sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "Aposentados"

APOSENTADOS

Repentinamente viu-se apreensivo como se estivesse na expectativa de ver chegar alguém ou na iminência de receber alguma notícia. Ficou assim a semana toda, inquieto e com a mente visivelmente agitada.
- O que está acontecendo, homem? indagou sua senhora um tanto preocupada.
Ele limitou a dizer que estava tudo bem e que não havia razão para preocupações.
- Sossegue, mulher! Estou bem.
À medida que os dias iam passando, não só aumentava a inquietação da esposa como também tornava-se cada vez mais visível o desassossego de espírito do marido, que dormia mal e acordava sempre sobressaltado.
Instado a ir ao médico, irritou-se dizendo que não estava doente e que não precisava de remédio.
- Ora, já não disse que estou bem?
No fim de um mês passou a se comportar de modo ainda mais estranho. Tão logo tomava café, dirigia-se até a sacada do apartamento e por lá ficava horas e horas a mirar fixamente o horizonte, e às vezes a manhã toda, sentado, sem se mexer e sem dizer uma só palavra.
- Endoideceu de vez, desabafou a mulher com o cunhado, que lhe pedia só um pouco mais de paciência.
- Não há de ser nada, logo estará bom, disse-lhe com a promessa de ir ter com o irmão a fim de lhe aplicar alguns conselhos.
Conversaram. O outro, porém, conteve-se e apenas repetiu o que havia dito anteriormente à mulher, ou seja, que não estava doente e que não existiam motivos para preocupações.
De fato, o irmão não notou nada que pudesse indicar alguma debilidade física ou mental, somente um pouco de melancolia, que poderia ser apenas uma forma que encontrou para se adaptar a sua nova vida de aposentado.
Conformaram-se todos com isso.
Passados três meses, acrescentou às suas manias, o estranho hábito de escrever em papel de pão. Escrevia e rasgava, de modo que não se sabia de que se tratavam tais inscrições. A mulher aventou a ideia de que poderiam ser poemas, uma vez que ultimamente dera para ler e declamar poesias em voz alta na sacada do prédio. Preferia os poetas portugueses, especialmente Bocage e Fernando Pessoa.
Concomitantemente a esses hábitos, passou a tratar com novos modos a esposa. Às vezes surpreendia-a com flores e outros mimos, que sempre vinham acompanhados de galanteios e expressões poéticas. Inicialmente ela acatou com estranheza tais atitudes, mas logo se acostumou e até se sentia feliz e amada com isso.
Aproximava-se o inverno, quando recebeu a notícia de que sua mulher fora acometida de uma grave enfermidade, restando-lhe um ou no máximo dois meses de vida. O fato abateu-o profundamente a ponto de dizer que morreria junto com ela.
Não morreu ele. Ela, sim, morreu numa noite de sexta-feira antes de findar a estação fria. No velório declamou entre lágrimas “Um adeus à despedida”, verso de Fernando Pessoa, que muita comoção causou entre os presentes:
Quem nunca se despediu
Pode julgar-se feliz,
A pessoa que assim diz
É porque sempre sorriu.
Mas se outra dor a feriu –
A da morte desvalida
Que deixa maior ferida
De saudade e de amargura,
Maior do que essa tortura –
Um "adeus" à despedida.
 Seis meses depois virou poeta e compôs, em versos alexandrinos, um esticado poema intitulado “À Musa Sexagenária”, dedicado à viúva de um amigo, uma garbosa senhora de sessenta e dois anos, com a qual entrou no pleno gozo da aposentadoria.

Março/2015.

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