segunda-feira, 8 de junho de 2015

Virgílio Várzea: "Mar grosso"

MAR GROSSO
Ao Dr. Ramiz Galvão


Desde manhã que a Isidora e mais duas camaradas estavam nas pedras a tirar marisco.

Corria um verão muito límpido. Uma contínua brisa de nordeste embalava docemente as verduras do pequeno promontório do Rapa. Do alto caía o sol de ouro quente. Embaixo, em volta, achatando-se a perder de vista, cheia de magnificência e de sonhos, a planura verde do mar, faiscando, com os seus grossos vagalhões sonoros, que se estendiam em gigantescos cordões, ao longo das praias, cobrindo-as de largas rendas de espuma. Próximo, os cômoros, com um tom de alvuras oxidadas sob a luz radiante, expunham um retalho desolador de ondulosas areias saarianas. Velas andavam além, com saudosas brancuras.

De lenço de chita pela cabeça, as mulheres, com as costas escaldando, o rosto aberto pelo calor em cor de rosa esplêndido, enchiam os samburás, empoitadas sobre as pedras. As ondas, às vezes, escachoando em véus brancos pela penedia, lambiam-lhes com furor os braços e as mãos rebuscadoras e destras, que apanhavam os mariscos às pencas. Elas então desatavam a rir, cheias de consolação, naquelas luvas de espuma que as deliciavam, e que logo o ar desmanchava.

Nessa doçura e na alegria da farta pesca que a baixa-mar favorecia, iam de pedra em pedra, numa palração que aquecia, em notas muito cantadas, borbulhando, como um veio cristalino, dos lábios frescos e úmidos, de bela polpa escarlate. Sentiam-se felizes, e falavam expansivamente da casa, dos filhos, das roças, da sua criação e do gado, abençoando o destino. Com os samburás já cheios, esqueciam-se agora, num repouso bem ganho, sobre uma laje rasa, das mais de fora, sem reparar na maré que subia. Levaram assim longo tempo, a dar à trela...

De repente, um vagalhão solteiro, um desses tremendos vagalhões, tão conhecidos nas costas de mar grosso, em tempo de bonança, e que fazem revolutear inopinadamente as canoas e submergir as rochas, como numa tempestade, ergueu se e as envolveu de súbito no bojo bramante. Foi um medonho turbilhão de espuma. A laje toda afundou-se, sumiu-se, em grossos rolos fumegantes, como um casco a pique, e, quando a água escoou, gritos dilacerantes partiram da coroa branca das ondas.

A Isidora, robusta e valente que era como um animal de trabalho, com os seus braços possantes e rijos de bater algodão, acarretar água e lenha, e malhar o feijão, no terreiro, ao sol, procurava em rudes arrancos galgar a pedra escorregadia de musgo, que nem ao menos oferecia uma cavidade apoiadora para as mãos náufragas, tentando agarrar-se ao alto, nos constantes empuxões das vagas. Debatia-se heroicamente, com rudeza, num frenesi de salvação, num desespero de leoa. As outras, boiando nas salas enfunadas, aos gritos, num bracejamento indômito de lutadoras, iam levadas para fora, no recuo das águas hiantes...

 Pescadores, que andavam além, deitando as redes, num afastado recanto da costa, acudiam correndo.

 Nesse instante o homem da Isidora, o Manuel Porto, apareceu no alto das pedras, com os dois filhos pela mão, aos berros. Ouvira, lá embaixo, do lado de lá, na Lagoinha, gritos contínuos que voavam daquelas bandas, e atirava-se para ali a toda, num sobressalto, com as crianças, porque recebera de repente uma pancada no coração, ao lembrar-se da mulher, que o avisara, de manhã cedo, que ia às pedras tirar marisco, mais a mulher do Zé Félix e a do Rufino. Do alto das rochas, o pobre homem recebeu logo, no largo olhar rebuscante e ansioso, o sinistro quadro, e sentiu rebentar-lhe o peito possante como uma machadada formidável. Uma enervação súbita inteiriçou-o; quase não pôde respirar; mas quando a reação se fez, despertando-lhe a máscula e poderosa energia de velho leão do mar, desprendeu-se dos filhos, disse-lhes que esperassem, que já voltava, e desapareceu pelas anfractuosidades das fragas, branco, trêmulo, numa angústia alucinadora e suprema. Correu até as últimas pedras, as mais de fora, as mais avançadas nas ondas.

 As duas mulheres já haviam afundado ao largo; mas a Isidora ainda lutava, no imenso torvelinho das vagas, batendo de encontro às rochas. Resistia prodigiosamente, num último combate para a Vida, com o peito atlético e rude de aldeã lacerado, ferido, escorrendo sangue, os cabelos soltos, empastados pela cara, os olhos imensamente abertos, comum brilho vidrado e frio, raiado em sangue, o ar crispado e trêmulo de agonia. Dessa criatura em perigo supremo, desprendiam-se uivos roucos, desoladores, plangentes.

 De um cabeço perto, totalmente impedido de avançar mais, o marido estendia-lhe os braços hercúleos, chamava-a pelo nome, dizia-lhe que se aguentasse um instante só, por Nossa Senhora, que ele a salvaria!...

 E arrancava precipitadamente a camisa para se jogar às ondas.

 Mas a Isidora, coitada, já não o ouvia mais: um vagalhão mais alto envolveu-a, afundando-a para sempre sob as espumas brancas...

 As pedras, agora, possuíam toda uma população, estranhamente crivadas de gente. Crianças, mulheres e homens faziam um alarido selvagem.

No entanto, nem uma só embarcação nas proximidades! Ninguém capaz de arriscar-se naquelas penedias!

O Manuel Porto, então, por momentos, quedou-se espasmado; depois, com os olhos rasos d'água, transido, lançou os braços ao céu, parecendo implorar profundamente de Deus, a essa hora bem oculto e distante, uma salvação, um milagre, para a pobre mulher, que fora sua, ali perdida, agora, no seio torvo do mar!...

Rio, 1893.


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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014. 

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