O ALEMÃO DOIDO
A Bernardino Varela
Ele teria os seus cinquenta anos. Era
direito e robusto, cara devastada pela miséria, onde se viam os sulcos que os
esgares da loucura faziam. Tinha a barba e os cabelos encinzados de neve.
Aparecia quase sempre nos sítios em busca de alimento, a implorá-lo pelos
pobres casais dos lavradores, com palavras guturais, numa linguagem acre,
pedregosa, que ninguém entendia, metendo pânico às crianças. E satisfeito e
risonho com algum minguado quinhão que lhe entornavam nas mãos, partia logo,
falando e gesticulando com fúria, a gargalhar estrepitosamente, por instantes,
na linha acelerada da sua marcha descompassada e batida, desaparecendo, por
dias, nas voltas suaves e floridas dos brancos caminhos agrestes.
Havia já um
ano que ele assim vivia, surgindo intermitentemente pelas estradas, lançando
sustos às mulheres e rapazes, que fugiam num temor; às vezes manso, outras
agitado, conforme o caso da sua nevrose, mas sempre inofensivo, respeitoso,
muito amigo das crianças, gostando de as amimar, de correr sobre as cabecinhas
louras e infantis, como numa carícia demorada e paterna, a sua mão calosa e
rija.
Na existência
agitada desse homem havia, talvez, a tenebrosidade de algum mistério, de algum
desastre, porque, frequentemente, deram com ele chorando, sentado à porteira
dos engenhos, à hora sombria e triste do anoitecer, quando para aí se
encaminham as raparigas alegres e palradoras que vão para as farinhadas.
E assim ia vivendo,
o pobre Pitter, entre o receio e a condolência pública, recebendo da imaginação
popular cores fantásticas, salientando-se como um ser estranho, quase sinistro.
Às vezes, quando a
pausa da moléstia dava-lhe a suavidade e a segurança do discernimento,
procurava, para descansar, os ranchos de palha baixa e espessa, abeirados dos
rios, que oferecem abrigo e tepidez de ninhos aos desgraçados que erram, sem
carinhos e recursos, aos ventos gélidos que sopram pelo decurso desolado das
longas noites de inverno. Mas, numa dessas ocasiões, foi agarrado de surpresa,
altas horas, pela fúria demolidora, irresistível de uma tempestade, plena de
fuzis e de trovões, que fizera transbordar o rio numa inundação devastadora,
inclemente...
No outro dia, na
serenidade límpida de uma tarde de ouro, dois pescadores que desciam o rio
foram encontrar o corpo do alemão numa das brechas que a impetuosidade da
torrente cavara fundo, nas barrancas: ali mesmo o sepultaram, socando-o a pés,
sob uma indiferença de estranhos!
***
E, ainda hoje, quem
passa pelo lugar, olhando à direita, encontra um montículo de terra, estufado
como um ventre cheio, a cobrir os ossos do pobre homem; mas nenhum sinal,
nenhuma cruz! Entretanto, a alegria da vegetação, na uberdade do solo,
dir-se-ia ter-se encarregado dos ornamentos da cova e a porção de grama alta
que sobre esta viceja, num colorido vivo e cantante, lembra, decerto, o bando
das esperanças que, outrora, na mocidade, tanto alentaram o coração do
desgraçado Pitter, e que voltam agora a pousar-lhe piedosamente ali, para o
acompanhar no túmulo, à zoeira melancólica das laranjeiras em flor, à noite, e
às suavíssimas canções das florestas ao clarear das manhãs!...
Santa Catarina, janeiro de 85.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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