sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "A Indesejada"

A INDESEJADA

Conta-se que a morte bateu à porta de um homem no seu aniversário de quarenta e um anos de idade. Ela não apareceu em seu aspecto convencional, com o rosto pálido e disforme, os olhos fechados, coberta com um manto e levando na mão uma foice. Em vez disso, veio aos modos de uma dama romanesca, trajada de um vestido branco, de finíssima cambraia, que lhe envolvia sensualmente o corpo, cujos contornos pareciam refletir as pinturas renascentistas.
Ao abrir a porta, o homem olhou-a de cima para baixo e esfregou os olhos como se duvidasse do que via. Mesmo assim, pediu que entrasse e lhe ofereceu uma cadeira. A mulher entrou, sentou-se, olhou em volta de si, sorriu e suspirou um hálito fresco com sabor de avelã.
Atordoado, perguntou-lhe qual era o seu nome, de onde viera e qual o motivo da visita, ao que ela respondeu que se chamava Indesejada, viera de uma terra distante e que estava ali para levá-lo consigo.
- A carruagem está nos esperando, apronte-se depressa! e apontou para fora, onde se via um ostentoso veículo aparelhado por quatro cavalos alados, semelhantes aos da mitologia.
O homem cuidou está sonhando ou enlouquecendo, então se aproximou e tentou tocá-la, ao que ela deixou-se tocar: era realmente de carne e osso! Ficou estático e extático. O que significava tudo aquilo? 
Com as pernas trêmulas e o coração acelerado, ele perdeu o sentido e desfaleceu. Quando acordou achou-se sentado na carruagem, ao lado da bela mulher, que fustigava sem dó os animais, para que corresse mais depressa.
- Depressa! Depressa!
Os olhos dele pareciam saltar-lhes das órbitas, tamanho era o pavor que sentia. Ela buscou acalmá-lo segurando-lhes as mãos e as acarinhando, ao mesmo tempo em que cantava uma suave melodia que se fazia ecoar pelo espaço adentro. Foi quando percebeu que viajava acima das nuvens e que havia perdido de vista a terra. O medo agora se diluía numa sensação estranha e maravilhosa. Já sereno, disparou várias perguntas, uma atrás da outra, tão confuso estava. Indagou sobre qual o sentido de tudo aquilo, o que queria dele e para onde estava o levando etc.
- Logo saberás, respondeu ela, enquanto tangia com açoites os cavalos voadores e escorregava velozmente pela atmosfera.
Algumas horas depois adentraram num local de denso luzeiro, tão forte era a luz que lhes ofuscava a vista. Em todo esse tempo a misteriosa mulher apertava-lhes as mãos, sem nunca soltá-las. Por alguns instantes, ele foi tomado por desejos sensuais, lúbricos, voluptuosos e avassaladores. Tentou beijá-la, agarrá-la, mas ela o afastou soltando-lhes as mãos e dizendo:
- Ainda não é chagado o momento, meu amor. Esperai, esperai...
Disse essas palavras tão docemente que os olhos deles pareciam refletir as estrelas; o seu coração alegrou-se sobremaneira com isso e se lhes aplacaram da mente os impulsos libidinosos.
Já se havia passado muito tempo desde que iniciara aquela jornada, de modo que tinha perdido a noção de tempo e não podia atinar cronologicamente sobre os últimos acontecimentos. A certa altura do caminho, sentiu sono e dormiu como se estivesse em rota para o paraíso. Sonhou que era um sultão árabe e que chegara ao seio de Alah, onde setenta e duas virgens o aguardavam com esplendorosos adornos de pérolas e todas sedentas de amor.
Acordou sozinho em meio a uma névoa densa, baixa e fechada; ao longe avistou uma fonte luminosa que propagava raios por todos os seus arredores; mais à frente contemplou uma espécie de catedral imensa, em cuja abóboda havia uma enorme tocha de fogo que se irradiava para fora e dentro do edifício. Enquanto se aproximava do local, ouviu uma afinada orquestra que tocava majestosamente o Bolero de Ravel. Estava extasiado!
Entrou no templo e ficou maravilhado com o que viu. Não podia calcular a quantidade de congregados que se aglomeravam ali, mas notou que os assentos estavam ocupados por homens, mulheres e crianças, todos usando uma vestimenta longa e branca, e distinguiu alguns dos rostos. Reconheceu a mulher de um vizinho, com a qual teve uma breve aventura amorosa e que falecera de apoplexia há uns cinco anos atrás. Ela o olhou com certa malícia e sorriu. Bem atrás da mulher estava o antigo patrão, um idoso com um olhar carrancudo e amargurado, o qual fora assassinado por um funcionário após este ter sido demitido por justa causa. Do lado oposto a eles, viu um amigo de infância, um garoto de dez anos, que havia sido atropelado por um automóvel. Ele ria e acenava-lhe com uma das mãos. Identificou muitas outras pessoas, foi quando caiu em si que todos os que reconheceu estavam mortos e então aventou a ideia de que poderia está morto também, no entanto, não estava convicto se ali era o céu, o purgatório ou o Hades. Ficou confuso. Neste instante o ambiente foi tomado de um silêncio sepulcral. Um homem e uma mulher o conduziram até o início da entrada principal do templo. Foi quando se fez soar a solene marcha nupcial de Félix Mendelssohn. No altar estava ela, a Indesejada, sorrindo e toda vestida de preto.
- Vem, meu amor! dizia com voz doce e suave. - Vem, vem, saciemo-nos de amores.
Um frio correu-lhe a espinha, ao mesmo tempo em que era tomado por uma emoção desarranjada, mesclada de temor e prazer.
Um sacerdote, vestido todo de roxo, mirava-o com um olhar austero e perscrutador. Do seu lado direito estava uma mulher alta segurando na mão uma balança de ouro; do outro, um homem igualmente alto sustinha embaixo do braço um livro com todas as páginas em branco. Bem atrás havia uma velhinha aparentando mais de cem anos de idade, que portava na cabeça uma enorme ampulheta, que reluzia. Um grupo de sete crianças cercava a noiva e lançava sobre elas pétalas de rosas vermelhas. Ela sorria e dançava de felicidade.
- Aproxime-se o noivo! conclamou aquele que ministrava a cerimônia.
Ao acercar-se do altar, a Indesejada tomou-lhes as mãos e ambos ficaram defronte ao prelado, que lhes entregou as alianças e, após seguir todos os protocolos, declarou-os mulher e marido. Beijaram-se!

Findo a solenidade, seguiram eles até a carruagem que os conduziu até ao alto de uma montanha, que estava coberta por espesso nevoeiro. De lá ele inclinou os olhos e viu a terra, a cidade onde vivia, a rua em que morava e a casa onde sempre habitou. Notou grande movimentação por ela. Pessoas saíam e pessoas entravam. Algumas choravam, outras cochichavam. Daí a pouco viu sair um caixão, e os seus olhos o seguiram até o cemitério. Alguém levantou a tampa do ataúde: lá estava ele, morto, prestes a ser sepultado. Assustado, ele vira-se para o lado e fixa o olhar na esposa, que lhe toma as mãos e salta no precipício. Lá embaixo, deixava-se cair a última pá de cal sobre o defunto.

Março/2015.

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