sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "Atrasado"

ATRASADO

Era a primeira vez que chegara atrasado ao trabalho. Estava transtornado. Aquilo era como se fosse uma mácula para seu currículo, uma nódoa que jamais poderia ser apagada. Sentia-se culpado e demonstrava uma perturbação não habitual, a qual, por seu ineditismo, chamou a atenção dos colegas.

Interpelado se havia algum problema, disse apenas que estava cansado e que não dormira bem àquela noite:

– Um calor insuportável e ainda não chove, tentava justificar assim seus modos excêntricos.

Esteve deste jeito o dia todo, cabisbaixo, quieto e introspectivo. Não almoçou nem tomou seus cafezinhos rotineiros.

– Está doente? perguntou-lhe o supervisor, com ares de preocupado.

– Não senhor. Tive uma noite péssima, um calor insuportável, repetiu.

Findo o expediente retirou-se depressa, sem despedir-se dos colegas e sem aquela habitual passagem pelo boteco da esquina.

Em casa, desabou no sofá, exausto e visivelmente desanimado. Mirava o teto como se estivesse vislumbrando o buraco negro da sua própria alma inconsolada e abatida.

Morava sozinho. Embora orçasse pelos seus quarentas anos de idade, não havia ainda pensado em matrimônio. Queria dedicar-se integralmente a sua profissão, e o casamento com a iminente possibilidade de filhos, poderia fazer minar seus objetivos profissionais.

Dentre as muitas metas que estabelecera para sua carreira, uma delas dizia respeito exatamente à pontualidade. Acreditava que um bom funcionário para ser bom mesmo, deveria ser preciso nos horários estabelecidos, tão rígido como o grande relógio de Londres.

Agora havia interrompido uma sequência linear de assiduidade de quase cinco anos. Não podia mais voltar atrás. Em conseqüência disso sentia-se como se estivesse cometido um grave crime para o qual se seguiria uma severa pena.

Não havia motivo para o atraso, afinal a empresa estava localizada a dois quarteirões da sua casa, de modo que não necessitava tomar qualquer tipo de condução. Ia andando e de tal modo que sempre chegava meia hora antes. Desta vez, porém, algo deu errado, o relógio não despertou no horário programado, muito embora intercalasse dois alarmes com intervalo de dez minutos de um para outro. Também não fora acometido de nenhuma enfermidade. Tudo corria em perfeita ordem, dentro da mais perfeita rotina.

Como isso pôde acontecer? questionava-se o tempo todo como se estivesse transgredido o quinto mandamento sagrado.

O relojoeiro não encontrou nenhum defeito nos aparelhos, que pareciam trabalhar em perfeita ordem. Algo estranho aconteceu. Restava-lhe, pois, descobrir o quê!

Pensou em muitas coisas, e se convenceu que ali andou pondo o dedo alguma entidade sobrenatural. Talvez algum espírito desencarnado viera lhe cobrar alguma dívida passada, encontrando nos ponteiros do relógio o seu ponto fraco. “Foi isso”, pensou.

A esta constatação seguiram-se algumas reações imediatas. Na sexta andou por um terreiro de umbanda, onde tomou um passe e recebeu a bênção de um preto velho. No dia seguinte, esteve num culto pentecostal, submetendo-se a uma sessão de descarrego, para a libertação dos encostos e outros agentes do mal. E, por último, compareceu domingo à missa, participando com extrema consternação do corpo e do sangue de Cristo. Sentia-se, por fim, redimido das faltas cometidas, incluindo aí a culpa que há dias lhe oprimia e que tanto lhe causava desgosto. “Vida nova”, dizia...

Na manhã do dia seguinte, o alarme soou como de hábito, com a mesma pontualidade do grande relógio inglês. Levantou-se, seguindo à risca o script costumeiro. Não queria que nada desse errado. Saiu cantarolando. Estava feliz!

No caminho encontrou um velho, barbudo, que se chegou a ele e perguntou-lhe as horas, foi quando percebeu que havia esquecido o relógio.

– Desculpe-me, esqueci o relógio, respondeu sorrindo.

Foi a primeira vez que havia esquecido o relógio. O evento, aparentemente banal, fez arrepiar-lhe os pelos. Deliberou então voltar correndo a fim de buscá-lo. Encontrou-o em cima da pia com os ponteiros parados. Correu-lhe um frio pela espinha. Um turbilhão de pensamentos aflorou-lhe a mente. Por trás deles, estavam entidades espirituais querendo atormentar-lhe a vida, tirar-lhe a paz.  Via-se no fundo do abismo da desgraça.


Queria rezar, pedir socorro aos santos, ler o Salmo 91. Não dava tempo. Estava atrasado. Saiu de casa, ofegante, desesperado e correndo de um lado para outro da rua. Esbarrou num homem, escapou de cair num buraco. Ao dobrar a esquina, mirou bem o relógio e notou que os ponteiros corriam normalmente. Sentiu-se aliviado e respirou fundo. Em seguida, porém, desesperou-se ao dar-se por conta que estava atrasado, muito atrasado...



Fevereiro, 2015.

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