sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "A Cidade em Preto e Branco"

A CIDADE EM PRETO E BRANCO

Depois de uma noite longa e marcada por fortes tempestades, a cidade amanheceu em preto e branco. As ruas foram tomadas de um espantoso alvoroço e as pessoas que ali se desesperavam viam-se umas às outras como se estivessem nas páginas de uma antiga revista do século XIX: em preto e branco.
Alertadas sobre o evento, autoridades da capital compareceram ao local a fim de verificar o ocorrido, e ficaram estupefatas ao se verem, também, em preto e branco.
O estranho fenômeno estava circunscrito geograficamente dentro dos rígidos limites da cidade, de modo que, ao se retirarem dali, as pessoas livravam-se dele, e, ao entrarem, viam-se como que inseridas no velho tubo iconoscópico inventado por Vladimir Zworykin.
Cientistas do mundo todo peregrinaram até a cidade, na tentativa de decifrar o enigma e, quem sabe, encontrar uma solução que pudesse reverter o surpreendente acontecimento. Todavia, após inúmeras pesquisas, concluíram que tudo não passava de um estrondoso mistério, cabendo ao governo a incumbência de um desfecho para o caso. Este publicou uma resolução com a qual determinou que os moradores deveriam abandonar a cidade e que buscassem refúgio nos municípios vizinhos, afiançando-lhes que tão logo se resolvesse o problema, poderiam retornar normalmente para seus lares.
Decorrida uma semana, a cidade estava deserta, totalmente abandonada, ficando seus arredores vigiados dia e noite pelo exército, que proibia a entrada de qualquer pessoa, não importando as razões ou as circunstâncias. Meses depois ergueram um gigantesco muro ao seu redor, com um pequeno portão de ferro maciço, e declararam o local como área restrita e impenetrável, restando ao incauto aventureiro que ousasse penetrar ali, uma severa pena e multa por crime de desobediência pública.
Ao correr dos anos, alguns moradores da redondeza alertaram terem ouvido sons a soar à noite de dentro dos muros da cidade, como se fosse uma orquestra bem afinada, e vozes “como de anjos”, diziam. Outros relatavam terem visto luzes fosforescentes a cintilar por entre os muros na calada da noite, entre uivos de lobos e chacais. Havia também aqueles que “juravam de pés juntos” que presenciaram algo assemelhando a uma nave espacial pousando no interior da cidade, atribuindo ao fato a ação de extraterrestres ou seres alienígenas. Esse aglomerado de boatos chegou aos ouvidos das autoridades, que deliberaram adentrar os muros da misteriosa cidade, a fim de aquietar os ânimos e acabar de vez com as especulações, as quais poderiam ser geradoras de motins e rebeliões.
E o portão de ferro foi aberto para a entrada dos representantes do Governo. Ao redor, uma multidão de pessoas aguardava ansiosa e apreensiva alguma notícia que pudessem mudar suas vidas agitadas. Não houve notícias porque os representantes do Governo não retornaram. Este fato fez aumentar ainda mais o medo e a inquietação entre os habitantes da região, o que levou as autoridades a intervir com a ação do exército.
Homens das Forças Armadas, devidamente preparados, penetram na cidade, ainda sob o olhar aterrorizado da multidão. Mas estes também não regressaram. O povo, apavorado, uniu-se em grupos e investiu com martelos contra os muros da cidade, evento este que ficou conhecido como a “Revolta dos Martelos”.

Parte do muro veio ao chão e a multidão furiosa alcançou o interior da cidade, que se encontrava do mesmo jeito que antes, em preto e branco. Os representantes do governo e os soldados do exército foram achados dormindo serenamente embaixo de árvores, enquanto o vento espalhava sua brisa suave e tranquila. Tudo ali descolorido, em cores mortas, exceto o velho cemitério, que se destacava por suas cores vivas, assim como seus mortos.

Fevereiro, 2015.

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