sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "O Profeta e o Mancebo"

O PROFETA E O MANCEBO

O velho, sentado numa rústica cadeira e de punho á bengala, fixou seu olhar penetrante sobre o mancebo, que se mantinha sobressaltado, na expectativa da iminente repreensão. Alguns o reconheciam como profeta; outros como vidente ou curandeiro; havia ainda aqueles que o tomava por um anjo em forma humana, enviado por Deus a terra para alertar os homens de seus delitos. Calmamente iniciou sua admoestação:

“Continuarás escravo daquilo que tua própria mente concebeu, e que continuamente alimentas com tua alma...

Sentirás a sensação momentânea da liberdade... à noite, porém, sozinho, sentirás um clamor oculto a invadir teu ser e a corroer tuas entranhas... teu coração implorará por socorro, mas não resistirás ao peso dos teus grilhões... serás como aquele escravo, o qual, vendo a superioridade de seu senhor, teme reagir, e por isso, prefere a comodidade do açoite...

Sabes que precisas reagir, mas não consegues, e te alentas de um sonho ou de muitos deles... “Tenho ainda muitos anos pela frente”, posso tentar depois... e o “depois” retorna trazendo consigo outro “depois”, quando, enfim, hás de perceber que fez dele tua esperança, e desta, tua ruína...

Procuras distrair tua mente e acreditas, por breves momentos, que és senhor pleno de ti mesmo... Fumas teu cigarro e pensas na vida, mas não és capaz de perceber que ela está se esvaindo lentamente como a fumaça que expeles pelas tuas narinas...

Lembras do passado e te concentras naquilo que te fez feliz... logo, porém, o esquece, afinal, o passado não volta nunca mais... Precisas viver o momento, o eterno momento, e com toda intensidade investes nele toda tua energia... o momento é tua eternidade...

Não consegues distinguir liberdade de prisão... tua liberdade é a tua prisão... precisas a todo o tempo justificá-la e ativá-la com traços e cores, e é isso que te faz sentires livre...

Pensas que não podes está errado, afinal não estás sozinho neste purgatório... são muitos os que te seguem e que também erguem este estandarte... não podes ficar sozinho... Precisas está a todo o tempo com a mente ocupada, mesmo que seja com a fumaça do teu cigarro...

Lá em cima deve ter um par de algemas, e logo te deixarás prender por elas, as quais já são partes intrínsecas de ti e, por isso, não podes erguer os punhos contra teu opressor...

Sente-se esperto demais e às vezes acredita que tem a experiência de um ancião... mas tem medo de pesadelos... és como aquela criança que rejeita o afago do pai porque está com birra, mas tão logo preludiam os trovões e brilham os relâmpagos corre desesperado para abraçá-lo... mas tu não tens pai para abraçar nem tens mãe para sentir suas carícias... fugir não pode, lá fora o mundo é por demais impiedoso, precisas acostumar com isso...

Mal sabes tu que ali perto há uma cabana aconchegante, onde um anjo qualquer te espera com um macio cobertor e com uma chávena quentinha de fino chá...

O túnel do teu pesadelo parece não ter fim, e se vislumbra nele alguma centelha de luz, preferes usá-la para acender teu cigarro...

Teu corpo frágil fala e suplica... às vezes cede... a dor é forte demais... mas ela passa, então a esquece e, entre delírios de prazer, ignoras que ela apenas adormece e que logo regressará mais forte e mais dilacerante...

Sabes que de uma hora para outra a corda pode arrebentar, mas acreditas que sempre restará o último fio para te agarrares e para clamares mais uma vez por socorro... Mas... e se o resgate atrasar?... E se teus amigos estiverem dormindo quando os chamares?... E se o fio já estiver partido?

Alguém daqui a pouco vai te chamar... É preciso ir, pois se não fores ficarás sozinho... Virá então a noite e com elas os sonhos estranhos... tanta gente e tão abandonado!!!

O carrasco já bate à tua porta e te chama para o abismo... não queres ir mas precisas ir... Ele é forte demais, suas mãos são enormes, seus olhos ameaçadores, seus pés ligeiros... Vai, acompanha-o... Precisas cantar para distrair teus medos... Canta mancebo!

Se tentares correr, os teus pés estarão amarrados; se tentares esbofeteá-lo, tuas mãos estarão presas; se tentares clamar por socorro, tua voz não ecoará; e se tentares sonhar, tua mente, sempre desperta, roubará de ti a possibilidade do sono e dos sonhos...

Vai, mancebo, segue para tua guilhotina, mas leva contigo teus amigos e teus cigarros, afinal, teus pais não estão lá, lembras? Teu carrasco, ansioso, já te espera... Observa bem o seu sorriso... Saiba que ele te comprou com um preço muito alto... Leva teus amigos, leva também teu cigarro, mas não precisas levar chaves... a porta não tem fechadura... Esta noite não vai acabar e os pesadelos apenas começaram... Vai mancebo, vai...”


Neste momento o mancebo desaba a chorar e, ajoelhado, implora-lhe por socorro. O velho, erguendo sua bengala, aponta-a para o sol, que naquele instante alagava tudo com sua luz. Em seguida levanta-se e sai andando, sendo logo ofuscado pelo brilho do Astro Rei. O jovem segue-lhe no encalço e também desaparece na claridade.

Fevereiro, 2014.

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