugirei; eu, pastora,
Tomarei
somente as armas;
E hão de
conspirar comigo
Todo o
campo, toda a praia.
Tenras
ovelhas,
Fugi de
Antandra;
Que é flor
fingida,
Que
áspides cria, que venenos guarda.
ALTÉIA
ROMANCE
Aquele
pastor amante,
Que nas
úmidas ribeiras
Deste
cristalino rio
Guiava as
brancas ovelhas;
Aquele,
que muitas vezes
Afinando a
doce avena,
Parou as
ligeiras águas,
Moveu as
bárbaras penhas;
Sobre uma
rocha sentado
Caladamente
se queixa:
Que para
formar as vozes,
Teme, que
o ar as perceba.
Os olhos
levanta, e busca
Desde o
tosco assento aquela
Distancia,
aonde, discorro,
Que tem a
origem da pena:
E depois
que esmorecidos
Da dor os
olhos, na imensa
Explicação
do tormento,
Sufocada a
luz, se cegam;
Só às
lágrimas recorre,
Deixando-se
ouvir apenas
Daquelas
árvores mudas,
Daquela
mimosa relva!
Com torpe
aborrecimento
A
companhia despreza
Dos
pastores, e das ninfas;
Nada quer;
tudo o molesta.
Erguido
sabre o penhasco
Já vê, se
é grande a eminência:
Por que
busque o fim da vida,
Na
violência de uma queda.
Já louco
se precipita;
E já se
suspende: a mesma
Apetência
do tormento
Maior
tormento lhe ordena.
Pastores,
vede a Daliso;
Vede o
estado qual seja
De um
pastor, que em outro tempo
Glória
destes montes era:
Vede, como
sem cuidado
Pastar
pelos montes deixa
As ovelhas
oferecidas
As iras de
qualquer fera.
Vede, como
desta rama,
Que
fúnebre está, suspensa
Deixou a
lira, que há pouco,
Pulsava
pela floresta.
Vede, como
já não gosta
Da barra,
dança, e carreira;
E ao
pastoril exercício
De todo já
se rebela.
Segundo o
volto, que neste
Rústico
penedo ostenta,
Cuido, que
o fizeram louco
Desprezos
da bela Altéia.
---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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