sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Brasílio Machado: "5 Poemas"

FLOR NO GELO

Pobre criança! entre espinhos
tua inocência agoniza:
o viajante repisa
a morta flor dos caminhos.

Deixaste em noite sombria
tua grinalda ao relento...
Das flores... nem sabe o vento
que uma a uma as partia!

Enquanto em languido riso
teus lábios puros se abriam
aos sonhos que reviviam
delícias do paraíso,

tu nem cismavas, criança,
que quando a virgem fenece,
a estrela que desaparece
leva consigo a esperança!

Pobre! na alegre devesa
daquela casinha branca
onde tu' irmã, na barranca
do rio, chora em tristeza,

o campo flor não promete,
tudo na dor se consome;
e o eco esquece teu nome...
nem tua mãe o repete!

A mãe! que noites sem sono!
que mágoas naqueles dias!
que terríveis agonias
na dor d’aquele abandono!

Mas, oh! não voltes... O inverno
queimou-te as azas depressa:
e onde a irmãzinha adormeça
no casto seio materno,

não deves buscar asilo;
porque a ramagem do espinho
pode estreitar o berçinho
que se balança tranquilo!

Bem sei: — há quedas imensas
que uma lágrima resgata;
mas não sei, pobre insensata,
se revivem mortas crenças...

Se assim for, chora, criança!
talvez do pranto que caia
Deus forme a flor d'onde saia
o aroma de uma esperança!



AVE DOURADA
(N. MARTIN, Mariska)

Um pássaro cantava
sobre um ramo que flórido alvejava.

Era uma ave tão de ouro
que disseram-na — filha peregrina
do sol, o amante louro.

Como ao toque uma lamina que vibra,
á sua voz cristalina
tremia o coração, fibra por fibra.

E á minh'alma a esperança intumescia
de sonhos... mas o encanto se esvaía.

Ai! quando o verei mais, funda saudade!
o pássaro de luz da mocidade!



NA VALSA
(MÉRY)

— Uma hora.
— A pêndula mente,
meia-noite vai soar.
— Que baile este atraente!
— Soberba festa, senhora,
festa completa, nesta hora
em que estamos a valsar.

— Acha a toilette — brilhante
daquela loura mulher?

— Oh! neste suave instante
não se desprendem, sequer,
meus olhos de uma valsante
que é formosa a mais não ser.

— Não agradou-lhe o romance
cantado tão bem aqui?
— Só vivo quando valsamos...
portanto nada eu ouvi.

— Esta valsa que dançamos
é de Strauss?
— Talvez... depois
toda a valsa é tão bonita!
marca o tempo só p'ra dois!

— Neste inverno há muitos bailes...
— Eu não não frequento, não:
passo a noite ou nos teatros
ou no lar junto ao fogão.

— Tão moço! e já de neve
a mocidade cobris?

— Tenho trint'anos. Passada
a primavera dourada,
apenas cai-me esfolhada
alguma hora feliz.

— A idéia é nova!
— Tenho outra
que é também nova p'ra mim.
— Não é segredo?
— Suspeito
que vós sois viúva...
— Sim.
— E desde quando?
— há dois anos.
— E gosta da viuvez?
— Sim.
— Porque é repelente
um laço eterno, talvez...
O esposo é pouco indulgente...
— Pensai-o, se assim quereis.

— Não, a viuvez não lhe agrada;
seu sorriso assim m'o diz...
— Também só, me custa a vida:

podemos, pois, de dois males
formar destino feliz.
Assim, dá-me a sua mão?
— A minha?
— Sim; nosso estado
não impede uma união.
Seus pais...
— São vivos.
— Qu'importa?
eles jamais poderão
contrariar o destino.
Vivos, na morte eles 'stão.

— Foi seu pedido — apressado!
— Não estamos no país
da Escócia; e todo noivado
de Lamermoor é infeliz...
Não faremos festa alguma
de esponsais: — em bons caminhos
não ponho o pé nos espinhos.
Casaremos amanhã...
— Amanhã?
— Ou nunca!
— Estranho
caso igual inda não vi.
— Que tem? é cousa mais simples
que pôr um ponto no i.

— Como se chama?
— Meu nome?
Pedro ou Paulo, qual quiser.
Qu'importa o nome de um moço?
sem ter um, mais posso ter.

Sou rico. Minha fortuna
não é mesquinha, nem van:
consta de ações e de apólices...
Findou a valsa.
— Amanhã.



REMINISCÊNCIAS

Oh! não toqueis assim nesse piano...
Essa música é triste como a morte:
as notas se desprendem, como a lágrima
goteja sobre um túmulo.

A corda chora, e no contacto sente
uma outra mão que não a dele... morto.
E ao retrair-se deixa um som que é lúgubre,
ou um gemido trêmulo.

Foi seu canto de cisne... Pobre amigo!
nunca pensara desfolhar tão cedo
o risonho porvir, e cedo á glória
prender um laço fúnebre.

Não pensara deixar tão cedo a estrada
cuja poeira os louros escondiam,
e trocar as grinaldas estelíferas
pelos goivos funéreos.

Não evoqueis a sombra! no cipreste
a rola da saudade geme ainda.
A aza do tempo sobre o mármore gélido
não apagou seu dístico.

E é tão doída essa saudade imensa,
que eu vos peço, senhora: do piano
não arranqueis esse gemido extremo.
Não aperteis a cicatriz que doe-me
contra a laje de um túmulo!



PIRACICABA

Sacode os ombros nus, oh noiva da colina,
que a luz da madrugada encheu o largo céu;
e arranca-te das mãos o manto da neblina
que ondula sobre o rio, enorme e solto véu...

Ergue-te, oh noiva! a aurora acorda e orvalha os ninhos, beija o vasto horizonte e a
pequenina flor;
levantam-se no espaço em bando os passarinhos,
descem de além frescura, luz e paz e amor.

Aberta pelo vento, a úmida palmeira
agita o verde leque em fundo todo azul;
como o cocar do índio, em pé na cordilheira,
se abria em pleno ar, á viração do sul...

Envoltas pela noite, as perolas celestes
se deixarão levar a outras amplidões:
mas eis que surge além, entre douradas vestes,
o sol, bordando a ti de mágicos listrões.

Desperta, oh índia, ao sol! O rio o corpo estende
e anilado a teus pés vai múrmur se quebrar...
ai! vendo que a alvorada em sonhos te surpr'ende
nest'hora em que parece á terra o céu baixar.

O rio é teu amante. Irrompe entre colinas,
como o jaguar que avista a companheira e vai...
mas vendo-te, ao chegar, quão bela te reclinas,
estaca de repente, e a fúria o arroja, e cai!

E a fúria o arroja, e cai... Do precipício ao fundo
atira o corpo e cava as pedras a bramar:
e espedaçado sobe, e espedaçado afunda
no abismo que se alarga e tenta-o sufocar!

E o dorso bate a pedra, enraiva-se a torrente
que em cascatas do trono erguido resvalou...
E salta a espuma branca em chuva alvinitente
onde o íris do céu em curva se formou...

Pela boca do abismo as águas repelidas
enchem a vastidão de ronco atroador:
— e rolam pelo rio a plagas não sabidas
os murmúrios da onda, a voz do tombador!

Depois abre-se a cava enorme onde o combate
só n'o conhece o rio e o abismo que o atrai:
em baixo ferve a luta: a onda a cova bate...
por cima a calma fria: a onda sobe e vai...

a onda sobe e vai serena, extenuada,
depois de pelejar perder-se além, além;
e sente á tona d'água a quilha já cansada
trazendo o pescador que rio acima vem.

E tu, formosa índia, em pé sobre a colina,
sentes da onda azul o languido bater;
Enquanto sob o véu da trêmula neblina
ruge a cascata além, sem vir interromper...

sem vir interromper a paz, em que te embalas,
o amor, a luz, a graça — adornos que são teus.
Cercou-te o Criador de peregrinas galas...
deu-te uma terra em flor, cheios de luz os céus.

Deu-te o horizonte azul que tem a minha terra,
minha terra natal, meu ninho encantador.
Só a c'roa não tens d'essa saudosa serra
que cerca em meu país, a várzea toda em flor.

A tua noite envolve as mesmas estrelinhas,
a mesma poesia, a mesma luz divina;
como lá, eu bem sei, o bando de andorinhas,
aqui recorta o céu, na hora vespertina!

Deixa-me, pois, que eu sonhe, ao ver-te reclinada
banhando os alvos pés, do rio n'onda azul,
que eu sonhe a minha terra, a perola dourada
suspensa longe... longe... entre as névoas do sul!


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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