O FAUSTO DE
CAPIM GROSSO
Acabara
de completar vinte e oito anos de idade. Estava transbordando de alegria.
Solteiro, jovem e bonito, sentia-se indestrutível e transportado a todos os
céus possíveis e impossíveis. Encontrava-se, pois, naquele instante da vida em
que se deseja que os ponteiros do tempo cessem e que se congelem para sempre os
belos dias de juventude.
Faustino
era o seu nome. Nascera em Capim Grosso, pequena cidade do interior da Bahia,
filho único de um próspero comerciante e proprietário de uma grande rede de
lojas do ramo de eletrodomésticos.
Ao
completar dezoito anos, fora mandado pelo pai a Salvador, para concluir ali
seus estudos. Aos vinte e três anos de idade, retornou à cidade já bacharel em
Direito, onde passou a trabalhar nas empresas da própria família.
Veio
cheio de planos e ambições, contudo, não se incluía aí o plano matrimonial.
Ensoberbecia-se no fato de nunca ter se apaixonado e esnobava daqueles que
diziam sonhar com um grande amor.
- Amor?
Não, não nasci para as coisas do amor, dizia à roda de amigos.
Não
obstante estivesse bastante satisfeito com a vida, nutria ele - secretamente
dentro de si - de uma angústia vulcânica, a única coisa que de fato o
perturbava e que, amiúde, o fazia sentir-se melancólico e desolado: era o medo
mórbido de envelhecer. Daria tudo, inclusive toda a fortuna que herdaria, a fim
de preservar para sempre sua mocidade. Disto concluiu-se que não amadurecera o
suficiente para lidar com as coisas da idade, e por isso alimentava-se às
ocultas de uma obsessão doentia pela eterna juventude.
Com o
tempo, a preocupação com a idade dominou-o completamente, levando-o a se
envolver com o ocultismo, algo que ele mesmo denominou de “a ciência da arte e
do mistério”, embrenhando-se nos conhecimentos secretos da maçonaria, cabala,
teosofia, astrologia, alquimia e das religiões politeístas, tais como aquelas
praticadas no antigo Egito e em outras civilizações da antiguidade. Leu tudo
sobre os mistérios da vida, as Escrituras Sagradas, os livros apócrifos,
dedicando-se com mais afinco à leitura do famoso “Livro de São Cipriano”,
acreditando que encontraria ali, se não uma candeia, ao menos uma pontinha de
luz que o conduzisse aos enigmas de Dorian Gray.
Era o dia
de procissão de São Cristóvão, o santo padroeiro do local. Durante toda uma
semana, a cidade enchia-se de visitantes, oriundos de localidades próximas,
muitos dos quais ali compareciam apenas para usufruírem dos atrativos que em
muito excediam à simples espiritualidade, tais como as quermesses, os bingos,
os leilões, as gincanas, as bebidas e as comidas típicas, que os extasiavam.
Dentre esses visitantes, apareceu um por nome de Goethe, homenzarrão, alto, loiro,
elegantemente vestido e com acentuado sotaque alemão. Este logo chamou a
atenção da cidade, não propriamente pelos seus traços físicos, mas por seu
sedutor carisma e pela áurea de mistério que parecia lhe envolver.
Faustino
foi um dos que mais se deixou impressionar pelo o ilustre visitador. Em
consenso com a família, convidou-o para jantar à noite em sua casa. O homem
aceitou de pronto. Durante toda a ceia, este se mostrou de uma cortesia
exemplar. Perguntaram-lhe de onde vinha, o que fazia, quem eram seus pais e
outras coisas. Ele contou várias histórias que a todos encantaram. Discorreu
ainda sobre ciência, religião, filosofia e outros assuntos que fizeram o
coração do jovem mancebo transbordar de curiosidade. Queria conhecê-lo melhor,
e até aventou a ideia de está diante de um místico guru, que poderia
ensinar-lhe muito mais acerca dos mistérios da vida e, quem sabe, apontar-lhe
um novo horizonte para seu angustiante dilema.
Terminado
o jantar, foram ambos até a biblioteca, um elegante recinto anexo à casa, e que
constava de dez grandes estantes. Em três delas estavam os livros sobre
Direito, da história da jurisprudência e suas inúmeras ramificações pelo mundo.
Duas estantes continham os livros da Literatura Universal, os clássicos da
Literatura Portuguesa e Brasileira, dentre os quais se incluíam Augusto dos
Anjos e Fernando Pessoa. Nas demais estantes constavam os livros sobre
religião, misticismo, filosofia e sociedades secretas. Goethe examinou-os bem,
retirando entre os desta última categoria, o misterioso “livro da capa preta”,
o mesmo de São Cipriano. O rapaz estremeceu, enquanto o homem, sorrindo,
fixava-lhe um olhar penetrante e resplandecente.
- Queres
de fato saber quem eu sou? perguntou-lhe sorrindo, como se já soubesse a
resposta.
Agitado e
cheio de pavor, Faustino deixa-se cair, sem voz, sobre um velho sofá de couro.
Respira fundo e, após alguns segundos, responde com a voz trêmula:
- Sim,
sim, és Lucius!
- Pois
aqui estou, replicou-lhe este sorrindo com ar de satisfação íntima.
O rapaz
permaneceu imóvel por algum tempo. Queria falar, a voz, porém, sumiu-lhe
novamente da boca. Um frio desceu-lhe pela espinha, enquanto seus pelos
eriçaram-lhe por todo o corpo e o suor cálido caía-lhe em bagas pela testa.
O
misterioso homem acercou-lhe lentamente e balbuciou-lhe algumas palavras
obscuras e sedosas no ouvido. Estas pareceram revigorar-lhe os ânimos, fazendo
com que o moço se erguesse de súbito, como se estivesse preparando voo para as
alturas. Neste instante, as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se e
riam-se como se fossem bons e velhos amigos.
Daí em
diante, por espaço de alguns anos, sucedeu-lhe uma enxurrada de acontecimentos.
O pai e a mãe faleceram num acidente de automóvel. De posse da herança, foi
passear na Europa, retornando três meses depois: feliz e tão jovem quanto
antes. Já em sua cidade, assumiu o controle das empresas do pai, expandiu os
negócios com a incorporação de outras sociedades e passou a encabeçar a lista
dos homens mais ricos do Brasil.
Quanto ao
seu dilema com a velhice, desde o diálogo da biblioteca, dissiparam-se-lhe
todos os medos e preocupações. Sua atenção agora se dirigia exclusivamente a
questões do amor. Casamento era assunto
que não se via em sua agenda, apesar da imensa procissão de pretendentes.
Evitava falar do assunto e se enfadava com os que insistiam em lembrá-lo.
- O quê?
casar? Não, não nasci para marido, repetia entediado aos que teimavam em querer
mandar-lhe ao matrimônio.
Com o
passar do tempo, um fato começou a prender a atenção dos habitantes da cidade.
Apesar dos anos longos e desvairados, Faustino parecia não envelhecer. Alguns
atribuíam esta proeza a fartura de dinheiro que tinha, a qual lhe dava acesso
aos mais sofisticados avanços da medicina no âmbito da estética. Outros, contudo,
levantaram a suspeita de que ele havia feito um pacto com o diabo, e que por
isso não envelhecia.
Ao
completar cinquenta anos de idade, já um pouco mais gordo, mas mantendo a mesma
aparência de trinta, relaxou-se em suas preocupações com as coisas do amor. Foi
nessa época que conheceu Margarete, uma linda e fresca viúva, que lhe cativou o
coração e lhe fez esquecer todo o passado. Apaixonou-se loucamente por ela, e
só para ela queria viver e dedicar-se.
Na noite
do seu quinquagésimo aniversário, estava radiante de felicidade. A casa estava
repleta de convidados, gente de todos os lugares, pessoas da alta sociedade
capim-grossense, grandes fazendeiros, comerciantes e políticos.
Ao final
da festa, conduziu a amada até sua casa, voltando logo em seguida
deslumbrantemente feliz. Entrou no quarto para dormir, apagou a luz e
deitou-se, pensando na vida e na mulher que tanto amava.
De
repente, como se lhe surdisse uma cobra, apareceu num vapor de fumaça, um homem
alto, loiro e com forte sotaque alemão. Era Goethe, que portava nas mãos um
documento escrito em tinta rubra, ao fim do qual assinava com o próprio sangue:
FAUSTINO CARNEIRO RIOS.
- Vim
trazer-lhe a conta, disse-lhe ele com um sorriso sarcástico que se fez ecoar
pela casa inteira.
Faustino
ergueu-se sobressaltado da cama. Seus olhos pareciam saltar para fora, como se
estivesse na iminência da própria morte. Neste momento lembrou-se do diálogo
que tivera na biblioteca, do livro da capa preta, do pacto que assinara, do
compromisso que assumira... Lembrou-se de Margarete.
Goethe
soltou uma formidável gargalhada e se esvaiu, deixando para trás lágrimas e
fumaças.
Fevereiro/2015.
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