sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "As Confissões do Pastor Matias"

AS CONFISSÕES DO PASTOR MATIAS

Tinha Matias 25 anos quando se converteu à religião evangélica, tornando-se logo um fervoroso pentecostal e um rígido defensor do que chamava de “sã doutrina”. Não usava bermuda nem outras roupas que tomava por “mundanas”. Desfez-se da televisão e quebrou todos os seus velhos LPs de rock, incluindo sua tão cobiçada coleção de Pink Floyd.

- É o diabo encaixotado, dizia, referindo-se ao aparelho de TV.

Parou de fumar e não frequentava mais os botecos. O futebol, que sempre fora sua grande paixão, também foi deixado de lado. E o sexo ficou só para depois do casamento.

Debalde tentou converter a namorada, que temia abandonar o terreiro de Umbanda e ser punida pelos orixás. Em consequência disso rompeu ele o namoro, alegando que não podia haver comunhão entre a luz e as trevas. Ia procurar uma mulher santa e submissa à palavra de Deus.

- O Senhor vai preparar outra, tentava legitimar sua atitude aos parentes, que não se conformavam com tão brusca e extremada conduta.

Dois anos depois de convertido, foi consagrado ao posto de Diácono. A essa altura já tinha encontrado sua “Rebeca”, termo que, no jargão evangélico, identificava a mulher “preparada por Deus”. Seu nome era Sabrina.

Sabrina era virgem e orçava pelos 30 anos de idade. Foi Matias seu primeiro namorado. Conheceram-se num culto de vigília. Oraram, olharam-se e amaram-se. Casaram um ano depois, com a bênção de Deus e do pastor Jaime.

Já no início do consórcio Matias mostrou-se obstinado e exigente para com a mulher, proibindo-lhe o uso de qualquer roupa ou objetos considerados por ele como vaidosos ou mundanos, incluindo aí calças, brincos, pulseiras, colares, anéis e outras bijuterias. Não lhe permitia ainda que fizesse uso de anticoncepcional ou seja lá qual fosse o método contraceptivo, e justificava tudo recorrendo à Bíblia.

- Ora, não diz a Palavra de Deus “crescei e multiplicai?”

Pela rigorosa doutrina do Matias, não era ainda permitido à mulher depilar as pernas ou fazer as sobrancelhas. O uso de esmaltes também não era tolerado. A estas regras seguiam-se outras, como a proibição do salto alto e das botas até o joelho.

- A mulher de Deus tem de ser santa, está na Bíblia!

Concomitantemente ao nascimento do primeiro filho, foi ele ordenado pastor. Consta dessa data seu estranho hábito de dormir de paletó e tomar banho de camiseta e bermuda. Os outros cinco filhos vieram logo a reboque, num espaço quase linear de dez anos. Completava-se aí o mandamento bíblico da procriação.

Aos cinquenta anos Matias decidiu fundar sua própria denominação, construindo um pequeno salão num terreno cedido pelo sogro, o qual fora erguido em mutirão pelos próprios membros, cujo número, à época, chegava a quarenta pessoas, entre homens e mulheres.

Foi num culto de domingo que Matias apresentou os primeiros sintomas de uma grave enfermidade que rapidamente o levaria a morte. Sentiu um calafrio na espinha, que veio acompanhado de uma dor intensa e um desmaio alucinante.

O médico deu-lhe o diagnóstico e o tempo que lhe restaria de vida:

- Dou-lhe um mês de vida. Aproveite-a da melhor forma. A medicina não poderá curá-lo. Lamento!

Foram dias difíceis e angustiantes. Não obstante acreditasse e buscasse por meio da fé a cura para seu corpo, sentia este definhando lentamente aos poucos. Sequer podia pregar. Ficava quase todo o tempo numa cama, orando e lendo a Bíblia.

Sentindo a proximidade da morte, deliberou escrever uma carta. Chamou a companheira e recomendou-lhe em prantos que esta fosse aberta e lida apenas no seu velório, mas não por ela.

- Promete-me, promete?

Comovida e visivelmente abatida, ela o abraçou e, entre lágrimas, prometeu-lhe tudo que quisesse.

Morreu Matias aos cinquenta e cinco anos de idade, de terno e gravata e com a Bíblia sob o peito.

Deu-se o velório na igreja, às nove horas de uma fria noite do mês de junho. Realizada a cerimônia fúnebre, inicia-se a leitura da carta, que se encontrava devidamente lacrada e em cujo verso se via escrito: “Minhas confissões”.

- Prezados Irmãos, a pedido do meu querido esposo não abrir esta carta nem sei nada do seu teor. Desta forma, para cumprir sua vontade e para selar minha promessa, entrego-a ao nosso irmão Jônatas, a fim de que proceda  sua leitura. Peço silêncio e reverência a todos os presentes.

Ela chora. O homem então começa a leitura da carta:

Pequei, sim pequei!

E foi a gravidade dos meus pecados que fez dissipar de mim toda disposição em querer confessá-los ainda em vida. O perdão de Deus eu já o obtive, agora só peço o vosso. Perdoai-me irmãos!

Não me condenai pelos meus pecados, pois Davi pecou e vós o amais com todo o vosso ímpeto. Eu não fui Davi, mas fui humano. Perdoai-me irmãos!

A esta altura nota-se muitas faces apreensivas e outras completamente tomadas de angústia e pavor. Algumas mulheres buscam sair às ocultas do templo, mas de pronto são impedidas pelos seus maridos. Uma senhora aparentando lá seus cinquenta anos sente um mal estar, fazendo cessar momentaneamente a leitura da misteriosa epístola.

Os ânimos são acalmados e dá-se prosseguimento à leitura da carta:

Qual de vós não cometeu pecado atire a primeira pedra neste defunto que vos escreveu. Se a minha carne foi fraca, lembrai-vos de que sois também carne e de que sereis também defuntos. Perdoai-me irmãos!

Se fui um descomedido amante da vida e dos prazeres, e se para usufruí-los servir-me do vosso suado dízimo, lembrai-vos que em troca recebestes abundantes palavras de conforto e de consolação. Perdoai-me irmãos!

Quantos de vós daríeis tudo por uma delirante noite de prazer? Se exerceis restritivas ações sobre vossos impulsos e desejos, não o fazeis por deliberado amor a Deus, em vez disso, porém, porque temais as labaredas ardentes do inferno. Perdoai-me irmãos!

Fui ator de uma comédia trágica. E vós que assistis a este fúnebre espetáculo e que vedes temerosos este desagradável esquife, contai vossos anos, calculai vossos dias, pois são como a sombra de um pássaro que nos sobrevoa. O que é a vida senão uma peça de teatro em que cada um, sob sua própria máscara, vive seu próprio personagem até que o supremo diretor o venha tirar da cena? Perdoai-me irmãos!

Fui santo e devasso; fui crente e profano; fui sincero e hipócrita; fui humano, demasiadamente humano... Perdoai-me irmãos!

Confesso, querida Sabrina, que não fostes minha única mulher, nem foram únicos os nossos filhos. Em várias camas deitei e com muitas mulheres fiz gerar outros filhos, alguns dos quais aqui estão a velar o pai defunto. Olhai bem o Giovane, o Miguel e a Selma... Vede bem seus olhos, suas testas largas e, principalmente, seus cabelos pretos como graúna. A razão disto não consiste em mera casualidade. São todos filhos meus, de outras mulheres que muito amei... Lúcia, Márcia e Valéria. Não as condenem irmãos, pois seus maridos de tudo tinham conhecimento e tudo aprovavam. Perdoem-nos todos, irmãos!

Grande burburinho se faz ouvir no recinto. Algumas mulheres choram; outras desmaiam e agridem-se. A confusão é generalizada. Homens batem-se corpo-a-corpo e insultam-se mutuamente. Enquanto isso, um grupo aproximado de vinte pessoas congrega-se ao redor do caixão, encara o morto como se lhe quisesse trazer de volta sua alma e mandá-la às profundezas do Hades.


Em meio ao alvoroço, chegam dois agentes funerários devidamente acompanhados de uma viatura policial. Acalmam-se novamente os ânimos. Metem-se o féretro no rabecão, que é conduzido imediatamente ao cemitério. Prosseguem-se as confissões do pastor Matias...


Abril, 2014.

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