segunda-feira, 8 de junho de 2015

Virgílio Várzea: "A bordo do steamer"

A BORDO DO STEAMER
A Gonzaga Duque


Atracado ao trapiche, na ampla baía em calma, sobre espias dando volta em arganéus de ferro fincados nas grossas pedras do cais, um enorme steamer carrega. Metido de popa, a linha d'água imerge já aí, enquanto o vermelhão do fundo, pintado de fresco, se mostra ainda, no casco preto, aberto em nesga, à proa. Em volta, na vasta planura líquida resplandescendo em largos chamalotes de prato, outros navios, em grupos, eriçam o ar de mastros. Pequenos botes, em manchas policromas, singram morosamente, a remos, rente à água, à sombra das bordas altas dos barcos. E lanchinhas fumegantes cruzam-se rápidas, atracando e desatracando, num movimento constante, com os seus vivos apitos, metálicos.

Mas a bordo do steamer vai um alvoroço de dia de saída, uma grande faina, o fremir contínuo e áspero dos guinchos de carga. A mastreação polida, ereta, alta, finca os topes vitoriosos no Azul, entre as enxárcias, os brandais e os estais retezos, onde, em noites tempestuosas, os ventos largos do oceano desferem sinfonias agrestes, plangentes, como numa harpa eólia gigante. As chaminés enormes, por onde respiram as fornalhas ciclópicas do monstro, lançam fortemente ao céu límpido, por entre as cruzes finas das vergas, grossos penachos de fumo. E, à ré, no tombadilho baldeado, asseado, fresco, pautado de negro pela longa costura das tábuas, sob a lona protetora dos toldos brancos, por entre passageiros de vigorosa estatura, hercúleos, de boné sobre os olhos — a cabeça loura e sonhadora de uma estranha Inglesa, talvez alguma lady aventureira e nervosa, doentia e romanesca, passeando uma paixão desventurosa pelos mares, de terra em terra. Debruçada da tolda, em ricas vestes de veludo negro, um resplendor de sol nos cabelos, o belo rosto rosado, de uma olímpica contornação à Stuart, apoiado sobre as mãos alvíssimas, mãos augustas, mãos artísticas, e de longos dedos finos, como para tangerem bandolins de ouro — ela olha embevecida, numa estática contemplação, a alva frota de gaivotas, flutuando popa a fora, nas vagas. Parece alheada de tudo, e nos seus olhos azuis, que as espelhantes águas eteralmente refletem, brilha uma luz de saudade, a dolorosa, infinita tristeza de um bem perdido — quem sabe? — no fundo glauco das ondas... À beira do cais, sozinho, indiferente a tudo, num enlevo, numa fascinação mística de sonho, contemplo incessantemente a loura e escultural cabeça da misteriosa viajante, inclinada melancolicamente para as gaivotas aos balaústres do steamer.

Longas horas assim, longas horas. Mas o vapor dá o primeiro sinal da partida.

Cai a tarde, cor de ouro, para as bandas do oceano.

E logo as poderosas rotações das hélices começam a abalar o steamer e as águas.

O meu olhar ansioso não se despega, porém, um momento, do enorme transatlântico, em cuja balaustrada branca, afastando-se pouco e pouco, a extraordinária criatura do Norte, fixa ainda, enigmaticamente, a frota alva e graciosa das gaivotas boiantes. E, daí a instantes, steamer e Ela, a estranha viajante loura, somem-se, como o sol, nos vagalhões montanhosos do mar...

Rio, 1893.

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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014. 

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