EM DIREÇÃO
AO ABISMO
“Tenho de
viver, mas, para quê?”
De
repente começou a pensar na vida. Até então, vivia a tranquilidade dos amantes
felizes, que se amam intensamente sem conhecer a etimologia de Eros. Ao saber
da morte de alguém, de um parente, amigo ou conhecido, conformava-se sem
questionar os desígnios da existência humana, e sempre atribuía a Deus o
destino dos homens.
- É a
vontade de Deus, dizia com passiva resignação.
Adaptava-se
às circunstâncias e se conformava com a sorte com a igual naturalidade de quem
fuma um charuto de Havana, com a diferença que este ver esvair a fumaça com a
mesma angústia dos poetas e dos filósofos.
Quando
morreu sua mãe, chorou todas as lágrimas de um bom filho, porém, logo se
consolou como se consolam todos os mortais. Não fez desse drama um postulado
filosófico, nem tentou extrair dele qualquer reflexão epistemológica,
ontológica ou ética.
- Seja
feita a vontade de Deus, consolava-se e se rendia assim à Divina Providência.
Foi a
leitura de um clássico russo, de autoria do célebre escritor Liev Tolstói, que
fez despertar nele um novo ímpeto filosófico. Se não seguia a Damasco, chegava
a Estagira. Enquanto ali a revelação cegara os olhos do apóstolo, aqui se
abrira a visão do filósofo. De uma hora para outra passou a questionar tudo e
todos, a querer saber as razões disso, as causas daquilo, o porquê de
existirmos, de onde viemos, para onde iremos, enfim, passou a discorrer e
raciocinar sobre quaisquer assuntos, inclusive sobre o nada absoluto. Com o
tempo tornou-se pessimista e se embrenhou em Schopenhauer.
Plus
ultra! Queria ir além do senso comum. Todavia, não ambicionava encontrar a
fórmula da vida, nem tencionava inventar um medicamento sublime, um emplastro
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Queria
apenas entender a vida na sua essência, compreender o homem na sua origem. Em
consequência disso, entregou-se ao estudo, lendo tudo, de Platão a Paulo
Coelho. Em Drummond descobriu que a vida é vontade de morrer; em Jean
Paul-Sartre, que é um pânico num teatro em fogo; em Shakespeare, uma história
contada duas vezes; em Erasmo de Rotterdam, uma peça de teatro em que cada um,
sob sua máscara, vive seu personagem até que o diretor o tira da cena; no
Talmude, a sombra de um pássaro que nos sobrevoa; e, na Bíblia, um vapor que
aparece por um pouco, e depois se desvanece.
Ao cabo
de rigorosa investigação filosófica, concluiu que não sabia nada e se meteu no
ceticismo. Embora não duvidasse da existência de um ser supremo, não podia
conceber uma divindade conceitualmente religiosa, criada pelas conveniências
dos séculos, padronizada pela força dos homens e enraizada nas mentes pelo
estigma do medo.
-
Acredito no Deus de Espinosa, dizia acrescentando à fala o dístico latino: Deus
sive natura! Todavia, não punha em discussão a existência de Deus, que considerava
uma questão inútil, não obstante discutível filosoficamente. Foi exatamente
isso que externou num debate, quando lhe pediram uma prova filosófica e
científica da existência divina:
- Qual a
lógica mais razoável, objetava com acentuada ironia, provar Deus ou deixar que
ele mesmo se faça provar? Por que essa imperiosa necessidade de se prová-lo,
supondo que ninguém lhe tenha perguntado se deseja ser provado? Aos de
tendências religiosas, continuava, por que não estabelecer a fé como único
parâmetro para se chegar a ele? E, aos que o contestam, concluía, por que não
deixar que o fluir do tempo o conduza ao mar do esquecimento?
Assim ia
ele sempre metido em debates e controvérsias filosóficas. Se isso lhe trouxe
fama e prestígio, rendeu-lhe também muitos inimigos e bastante dor de cabeça.
Fugit
irreparabile tempus.
Com o
andar dos anos, porém, o tédio e o abatimento bateram à porta do nosso
filósofo. Sentiu então saudades dos tempos de outrora, quando sua única
preocupação com a vida era vivê-la. Agora estava imerso num oceano de perguntas
sem respostas. Tinha a chave na mão, mas não havia portas para abrir. Queria ir à Pasárgada, mas esquecera do
endereço. Restava-lhe, pois, mergulhar cada vez mais fundo, mesmo sabendo que
seguiria em direção ao abismo.
Abril, 2015.
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