A BORDO DO
STEAMER
A Gonzaga Duque
Atracado ao
trapiche, na ampla baía em calma, sobre espias dando volta em arganéus de ferro
fincados nas grossas pedras do cais, um enorme steamer carrega. Metido
de popa, a linha d'água imerge já aí, enquanto o vermelhão do fundo, pintado de
fresco, se mostra ainda, no casco preto, aberto em nesga, à proa. Em volta, na
vasta planura líquida resplandescendo em largos chamalotes de prato, outros
navios, em grupos, eriçam o ar de mastros. Pequenos botes, em manchas
policromas, singram morosamente, a remos, rente à água, à sombra das bordas
altas dos barcos. E lanchinhas fumegantes cruzam-se rápidas, atracando e
desatracando, num movimento constante, com os seus vivos apitos, metálicos.
Mas a bordo do steamer
vai um alvoroço de dia de saída, uma grande faina, o fremir contínuo e áspero
dos guinchos de carga. A mastreação polida, ereta, alta, finca os topes
vitoriosos no Azul, entre as enxárcias, os brandais e os estais retezos, onde,
em noites tempestuosas, os ventos largos do oceano desferem sinfonias agrestes,
plangentes, como numa harpa eólia gigante. As chaminés enormes, por onde
respiram as fornalhas ciclópicas do monstro, lançam fortemente ao céu límpido,
por entre as cruzes finas das vergas, grossos penachos de fumo. E, à ré, no
tombadilho baldeado, asseado, fresco, pautado de negro pela longa costura das
tábuas, sob a lona protetora dos toldos brancos, por entre passageiros de
vigorosa estatura, hercúleos, de boné sobre os olhos — a cabeça loura e sonhadora de uma estranha Inglesa, talvez alguma lady
aventureira e nervosa, doentia e romanesca, passeando uma paixão desventurosa
pelos mares, de terra em terra. Debruçada da tolda, em ricas vestes de veludo
negro, um resplendor de sol nos cabelos, o belo rosto rosado, de uma olímpica
contornação à Stuart, apoiado sobre as mãos alvíssimas, mãos augustas, mãos
artísticas, e de longos dedos finos, como para tangerem bandolins de ouro — ela olha
embevecida, numa estática contemplação, a alva frota de gaivotas, flutuando
popa a fora, nas vagas. Parece alheada de tudo, e nos seus olhos azuis, que as
espelhantes águas eteralmente refletem, brilha uma luz de saudade, a dolorosa,
infinita tristeza de um bem perdido — quem sabe? —
no fundo glauco
das ondas... À beira do cais, sozinho, indiferente a tudo, num enlevo, numa
fascinação mística de sonho, contemplo incessantemente a loura e escultural
cabeça da misteriosa viajante, inclinada melancolicamente para as gaivotas aos
balaústres do steamer.
Longas horas assim,
longas horas. Mas o vapor dá o primeiro sinal da partida.
Cai a tarde, cor de
ouro, para as bandas do oceano.
E logo as poderosas
rotações das hélices começam a abalar o steamer e as águas.
O meu olhar ansioso
não se despega, porém, um momento, do enorme transatlântico, em cuja
balaustrada branca, afastando-se pouco e pouco, a extraordinária criatura do
Norte, fixa ainda, enigmaticamente, a frota alva e graciosa das gaivotas
boiantes. E, daí a instantes, steamer e Ela, a estranha viajante loura,
somem-se, como o sol, nos vagalhões montanhosos do mar...
Rio, 1893.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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