sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Alexandre Herculano: "5 Poemas"

SEMANA SANTA

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,

Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enteado!

O mar azul se encrespa
C’oa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.

E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.

Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.

Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:

E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.

Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor

E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.

Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.

Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:

“Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,

E o frêmito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,

Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,

Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.

Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,

Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.

Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!”

Oh, sim, torva blasfêmia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;

Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.


A VOZ

É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia,
Se em alcantis marinhos,
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enteado!
O mar azul se encrespa
C’oa vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus,
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
“Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frêmito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,
Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hino
Em dias de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.
Ele o mandou: a causa
Disso o universo ignora,
E mudo está. O nume,
Como o universo, adora!”
Oh, sim, torva blasfêmia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de sua harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
Do nardo recendente.
 

O SOLDADO

I
Veia tranquila e pura
De meu paterno rio,
Dos campos, que ele rega,
Mansíssimo armentio.

Rocio matutino,
Prados tão deleitosos,
Vales, que assombravam selvas
De sinceirais frondosos,

Terra da minha infância,
Teto de meus maiores,
Meu breve jardinzinho,
Minhas pendidas flores,

Harmonioso e santo
Sino do presbitério,
Cruzeiro venerando
Do humilde cemitério,

Onde os avós dormiram,
E dormirão os pais;
Onde eu talvez não durma,
Nem reze, talvez, mais,

Eu vos saúdo!, e o longo
Suspiro amargurado
Vos mando. E quanto pode
Mandar pobre soldado.

Sobre as cavadas ondas
Dos mares procelosos,
Por vós já fiz soar
Meus cantos dolorosos.

Na proa ressonante
Eu me assentava mudo,
E aspirava ansioso
O vento frio e agudo;

Porque em meu sangue ardia
A febre da saudade,
Febre que só minora
Sopro de tempestade;

Mas que se irrita, e dura
Quando é tranquilo o mar;
Quando da pátria o céu
Céu puro vem lembrar;

Quando, no extremo ocaso,
A nuvem vaporosa,
À frouxa luz da tarde,
Na cor imita a rosa;

Quando, do Sol vermelho
O disco ardente cresce,
E paira sobre as águas,
E enfim desaparece;

Quando no mar se estende
Manto de negro dó;
Quando, ao quebrar do vento,
Noite e silêncio é só;

Quando sussurram meigas
Ondas que a nau separa,
E a rápida ardentia
Em torno a sombra aclara.

II
Eu já ouvi, de noite,
Entre o pinhal fechado,
Um frêmito soturno
Passando o vento irado:

Assim o murmúrio
Do mar, fervendo à proa,
Com o gemer do aflito,
Sumido, acorde soa;

E o cintilar das águas
Gera amargura e dor,
Qual lâmpada, que pende
No templo do Senhor,

Lá pela madrugada,
Se o óleo lhe escasseia,
E a espaços expirando.
Afrouxa e bruxuleia.

III
Bem abundante messe
De pranto e de saudade
O foragido errante
Colhe na soledade!

Para o que a pátria perde
É o universo mudo;
Nada lhe ri na vida;
Mora o fastio em tudo;

No meio das procelas,
Na calma do oceano,
No sopro do galerno,
Que enfuna o largo pano.

E no entestar c’oa terra
Por abrigado esteiro,
E no pousar à sombra
Do teto do estrangeiro.

IV
E essas memórias tristes
Minha alma laceraram,
E a senda da existência
Bem agra me tornaram:

Porém nem sempre férreo
Foi meu destino escuro;
Sufocou de luz um raio
As trevas do futuro.

Do meu país querido
A praia ainda beijei,
E o velho e amigo cedro
No vale ainda abracei!

Nesta alma regelada
Surgiu ainda o gozo,
E um sonho lhe sorriu
Fugaz, mas amoroso.

Oh, foi sonho da infância
Desse momento o sonho!
Paz e esperança vinham
Ao coração tristonho.

Mas o sonhar que monta,
Se passa, e não conforta?
Minh'alma deu em terra,
Como se fosse morta.

Foi a esperança nuvem,
Que o vento some á tarde:
Facho de guerra aceso
Em labaredas arde!

Do fratricídio a luva
Irmão a irmão lançara,
E o grito: ai do vencido!
Nos montes retumbara.

As armas se hão cruzado:
O pó mordeu o fone;
Caiu: dorme tranquilo:
Deu-lhe repouso a morte.

Ao menos, nestes campos
Sepulcro conquistou,
E o adro dos estranhos
Seus ossos não guardou.

Ele herdará, ao menos,
Aos seus honrado nome;
Paga de curta vida
Ser-lhe-á largo renome.

V
E a bala sibilando,
E o trom da artilharia,
E a tuba clamorosa,
Que os peitos acendia,

E as ameaças torvas,
E os gritos de furor,
E desses que expiravam
Som cavo de estertor,

E as pragas do vencido,
Do vencedor o insulto.
E a palidez do morto,
Nu, sanguento, insepulto,

Eram um caos de dores
Em convulsão horrível,
Sonho de acesa febre,
Cena tremenda e incrível!

E suspirei: nos olhos
Me borbulhava o pranto,
E a dor, que trasbordava,
Pediu-me infernal canto.

Oh, sim!, maldisse o instante,
Em que buscar viera,
Por entre as tempestades,
A terra em que nascera.

Que é, em fraternas lides,
Um canto de vitória?
É delirar maldito;
É triunfar sem glória.

Maldito era o triunfo,
Que rodeava o horror,
Que me tingia tudo
De sanguinosa cor!

Então olhei saudoso
Para o sonoro mar;
Da nau do vagabundo
Meigo me riu o arfar.

De desespero um brado
Soltou, ímpio, o poeta,
Perdão! Chegara o mísero
Da desventura à meta.

VI
Terra infame! – de servos aprisco,
Mais chamar-me teu filho não sei;
Desterrado, mendigo serei:
De outra terra meus ossos serão!

Mas a escravo, que pugna por ferros,
Que herdará desonrada memória,
Renegando da terra sem glória,
Nunca mais darei nome de irmão!

Onde é livre tem pátria o poeta,
Que ao exílio condena ímpia sorte.
Sobre os plainos gelados do norte
Luz do Sol também desce do céu;

Também lá se erguem montes. e o prado
De boninas, em Maio, se veste;
Também lá se meneia o cipreste
Sobre o corpo que à terra desceu.

Que me importa o loureiro da encosta?
Que me importa da fonte o ruído?
Que me importa o saudoso gemido
Da rolinha sedenta de amor?

Que me importam outeiros cobertos
Da verdura da vinha, no Estio?
Que me importa o remanso do rio,
E, na calma, da selva o frescor?

Que me importa o perfume dos campos,
Quando passa da tarde a bafagem,
Que se embebe, na sua passagem,
Na fragrância da rosa e alecrim?

Que me importa? Pergunta insensata!
É meu berço: a minha alma está lá...
Que me importa... Esta boca o dirá?!
Minha pátria, estou louco... menti!

Eia, servos! O ferro se cruze,
Assobie o pelouro nos ares;
Estes campos convertam-se em mares,
Onde o sangue se possa beber!

Larga a vala!, que, após a peleja,
Todos nós dormiremos unidos!
Lá, vingados, e do ódio esquecidos,
Paz faremos... depois do morrer!

VII
Assim, entre amarguras,
Me delirava a mente;
E o Sol ia fugindo
No termo do Ocidente.

E os fortes lá jaziam
C’oa face ao céu voltada;
Sorria a noite aos monos,
Passando sossegada.

Porém, a noite deles
Não era a que passava!
Na eternidade a sua
Corria, e não findava.

Contrários ainda há pouco,
Irmãos, enfim, lá eram!
O seu tesouro de ódio,
Mordendo o pó, cederam.

No limiar da morte
Assim tudo fenece:
Inimizades calam,
E até o amor esquece!

Meus dias rodeados
Foram de amor outrora;
E nem um vão suspiro
Terei, morrendo, agora,

Nem o apertar da dextra
Ao desprender da vida,
Nem lágrima fraterna
Sobre a feral jazida!

Meu derradeiro alento
Não colherão os meus.
Por minha alma aterrada
Quem pedirá a Deus?

Ninguém! Aos pés o servo
Meus restos calcará,
E o riso ímpio, odiento,
Mofando soltará.

O sino lutuoso
Não lembrará meu fim:
Preces, que o morto afagam,
Não se erguerão por mim!

O filho dos desertos,
O lobo carniceiro,
Há de escutar alegre
Meu grito derradeiro!

Ó morte, o sono teu
Só é sono mais largo;
Porém, na juventude,
É o dormi-lo amargo:

Quando na vida nasce
Essa mimosa flor,
Como a cecém suave,
Delicioso amor;

Quando a mente acendida
Crê na ventura e glória;
Quando o presente é tudo.
E inda nada a memória!

Deixar a cara vida,
Então é doloroso,
E o moribundo à Terra
Lança um olhar saudoso.

A taça da existência
No fundo fezes tem;
Mas os primeiros tragos
Doces, bem doces, vem.

E eu morrerei agora
Sem abraçar os meus,
Sem jubiloso um hino
Alevantar aos Céus?

Morrer, morrer, que importa?
Final suspiro, ouvi-lo
Há de a pátria. Na terra
Irei dormir tranquilo.

Dormir? Só dorme o frio
Cadáver, que não sente;
A alma voa a abrigar-se
Aos pés do Onipotente.

Reclinar-me-ei à sombra
Do amplo perdão do Eterno;
Que não conheço o crime,
E erros não pune o Inferno.

E vós, entes queridos,
Entes que tanto amei,
Dando-vos liberdade
Contente acabarei.

Por mim livres chorar
Vós podereis um dia,
E às cinzas do soldado
Erguer memória pia.


A CRUZ MUTILADA

Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém guando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,

Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,

E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

***

E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!

***

Foi da ciência incrédula o sectário,
Acaso, ó cruz da serra, o que na face
Afrontas te gravou com mão profusa?
Não! Foi o homem do povo, a quem consolo
Na miséria e na dor constante hás sido
Por bem dezoito séculos: foi esse
Por cujo amor surgias qual remorso
Nos sonhos do abastado ou do tirano.
Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras
Símbolo eterno de urna crença eterna;
Se a nossa fé em ti fosse mentida,
Dos opressos de outrora os livres netos
Por sua ingratidão dignos de opróbrio,
Se não te amassem, ainda assim seriam.
Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,
Esquecidos das lágrimas perenes
Por trinta gerações, que guarda a campa.
Vertidas a teus pés nos dias torvos
Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se

De que. se a paz doméstica, a pureza
Do leito conjugal bruta violência
Não vai contaminar, se a filha virgem
Do humilde camponês não é ludíbrio
Do opulento, do nobre, ó Cruz. to devem;
Que por ti o cultor de férteis campos
Colhe tranquilo da fadiga o prêmio,
Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura
Lhe diga: “É meu, e és meu! A mim deleites,
Liberdade, abundância: a ti, escravo,
O trabalho. a miséria unido à terra,
Que o suor dessa fronte fertiliza,
Enquanto, em dia de furor ou tédio,
Não me apraz com teus restos fecundá-la.”

Quando calada a humanidade ouvia
Este atroz blasfemar, tu te elevaste
Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,
E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:
“Mentira!”, e o servo alevantou os olhos,
Onde a esperança cintilava, a medo,
E viu as faces do senhor retintas
Em palidez mortal, e errar-lhe a vista
Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente
Da liberdade anunciara a vinda.

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência
Desgastou no volver de cem combates,
Ao ver que, enfim, o seu país querido
Já não ousam calcar os pés d'estranhos,
Vem assentar-se à luz meiga da tarde,
Na tarde do viver, junto do teixo
Da montanha natal. Na fronte calva,
Que o sol tostou e que enrugaram anos,
Há um como fulgor sereno e santo.
Da aldeia semideus, devem-lhe todos
D teto, a liberdade, e a honra e vida.
Ao perpassar do veterano, os velhos
A mão que os protegeu apertam gratos;
Com amorosa timidez os moços
Saúdam-no qual pai. Nus largas noites
Da gelada estação, sobre a lareira
Nunca lhe falta o cepo incendiado;
Sobre a mesa frugal nunca, no estio,
Refrigerante pomo. Assim do velho
Pelejador os derradeiros dias
Derivam para o túmulo suaves,
Rodeados de afeto, e quando à terra
A mão do tempo gastador o guia,
Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze
Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem
Do defensor do fraco as cinzas frias.

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,
Os gigantes combates dos tiranos,
E venceste. No solo libertado,
Que pediste? Um retiro no deserto,
Um píncaro granítico, açoutado
Pelas asas do vento e enegrecido
Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te
Este ar úmido e gélido a segure
Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio
No ardor canicular nunca disseste:
“Dai-me, sequer, do bravo medronheiro
O desprezado fruto!” O teu vestido
Era o musgo, que tece a mão do Inverno
E Deus criou para trajar as rochas.
Filha do céu, o céu era o seu teto,
Teu escabelo o dorso da montanha.
Tempo houve em que esses braços te adornava
C'roa viçosa de gentis boninas,
E o pedestal te rodeavam preces.
Ficaste em breve só, e a voz humana
Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.
Que te importava? As árvores da encosta
Curvavam-se a saudar-te, e revoando
As aves vinham circundar-te de hinos.
Afagava-te o raio derradeiro,
Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares.
E esperavas o túmulo. O teu túmulo
Devera ser o seio destas serras,
Quando, em Gênesis novo, à voz do Eterno,
Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,
Elas nus fauces dos bolcões descessem.
Então para essa campa flores, bênçãos,
Ou é saudade lágrimas vertidas,
Qual do velho soldado a lousa pede,
Não pediras à ingrata raça humana,
Ao pé de ti no seu sudário envolta.

***

Este longo esperar do dia extremo,
No esquecimento do ermo abandonada,
Foi duro de sofrer aos teus remidos,
Ó redentora cruz. Eras, acaso,
Como um remorso e acusação perene
No teu rochedo alpestre, onde te viam
Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,
Quando a procela no pinhal rugia,
Criam ouvir-te a voz acusadora
Sobreelevar à voz da tempestade?
Que lhes dizias tu? De Deus falavas,
E do seu Cristo, do divino mártir,
Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita
Ergueu, purificou, clamando ao servo,
No seu transe: “Ergue-te, escravo!
És livre, como é pura a cruz da infâmia.
Ela vil e tu vil, santos, sublimes
Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!
Abraça tua irmã: segue-a sem susto
No caminho dos séculos. Da Terra
Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo
Trará da tua liberdade o dia.”

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,
Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te
Nos rumores da noite, a antiga história
Recontando do Gólgota, lembrando-lhes
Que só ao Cristo a liberdade devem,
E que ímpio o povo ser é ser infame.
Mutilado por ele, a pouco e pouco,
Tu em fragmentos tombarás do cerro,
Símbolo sacrossanto. Hão de os humanos
Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.
Da gratidão a dívida não paga
Ficará, ó tremenda acusadora,
Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;
Sem que o remorso os corações lhes rasgue.
Do Cristo o nome passará na Terra.

***

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina
Deixar de ser perene testemunha
Da avita crença, os montes, a espessura,
O mar, a Lua, o murmurar da fonte,
Da natureza as vagas harmonias,
Da cruz em nome, falarão do Verbo.

Dela no pedestal, então deserto,
Do deserto no seio, ainda o poeta
Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;
E a voz da selva lhe dirá que é santo
Este rochedo nu, e um hino pio
A solidão lhe ensinará e a noite.

Do cântico futuro unta toada
Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos
Da brisa do crepúsculo nus asas?
É o porvir que te proclama eterna;
É a voz do poeta a saudar-te.

***

Montanha do Oriente,
Que, sobre as nuvens elevando o cume,
Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,
E que, lá no Ocidente,
Última vez seu radioso lume,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Rochedo, que descansas
No promontório nu e solitário,
Como atalaia que o oceano explora,
Alheio ás mil mudanças
Que o mundo agitam turbulento e vário,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Sobros, robles frondentes,
Cuja sombra procura o viandante,
Fugindo ao Sol a prumo que o devora,
Nesses dias ardentes
Em que o Leão nos céus passa radiante,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mato variado,
De rosmaninho e murta entretecido,
De cujas ténues flores se evapora
Aroma delicado,
Quando és por leve aragem sacudido,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mar, que vais quebrando
Rolo após rolo pela praia fria,
E fremes som de paz consoladora,
Dormente murmurando
Na caverna marítima sombria,
Em li minha alma a eterna cruz adora.

Ó Lua silenciosa,
Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,
Esparzes tua luz ameigadora
Pela serra formosa,
E pelos lagos que em seu seio encerra,
Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Debalde o servo ingrato
No pó te derribou
E os restos te insultou,
Ó veneranda cruz:

Embora eu te não veja
Neste ermo pedestal;
És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!

Nas almas generosas
Gravou-te a mão de Deus,
E, à noite, fez nos céus
Teu vulto cintilar.

Os raios das estrelas
Cruzam o seu fulgor;
Nas horas do furor
As vagas cruza o mar.

Os ramos enlaçados
Do roble, choupo e til
Cruzando em modos mil,
Se vão entretecer.

Ferido, abre-o guerreiro
Os braços, solta um ai,
Pára, vacila, e cai
Para não mais se erguer.

Cruzado aperta ao seio
A mãe o filho seu,
Que busca, mal nasceu,
Fontes da vida e amor.

Surges; símbolo eterno,
No Céu, na Terra e mar,
Do forte no expirar,
E do viver no alvor!


DOM PEDRO

Pela encosta do Líbano, rugindo,
O noto furioso
Passou um dia, arremessando à terra
O cedro mais frondoso;
Assim te sacudiu da morte o sopro
Do carro da vitória,
Quando, ébrio de esperanças, tu sorrias,
Filho caro da glória.
Se, depois de procela em mar de escolhos,
A combatida nave
Vê terra e vento abranda, o porto aferra,
Com júbilo suave.
Também tu demandaste o Céu sereno,
Depois de uma árdua lida:
Deus te chamou: o prémio recebeste
Dos méritos da vida.
Que é esta? Um ermo de espinhais cortado,
Donde foge o prazer:
Para o justo ela existe além da campa:
Teme o ímpio o morrer.
Plante-se a acácia, o símbolo do livre,
Junto às cinzas do forte:
Ele foi rei – e combateu tiranos –
Chorai, chorai-lhe a morte!
Regada pelas lágrimas de um povo,
A planta crescerá;
E à sombra dela a fronte do guerreiro
Plácida pousará.
Essa fronte das balas respeitada,
Agora a traga o pó:
Do valente, do bom, do nosso Amigo
Restam memórias só;
Mas estas, entre nós, com a saudade
Perenes viverão,
Enquanto, à voz de pátria e liberdade.
Ansiar um coração.
Nas orgias de Roma, a prostituta,
Folga, vil opressor:
Folga com os hipócritas do Tibre;
Morreu teu vencedor.
Envolto em maldições, em susto, em crimes
Fugiste, desgraçado:
Ele, subindo ao Céu, ouviu só gueixas,
E um choro não comprado:
Encostado na borda do sepulcro,
O olhar atrás volveu,
As suas obras contemplou passadas,
E em paz adormeceu:
Os teus dias também serão contados,
Covarde foragido;
Mas será de remorso tardo e inútil
Teu último gemido:
Do passamento o cálix lhe adoçaram
Uma filha, urna esposa:
Quem, tigre cru, te cercará o leito,
Nessa hora pavorosa?
Deus, tu és bom: e o virtuoso em breve
Chamas ao gozo eterno,
E o ímpio deixas saciar de crimes,
Para o sumir no Inferno?
Alma gentil, que assim nos hás deixado,
Entregues à alta dor,
Anjo das preces nos serás, perante
O trono do Senhor:
E quando, cá na Terra, o poderoso
As Leis aos pés calcar,
Junto do teu sepulcro irá o opresso
Seus males deplorar:
Assim, no Oriente, de Albuquerque às cinzas
O desvalido indiano
Mais de urna vez foi demandar vingança
De um déspota inumano.
Mas quem ousará à pátria tua e nossa
Curvar nobre cerviz?
Quem roubará ao lusitano povo
Um povo ser feliz?
Ninguém! Por tua glória os teus soldados
Juram livres viver.
Ai do tirano que primeiro ousasse
Do voto escarnecer!
Nesse abraço final, que nos legaste,
Legaste o gênio teu:
Aqui – no coração – nós o guardamos;
Teu gênio não morreu.
Jaz em paz: essa terra, que te esconde,
O monstro abominado
Só pisará ao baquear sobre ela
Teu último soldado.
Eu também combati: nus pátrias lides
Também colhi um louro:
O prantear o Companheiro extinto
Não me será desdouro.
Para o Sol do Oriente outros se voltem,
Calor e luz buscando:
Que eu pelo belo Sol, que jaz no ocaso,
Cá ficarei chorando.


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Fonte:
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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