RETRATO
Eu não tinha este
rosto de hoje,
Assim calmo, assim
triste, assim magro,
Nem estes olhos
tão vazios,
Nem o lábio
amargo.
Eu não tinha estas
mãos sem força,
Tão paradas e
frias e mortas;
Eu não tinha este
coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por
esta mudança,
Tão simples, tão
certa, tão fácil:
- Em que espelho
ficou perdida
A minha face?
NOTURNO
Quem tem coragem
de perguntar, na noite imensa?
E que valem as
árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o
pensamento humano,
esforçado e
vencido,
na turbulência das
horas?
Que valem a
conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os
delicados adeuses?
Que valem as
pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de
trêmulo sal?
O sangue e a
lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo
diagrama.
E o homem tão
inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza
para distingui-lo.
Porque havia nas
úmidas paragens
animais
adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como
pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças
históricas,
sem compromissos
de viver.
Grandes animais
sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso
do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e
de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa
das crinas desfraldadas.
Mas a noite
desmanchava-se no oriente,
cheia de flores
amarelas e vermelhas.
E os cavalos
erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a
vigorosa cabeça,
e começavam a
puxar as imensas rodas do dia.
Ah! o despertar
dos animais no vasto campo!
Este sair do sono,
este continuar da vida!
O caminho que vai
das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da
humana vassalagem!
GARGALHADA
Homem vulgar!
Homem de coração mesquinho!
Eu te quero
ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha
grosseira, e escuta
o ritmo e o som da
minha gargalhada:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Não vês?
É preciso jogar
por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares,
partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina
das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as
lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para
longe os pandeiros e as liras...
O riso magnífico é
um trecho dessa música desvairada.
Mas é preciso ter
baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e
espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas,
Deus do céu!
E os pandeiros
ágeis e as liras sonoras e trêmulas...
Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!
Só de três lugares
nasceu até hoje essa música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
PÁSSARO
Aquilo que ontem
cantava
já não canta.
Morreu de uma flor
na boca:
não do espinho na
garganta.
Ele amava a água
sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava
o tempo,
livre de
necessidade.
Não foi desejo ou
imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em
silêncio
a desventura
causada.
Se acaso isso é
desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão
bela,
por uma tênue
ferida.
TIMIDEZ
Basta-me um
pequeno gesto,
feito de longe e
de leve,
para que venhas
comigo
e eu para sempre
te leve...
- mas só esse eu
não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos
instantes
desmancha todos os
mares
e une as terras
mais distantes...
- palavra que não
direi.
Para que tu me
adivinhes,
entre os ventos
taciturnos,
apago meus
pensamentos,
ponho vestidos
noturnos,
- que amargamente
inventei.
E, enquanto não me
descobres,
os mundos vão
navegando
nos ares certos do
tempo,
até não se sabe
quando...
- e um dia me acabarei.
- e um dia me acabarei.
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