A INVOLUÇÃO DO HOMEM
Milhares de anos nos separam
dos remotíssimos primórdios do século XXI, quando se deu o pavoroso vaticínio
do grande oráculo de Darwin, cognominado, o dedolucionista: “E boa parcela da
população terá menos dedos nos pés e nas mãos!”
O presságio, outrora
desacreditado e ridicularizado por seu aspecto supersticioso e vaticinador,
cumpre-se finalmente ante os olhos estupefatos de uma nova era da humanidade! O
mundo, hoje, gira em torno dos dedos!
Nos grandes meios de
comunicação, nas banais conversas entre amigos, nas sérias discussões
acadêmicas, nas escolas, nos sermões nos templos, nos diálogos corriqueiros das
esquinas, nas artes em geral, um só assunto impera: os dedos! Dramaticamente,
os prolongamentos articulados inferiores estão conduzindo o mundo para a mais
letal das guerras!
Não obstante a sociedade
esteja composta por quatro grupos físicos de pessoas, dois deles se destacam
pelo seu poder de influência e, mais acentuadamente, por serem os
monopolizadores populacionais: os dedolucionistas e os dedonormalistas.
Os primeiros são fisicamente
identificados por portarem apenas dois dedos, daí serem conhecidos por
bidedistas; o outro grupo, os dedonormalistas, também chamados pentadedistas,
por possuírem cinco dedos, são a maioria da população, a reminiscência antiga
que ainda predomina entre os povos.
Além desses grupos dominantes,
outros dois correm por fora na disputa por um espaço no governo mundial: os
dedotransicionistas, os tretadedistas e os dedosprogressistas.
Os dedotransicionistas são
aqueles que estão em processo de transição mutacional, estando entre os
dedosnormalistas e os dedolucionistas. Já os dedosprogressistas são os que mais
sofreram os efeitos das mutações, vindo diretamente do grupo dedolucionistas.
O mundo, que na época do
grande vaticínio, estava dividido entre várias nações, hoje está centralizado
num único bloco, conhecido por Dedópolis, e que tem como supremo representante
o dedotário, como é chamado o presidente da organização mundial.
Desde que se formou esse
bloco, amiúde foi liderado pelos dedonormalistas; contudo, com o constante
crescimento da população dedolucionista, o poder centralizado dos
dedonormalistas principiou a se abalar. Os dedolucionistas estavam prontos para
a guerra; não suportavam mais o peso de tão grande opressão, recusando-se
veementemente a fazer parte do jogo governamental e monopolista dos
dedonormalistas opressores, contando inclusive com o apoio dos grupos
minoritários, todos unidos na luta pela ascensão ao poder.
O palco da guerra estava
armado. Esgotaram-se os discursos; evadiram-se as propostas; dissiparam-se os
pactos e as alianças; dilapidou-se, enfim, o senso de irmandade, outrora tão
bem cultivado entre os homens. Agora é a luta pela prevalência do mais forte. É
o império da lei de Darwin!
A batalha tem início. Os
dedonormalistas sofrem, já nos primeiros dias, uma considerável baixa. Os
dedolucionistas e seus aliados marcham ferozmente rumo à capital
dedonormalista. Pede rendição imediata. Não há saída, os dedonormalistas
entregam as armas. A rendição é incondicional.
Agora no poder, os
dedolucionistas ditam as normas, mudam a Constituição e decretam, por maioria
de votos, a amputação dos dedos excedentes. Pela nova lei, nenhuma pessoa
poderia ter mais que dois dedos, tanto nos pés quanto nas mãos. Havia ainda uma
cláusula que ordenava o extermínio do cidadão que não se apresentasse
espontaneamente, conforme calendário médico, para o ato cirúrgico.
O êxito foi total. Em poucos
meses, o mundo estava, enfim, bidedista. Era o triunfo da ciência!
Todavia, como já dizia Darwin,
a evolução é um processo contínuo que se dá aleatoriamente por mutação mediante
seleção natural, sem a intervenção humana. Alguma gerações depois, foram
constatados casos isolados de pessoas apresentando um só dedo, que passaram a
ser chamadas de unidedistas. Aos poucos, esses foram se multiplicando, passando
a exercer grande influência no governo mundial. Concomitantemente a esses,
surgiram outros de pessoas sem nenhum dedo, os arquidedistas. Embora pequeno,
tornou-se um grupo elitista, formado de homens influentes e grandes
capitalistas. Acreditavam ser o resultado final do processo de aperfeiçoamento
evolutivo. Através de pesados investimentos propagandistas, chegaram
rapidamente à liderança do bloco. No poder, suprimiram as antigas leis e
elaboraram uma nova Constituição fundamentada no conceito de superioridade
racial. Organizaram imensos campos de concentrações, para onde enviaram todos
os que portavam dedos, sem exceção. Mais tarde puseram em prática um plano de
extermínio universal. Era preciso higienizar o mundo, diziam.
A continuidade do processo
evolutivo, entretanto, não cessava, culminando em novas e distintas mutações.
Agora havia os sem-braços, os sem-pernas, os sem-orelhas, os sem-bocas e os
sem-cabeças, entre outros casos estranhos e inusitados.
O fato chegou às universidades
e aos centros de pesquisas. Cientistas de toda parte do mundo reuniram-se para
estudar o fenômeno. A conclusão foi uma só: o ser humano estava involuindo, e a
ciência não podia interferir no processo. A Natureza suplantava assim o
poderoso dístico darwiniano Natura non facit saltum, e ao seu reverso. Tudo era
questão de tempo, e homem, enfim, retornaria ao oceano primordial, no seu
lendário estágio de ancestral comum universal.
Para os místicos, era o
glorioso regresso do homem à sua unidade absoluta e divina, quando, por fim,
abandonaria seu estágio de criatura mortal e se tornaria em eterno criador;
para os céticos, entretanto, tratava-se de um processo decorrente da ordem
natural das coisas, regido pelas estritas leis da natureza, e nada além disso.
Seja como for, o fato é que o homem seguiria assim contra sua vontade para sua
própria extinção.
Grupos de pesquisas foram
criados em todo o mundo. Objetivavam descobrir uma fórmula para preservar a
espécie humana. A medida era urgente, visto que o processo de involução
seguia-se surpreendentemente acelerado.
Na Inglaterra adeptos da
Teoria da Involução anunciaram com estardalhaço uma descoberta que poria fim a
tão anunciada e inevitável degeneração humana. A notícia espalhou-se como um
vírus pela face da terra. Os noticiários diziam que era iminente a clonagem do
famoso naturalista Charles Darwin, o único com cabedal suficiente para reverter
a história da involução humana.
E, de fato, clonaram Darwin! A
quantidade de dedos era a única característica que tornava este distinto de
outro. De resto, era tal qual o inglês.
O acontecimento fez rolhas de
champanha espocar em todo o mundo. Dias seguidos os noticiários traziam
detalhes daquilo que denominaram de “o retorno triunfal do grande Darwin”.
Decretou-se feriado internacional durante quinze dias. Aplausos, delírios e
desmaios faziam parte da rotina dos noticiários da Televisão. Os historiadores
e homens da ciência anunciavam o evento como o mais importante em toda a
história humana.
Com o andar dos anos,
substituíram a estátua da liberdade pela do libertador, como passou a ser
chamado o novo personagem da ciência. Realizaram-se em sua homenagem grandes produções
cinematográficas, que faziam lotar as salas de cinemas. Cunharam moedas e
estamparam seu rosto barbudo nas diversas cédulas. Grupos religiosos trataram
de incluir seu nome na Bíblia, acrescentando o quinto evangelho: o Evangelho
Segundo Darwin, que era uma adaptação do Evangelho de João: “No princípio era
Darwin, e Darwin era o princípio. Todas as coisas serão feitas por ele, e sem
ele nada poderá ser feito...”.
Em suas frequentes aparições
na TV, anunciava ele com voz impetuosa a chegada de uma nova era para os
remanescentes da humanidade. “Só há uma forma de preservar nossa espécie”,
dizia num acalorado discurso em praça pública: “é combatendo e eliminando as espécies
degradadas e inferiores, as quais, se mantidas vivas, conduzirão fatalmente as
espécies dedistas à sua total extinção.” Aplausos incessantes se faziam ouvir
mundo afora.
Logo se tornou por aclamação
geral o líder político absoluto do mundo. Em seu discurso de posse, parafraseou
o velho Darwin, descrevendo-se, não o clone, mas a própria encarnação do
inglês. “Declaro concorrência aberta para todos os homens e faço desaparecer
todas as leis e todos os costumes que impeçam os mais capazes de conseguir seus
objetivos e criar o maior número possível de infanto-detistas.”
Não cessavam, porém, as novas
formas de mutações, que eram imediatamente eliminadas pelos “caçadores de
monstros”, nome atribuído aos que se engajavam na luta do grande Darwin.
O processo involutivo,
contudo, já não podia mais ser controlado, movimentando-se cada vez mais
rapidamente. O libertador parecia de dedos atados. O último censo demográfico
listava apenas um milhão de pessoas na face de terra. A Natureza continuava
dando seus golpes. O derretimento das calotas polares tornava o espaço terreno
cada vez menor. O fenômeno levou os remanescentes a se refugiaram numa grande
montanha, onde fundaram a cidade que designaram de Darwinópolis, em óbvia
homenagem ao libertador.
Poucos sobreviveram. Entre
estes estava o grande Darwin. A morte era uma questão de tempo. Não havia
alimentos, restando apenas a possibilidade do canibalismo, que logo foi posto
em prática assim que se apoderou dele a fome.
Agora estava sozinho na terra,
como o último sobrevivente da espécie humana. Se não pudera salvar o mundo, ao
menos nutria a grande satisfação de ser o derradeiro a contemplá-lo e
admirá-lo. Isso era tudo.
Com muito esforço alcançou o
topo de um penhasco. Já velho e com suas barbas longas, contemplava a imensidão
dos mares. O mundo era um grande oceano. Subitamente precipitou nas águas.
Ainda nadou alguns metros antes de afundar-se no abismo. Era o recomeço da
vida...
São Paulo, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário