ROMANCE DE UM RAPAZ
À Memória do Dr.
Ferreira De Araújo
O Américo partia
para o sul, em busca de um lugar onde melhor se ganhasse a vida e se garantisse
o futuro. Deixava o sítio onde nascera e medrara feliz, porque os pais estavam
velhos, “com os pés para a cova”, e ele precisava ajudá-los e casar-se, como prometera à noiva. E, de saco às costas,
o seu lenço encarnado de chita entrouxando a roupa engomada, preso na mão pelas
pontas em nó, botou-se a caminho da cidade, para tomar o primeiro vapor que
passasse — sob o meridional esplendor de uma clara madrugada azul, em
que os pássaros trinavam festivamente pela pradaria aromatizada e colorida e
pelos laranjais floridos, que lembram noivados e exalam hálitos de amores,
marginando as brancas estradas risonhas.
A mãe, antes dele
partir, abraçada, pendurada ao seu grosso pescoço queimado pelo sol na
capinação das culturas, depois de lhe beijar as faces cheias e amorenadas,
sujas da primeira seda escura e rareada da barba nascente, disse-lhe comovida,
engasgada pelos soluços: — “Deus te abençoe e te faça um homem, filho!” e a Leopoldina, que estivera na véspera em sua casa até tarde, e que lhe
dera, ao despedir-se, uma trancinha odorante e luzente do seu cabelo
escuro e ondeado, cheio de crespinhos esvoaçantes na nuca, fez-lhe também uma
recomendação ingênua: — pediu-lhe “que se
lembrasse dela e que escrevesse”.
E lá foi o Américo
instalar-se no paquete, triste e saudoso de todas aquelas suavidades que
ficavam atrás, no seu sítio, e a que havia voltado as costas tão
precipitadamente, só pela necessidade de endireitar a vida, de torná-la outra.
Na esterilidade daquele meio perdera já a esperança de vir a ser “alguma coisa”, porque não possuía “bens de seu”, nem gado, nem terras de lavoura, nada! Sempre o escasso trabalho “à meia”, não deixando resultado senão para os outros, e lançando eternamente o
pobre trabalhador nas desconsolações e faltas do amargo semear em terras
alheias. Por isso abandonava tudo, abnegadamente, com sacrifício, para ir
ganhar o pão longe, no meio das grandes cidades ruidosas.
E, de repente,
acossado pela nostalgia que acomete aos que deixam o lar pela primeira vez,
desandou a chorar rijamente, soluçantemente, entalado, por causa dos grandes
balanços do mar alto, na estreiteza de um sujo beliche de terceira classe. Mas,
dois dias depois, já familiarizado a bordo, conversava, sorria, na alegria e na
grande esperança dos que rolam para um destino novo. E, chegado ao Rio Grande,
tratou logo de empregar-se e de “fazer-se um
homem”, como lhe dissera a mãe.
Escrevia
continuamente à família, e recebia desta longas cartas, em garranchos
confusos, obscuros, de uma caligrafia impossível, mas de uma expressão doce e
carinhosa. Sabia notícias, andava ao fato das coisas. De repente, porém, da
parte dos seus, tudo cessou; anos passaram; um longo silêncio se fez. Cartas
extensas, anelantes, choradas e escritas tremulamente, à noite, pelo Américo,
num temor e numa obstinada apreensão de acontecimentos dolorosos e lúgubres
perderam-se, sumiram-se numa mudez sinistra... Mas um dia chegou-lhe uma carta,
com um sobrescrito estranho, estreita e tarjada de luto, noticiando-lhe a morte
dos pais, e, em seguida, da noiva. Uma desgraça! Teve uma negra amargura.
Ocorreu-lhe logo embarcar, regressar ao sítio. Mas naquela ocasião não podia “arredar pé”,
sair: perderia tudo. Resignou-se a ficar, sofrer...
Entretanto, os
negócios prosperavam e, no fim de alguns anos, o Américo voltou para a terra,
triste com a perda dos seus, mas impelido pelo desejo de tornar a ver, nos
objetos e nas pessoas, o seu passado, os seus conhecimentos antigos. Logo ao
desembarcar, o Alexandre da Praia, que andava botando as redes, correu-lhe ao
encontro, e ferozmente torturou-o com intermináveis detalhes do tristíssimo
viver da família, necessitada e doente desde o dia da sua partida até ao
momento em que “Deus se serviu de chamá-la para si!” “A Leopoldina, pobrezinha! que tantas esperanças tinha nele, estava
também debaixo da terra; morrera das bexigas, já lá iam bastantes anos.” E o Alexandre acentuava: “Parecia que a estava a ver, fria, toda negra,
envolta em folhas de bananeira e amortalhada num lençol, deitando mau asco.
Fora por uma noite álgida e enluarada de Agosto...”
O Américo, esmagado
por essas ideias pungentes e lutuosas, seguia agora, de cabeça baixa, o carro
de bois que levava a bagagem, um verdadeiro carro de bois, tradicional,
vagaroso e chiante, que dois bois arrastavam, babando-se, enterrados na areia
fina do caminho. Tomou em direção à freguesia, em busca de uma casa conhecida
ou de algum parente, para hospedar-se por aqueles dias. Não andara ainda muito
quando o agarrou a Fortunata Pereira, uma velha parenta afastada, que o
conduziu para casa, onde lhe deu café e agasalho em uma saleta vazia, fazendo
muitas perguntas, arrumando a bagagem e dizendo “que em
nada a incomodava, que a casa era grande e tinha até lisonja nisso. Pois se ela
o tinha visto em fraldinhas, Mãe de Deus!...”
O Américo, naquela
semana, não ousou sair, recebendo carinhosas visitas de parentes, de amigos, da
família e de alguns camaradas de infância. Mas depois, com as suas constantes
vestes de luto, em algumas tardes, ao lento desfalecer do sol no ocaso, subia a
ladeira vermelha, e pedregosa, que ia ter à igrejinha do sítio, para lançar um
olhar de enternecimento e de saudade ao lugar onde estavam os seus, ao estreito
e humilde cemitério, verde e florido como um jardim.
E de pé, sobre o
adro gramoso onde se erguia uma grande cruz de madeira preta, deitando um olhar
amplo e vago à paisagem em redor, sentia invadirem-lhe o coração, numa revoada,
mansa e piedosa, lembranças vivas e luminosas de um outro tempo, alegre,
fugidio e cantante. Recordava-se de tudo, das menores coisas que vira em
menino; e agora estava ele, ali, tão só, abandonado, numa desolação! O
contraste brutal das situações feria-o pungitivamente. E, sob essas
dolorosíssimas recordações, pensativo e melancólico, cabisbaixo, descia o adro
da igreja, vagaroso e soturno, recolhido, como quem pensa na profundidade e no
mistério das coisas.
Santa Catarina, 1885.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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