HELENA
CAPÍTULO 1: O VIAJANTE
Acabava
de passar uma daquelas trovoadas espantosas que, nos países tropicais,
repentinamente se formam, estalam, e de repente se dissipam também, deixando o
ar mais puro, o céu mais azul, e toda a Natureza respirando uma frescura, um
viço, uma lasciva animação de todo o ser, que não parece senão que ali foi
agora a criação e começa a vida pela primeira vez.
Era
a algumas léguas da Baía, não longe do semicírculo do Recôncavo, mas sertão
dentro e nas estremas do país cultivado. Já raros os canaviais de açúcar, longe
os engenhos, perto a solidão imensa do deserto, e a impenetrável espessura dos
matos virgens, que não desflorara ainda o machado do colono e que projetavam
suas sombras altas e negras sobre as terras adjacentes.
Caía
o Sol, a tarde não era calmosa, e o rio, que ali corria mole e preguiçoso,
parecia descansar das altas quedas que pouco acima dera nas precipitadas
cachoeiras cujo estampido ali não chegava senão como um sussurro. Cantava o
sabiá num maciço de palmeiras, resplandecentes com os últimos raios do Sol e
que indicavam os derradeiros confins do domínio do homem. Para o interior dos
matos caminhava lentamente o tocano imperial, grave em seu andar, fastoso e
soberbo de sua dalmática doirada, como um rei-de-armas em préstito solene.
Silvavam os bugios saltando de ramo em ramo de árvore; e o papagaio selvagem,
ignorante de que tinha uma língua como o homem e o podia arremedar, chalrava
soltamente em seus informes grasnidos, que, ainda assim, tem não sei quê de
inteligente, de malicioso e de petulante. Toda a imensa variedade de aves, de
répteis, de quadrúpedes e de quadrúmanos, que povoam aquelas terras
maravilhosas, começava a acudir ao mais cerrado da espessura; uns pensando na
noite próxima para descansar e se abrigar em árvore ou toca, outros para a
velar à solta e livres do ardor intenso e da luz chamejante do dia que
aborrecem.
Só
o homem ali não aparecia; o homem desses bosques, o Adão daqueles Édens,
afugentado e perseguido pelo invasor europeu, emigrara para longe, muito longe.
E o colono rara vez se internava tanto, àquela hora sobretudo, em que branco e
negro se encaminhavam para a roça.
Era
a estação do fabrico do açúcar; as colheitas estavam adiantadas, as fornalhas
ardiam e o líquido precioso corria em torrentes dos vastos lagares. Homens e
gados, senhores e escravos, tudo vivia no engenho, tudo o rodeava; seus
cuidados, sua alegria, todas as suas ocupações e preocupações estavam nele.
Quem havia de vir a tais horas aos confins de terra apenas exploradas?
No
meio desta solidão todavia, e quando o Sol já baixava mais e mais no horizonte,
um viajante, manifestamente estrangeiro, montado num pequeno cavalo do país,
seguia não sei que trilho, que a cavalo mostrava conhecer e distinguir melhor
que o cavaleiro, e caminhava para a margem do rio. Era o instinto da sede que
lhe fazia pressentir a água perto? Seria, porque ali não havia nem ponte nem
vau que o cavalo pudesse estar costumado a passar; e ele todavia seguia, seguia
direito para a margem do rio, sem desviar nem hesitar.
O
cavaleiro era um homem velho, mas verde. Magro, alto, delicado de formas, porém
terso de músculos, e posto que um tanto encurvado, mostrava robustez e saúde em
toda a sua pessoa. Queimado do sol e do ar do deserto, a sua tez via-se contudo
que era alva, da brancura dos homens do Norte da Europa. Um nariz,
decididamente aquilino, descia de entre dois olhos castanho-claros, pequenos
mas vivos, serenos mas penetrantes.
No
rosto inteiramente rapado nenhumas barbas cresciam que encobrissem as rugas
fortemente sulcadas que o cruzavam, Só o lábio superior se revestia de um
espesso bigode alvo de neve. O cabelo, que se percebia ser pouco, tinha um
resto de mistura grisalha, desvanecida e terna como a mais pura cinza dos
sarmentos. Uma larga pantalona de xadrez branco e preto e uma ampla mas curta
levita azul de estofo ligeiro deixavam perceber as magras formas que vestiam.
Na casa superior da levita azul brilhava uma roseta de fita encarnada, sinal de
distinção jamais esquecido ou descuidado, nem por aqueles desertos. Na cabeça
um chapéu branco. A garupa do cavalo uma pequena maleta de campanha.
Tal
era o viajante que assim se deixava guiar pelo seu cavalo naquelas paragens
solitárias. O cavalo chegou à beira da água; e numa aberta que faziam os cipós,
os martírios e outras lianas e trepadeiras que se enredavam pelos troncos e
ramagem das árvores e arbustos, parou deliberadamente, como para anunciar ao
seu cavaleiro que ali era o termo da jornada.
O
cavaleiro sorriu, e tranquilamente se apeou, como quem estava acostumado ou
resolvido a deixar-se governar em tudo pelo seu condutor. Tirou a sela ao
cavalo, desembridou-o; e o animalito, sem mais hesitação nem detenção, virou a
garupa e partiu a galope, pelo mesmo caminho por onde viera: breve desapareceu.
Seguia-o
dos olhos o viajante com a mesma expressão plácida e risonha do semblante, e
tranquilamente se pôs a desafivelar do selim a sua mala. Abriu-a depois, e
sacou dela uns cadernos de papel cuidadosamente dobrados, e que eram
manifestamente um herbário. Sentou-se na relva macia e aveludada que ali se
fazia na vizinhança e frescura do rio, e quietamente se pôs a examinar o seu hortus
siccus. Era um botânico; visivelmente era um cultor fanático da bela
ciência de Lineu, que peregrinava nas solidões do Novo Mundo em busca de alguma
nova espécie com que enriquecer a Ciência, e legar imortalmente o seu nome a
alguma bela família vegetal que descobrisse.
CAPÍTULO 2: A PASSIFLORA
Correu
tempo: e não devia de ser pouco, porque os cadernos do herbário foram saindo,
um a um, da maleta; e depois de profundamente examinados, comparados, revistos
e concertados com amor, sê iam estendendo em largo círculo ao derredor do
viajante.
No
apaixonado repassar de seus tesoiros, tinha chegado a um cartão, marcado por
fora da letra H, acompanhado daqueles asteriscos significativos que são como os
sustenidos da silenciosa música do espírito quando lhe faltam palavras e letras
com que expressar uma admiração que sobe de ponto.
–
Ah! – exclamou ele –, cá estás tu, minha bela Helena, minha flor única!
Descobri-te eu, e te dei este gentil nome que tão próprio te está, que tão
dolorosas cenas me recorda, que tantas saudades aviva na minha alma. Helena,
Helena!... Helena serás minha flor, não a impudica Helena que abrasou Tróia,
mas a virtuosa Helena que nos revelou a cruz do Salvador.
Era
com efeito um prodígio de beleza, a flor que ele contemplava, e que,
visivelmente colhida daquele dia, não tinha murchado ainda, e conservava todo o
viço de suas lustrosas folhas, todo o brilho de suas cores vivíssimas, toda a
elegância de uma forma esquisitamente graciosa e gentil. Uma Passiflora era; e
a mais perfeita certamente, a mais admirável de sua rica família. As pétalas de
viva púrpura régia “e mais que régia”, dizia o nosso entusiasta, porque era imperial
a sua Helena; branca de leite a corola, e o pistilo, que distintamente se
afeiçoava em cima numa cruz perfeitíssima, resplandecia do oiro mais puro e
cendrado.
Era
com efeito um prodígio de beleza e de perfeição aquela flor; e não precisava
ser botânico ou florista para a admirar com entusiasmo. O nosso viajante
parecia um namorado nos requebros e afagos que lhe fazia. Vinham-lhe as
lágrimas aos olhos, beijava-a e lhe dizia palavras de ternura. Era um amante
apaixonado fazendo loucuras com o retrato da sua amada.
–
Passiflora! – dizia –, flor de amor e de paixão!... E ai!, de que paixão, de
que triste paixão és tu, flor! Que nome foram pôr os missionários a esta rainha
das flores americanas! E bem posto. Nestes órgãos cuidou ver a sua devoção
representados os instrumentos da paixão de Cristo. Nas outras variedades com
efeito a semelhança não é pequena. Mas nesta não vejo senão a cruz que é de
oiro, e a coroa que é de espinhos. É alva como pérolas, alvíssima! Bem dado foi
o nome que lhe dei, da minha Helena, da minha pérola da Grécia. Aqui está a
nobre púrpura do régio sangue de suas veias; aqui está a alvura de sua
inocência infantil; aqui a cruz de oiro que simboliza o seu nome cristão.
Passiflora!, flor de paixão! Que não sejas tu vítima das fatais paixões a que
deves o ser... A raça de que vens, a mãe de quem nasceste me fazem tremer... Já
estou quase arrependido de ter posto o teu nome a esta flor. Não seja ele
agoiro!... E os Portugueses que lhe chamam martírio!... Se tos prepara o
destino, os martírios da paixão, Helena?... Como preciso de velar por ti, de
consagrar o resto de meus dias ao cumprimento da sagrada promessa que fiz à
cabeceira daquele leito de agonia, de te servir de pai... Oh!, pai, pai!...
E
caiu-lhe da mão a flor admirada; e a face lhe descaiu sobre o peito; e entregue
todo às íntimas recordações que faziam o mistério da sua vida, ficou absorto, e
como perdidas e anuladas todas as relações. exteriores de sua existência.
CAPÍTULO 3: SPIRIDÃO CÁSSIÁNO DI MELLO I MATTOS
Tão
absorto, tão dormido de por fora estava o nosso viajante que não sentiu vir
descendo pelo rio abaixo uma daquelas longas e afiladas canoas que fazem a
navegação interna de quase todos os rios da América; leves, inconsúteis,
cavadas num imenso, único madeiro inteiriço, e tais ainda hoje, como as
engenhara na infância da arte e singela indústria dos Índios.
E
quatro índios eram os que vinham tripulando esta primitiva embarcação; nus de
meio corpo, as curtas bragas de riscado vermelho e branco da cintura ao joelho,
e armadas de longas varas com que iam arribando ou orçando das margens a canoa,
afastando aqui os ramos das árvores que pendiam na água, além firmando-se
nalguma pedra do meio da corrente para se não deixarem levar do rápido violento
do caudal.
Ao
leme e dirigindo a manobra toda, vinha o mais estranho arrais que, em tal barco
e com tal companha, era possível imaginar: um preto velho e gordo que andava
pelos sessenta e tantos, segundo, através do apolvilhado, se percebia na
carapinha que lhe começava a dar em grisalha; negro retinto da cara, e
escrupulosamente vestido de negro na mais apurada e faustosa elegância de um buttler
do West-End de Londres, ou de um maître d'hôtel da Chaussée d'Autin
de Paris. Preto, ainda assim, não era tudo nele; porque a gravata fina, sem
goma, e brandamente enroscada à volta do pescoço, luzia de uma brancura
irrepreensível, e completava o seu trajo de elegante mordomo do século dezenove.
O calção curto, a tíbia infiel e descamada coberta de luzente meia de seda; e o
sapato – o próprio sapato... – quem tal pensaria ver em tal sítio e em tal pé?
– o sapato desenhava no espelhado verniz os pronunciados e clássicos joanetes
de um verdadeiro e legítimo pé modelo de um negro velho.
O
ar do preto era importante, precioso e cheio de sua autoridade; mas não
austero, antes plácido e risonho como o de uma ambição satisfeita.
Abicavam
juntos à margem o contemplativo botânico parecia ter adormecido; e os índios
cravando as varas na areia, contra a corrente, atravessaram uma prancha para a
terra. O preto deixou gravemente o seu lugar de ré para desembarcar; pôs o pé
na prancha, e observando para a praia, antes de descer, disse:
–
Sió stá dórmido: é priciso acórdá êri, que fassi táde.
Mas
não foi preciso “acórdá êri” como dissera o negro, porque não dormia.
Desconcentrou-se
daqueles íntimos pensamentos que o absorviam, lançou os olhos ao rio, viu à
margem a canoa, e reconhecendo nela o que sem dúvida esperava, porque nenhuma
estranheza lhe fez, saudou com a mão o importante paizinho, que já punha pé em
terra, e pondo-se a recolher os cartões do seu herbário, os depositou
cuidadosamente na maleta; fechou-a por sua mão, e tomando-a debaixo do braço,
caminhou alegremente a encontrar-se com o negro que vinha direito a ele
desfazendo-se em respeitosas zumbaias.
–
Sua Esserença, é Sió Générá Brissá? – disse ele em sua meia língua.
–
A mim chamam-me De Bréssac – respondeu o viajante em bom português, cuja reta
pronúncia era contudo acentuada de um modo que sabia fortemente a francesia.
–
Trago éste carta a Sió Générá; e o nosso canoa que stá à sua disposição de
Vosserença.
–
E quanto tempo gastaremos nós daqui lá, meu pai Gazuza, ou pai Tomé, ou como
quer que és que te chamas?
–
Não cháma Gazuza, não. Cháma Spiridião Cássiáno di Mello i Mattôss, pa sérvi
Sió Générá – respondeu o aristocrático mordomo, não sem um leve tom de despeito
na voz.
–
Mil perdões, amigo Spiridião! Não tinha reparado no seu ar grave e importante,
senhor Cassiano; não sabia com quem alava... – disse o general, observando
atentamente e com visível admiração a escrupulosa e irrepreensível toilette do
negro.
–
Spiridião Cássiáno, mordomo do Sió Visconde, veio por orde d'êri, fazê discurpa
a Sua Esserença di não podê vi, por está assi mesmo.
–
Assim mesmo! Como assim mesmo?
–
Stá quasi di cáma, como quem diz, stá di rêde.
–
Ah!, está doente?
–
Doente, meu sió, não stá. Sinhá é que stá doente. Sió Visconde com muito
cuidado. Na carta diz, si fá favó di lê. E eu iede licença a Générá para
lembrar êri que fassi táde, pa não chigá muito di noite; rio tem pouca água.
–
Pois partamos, meu amigo.
E
abrindo o bilhete, leu que era do visconde de Itahé, o mais poderoso colono da
província, a quem fora especialmente recomendado, e que o mandava buscar na sua
canoa, àquele sítio previamente indicado, pedindo-lhe mil desculpas de não vir
ele em pessoa, por se achar sua mulher bastante mal. O bilhete era polido, e
respirava toda a elegante simplicidade europeia: o que menos esperava encontrar
o nosso viajante nos sertões do Brasil. Já com o fashionável trajar do mordomo
preto, se tinha ele admirado não pouco. O estilo do bilhete o preparou para ir
encontrar um castelo de Monte Cristo no meio das florestas virgens da América.
Nem
se enganava em seu imaginar.
O
negro tomou conta do selim e arreios do cavalo que jaziam rio chão, e teimou
por desapossar o general da sua maleta de viagem: mas não conseguiu, porque ele
se defendeu com valor e perseverança da insistente oficiosidade do Sr.
Spiridião, dizendo que era o seu tesoiro e a ninguém o confiava, nem a ele
próprio, honesto Spiridião, posto que o tivesse na conta do mais honrado de
todos os Spiridiões, e de mais fiel e seguro de todos os Cassianos.
Cedeu
Cássiáno di Mello, já reconciliado com a jovial urbanidade do viajante; entrou
na canoa: e os índios, pondo o peito às varas, começaram a lutar eficazmente
contra a corrente, impelindo a canoa com um vigor e destreza admirável.
CAPÍTULO 4: A CANOA
Navegaram
assim obra de uma légua, já abaixo de um dossel de mangueiras que nasciam de
dentro da água e iam juntar em cima as verdes e lustrosas copas, já entre as
margens arrelvadas de capim e de outras viçosas gramíneas, esmaltadas de flores
belas, entre as quais a begônia com suas folhas verde-brilhantes entremeadas de
roxo, seus corimbos cor-de-rosa, sobressaía mais, ou dava mais nos olhos do
apaixonado devoto de Jussieu e Tournefort.
Andando
rio acima, crescia o sussurro das cachoeiras que iam ficando menos longe, e
pouco a pouco se fez tamanho e tão forte que os ensurdecia. As perguntas do
inquisitivo general a pai Cássiáno, e as respostas deste, precisavam já de
porta-voz, que reciprocamente se faziam com o oco da mão, e aproximando-se do
ouvido um do outro para serem entendidos.
Todos
os sinais da civilização, ou – como diria um discípulo de João-Jacques – da
devastação do homem social, iam desaparecendo a mais e mais. Algum resto raro,
algum vestígio duvidoso que pudesse descortinar ainda o olho esperto e
exercitado de um habitante do país, era imperceptível ao do viajante europeu.
Esse
sentia-se em plena floresta virgem, em pleno sertão imaculado, a sós com a
natureza, em seus mais reservados e misteriosos penetrais. E abstraindo dos
quatro mudos e silenciosos remeiros índios que, ainda que o não fossem, pouco
desdiziam do quadro selvagem e primitivo dessa abismadora paisagem;
esquecendo-se de pai Cássiáno, de suas meias de seda e sapatos de verniz, e
ainda até de sua apolvilhada carapinha, o nosso velho general, todo olhos para
aquela opulência esperdiçada, para aquele luxo fastoso da natureza, nada mais
via nem sentia.
Algum
silvo de cobra, algum tinir de cascavel da serpente deste nome, o grunhido de
algum tatu acobertado, ou o lamentoso gemido da preguiça apenas o advertia, de
quando em quando, que não era ele o Adão, nem aquele o Éden das primeiras horas
do mundo recém-criado.
Não
o digo pela serpente; que essa entrou no primeiro, e entrará em todos os
paraísos terreais que em Velho ou Novo Mundo, em qualquer dos mundos possíveis,
tenha havido ou venha a haver.
A
noite tinha carregado no entanto, e os raios da Lua, que penetravam por alguma
rara falha do arvoredo, já davam na espuma branca e refervida das cataratas e
se refletiam na espelhada curva de sua queda, que não tinha, por certo, a
grandiosa e tremenda majestade do Niagara; mas caíam com uma graça, rodeavam-se
de uma amenidade tal, que àquela hora, sobretudo, era fascinante.
Os
índios arribaram a canoa, toda de encontro à margem direita do rio; o europeu e
o africano desembarcaram; e os quatro aborígenes, metendo-se na água, vararam a
canoa numa espécie de arealzito que mais para um lado se fazia, e tomando-a às
costas, deitaram a caminhar ribeira acima, como se levassem umas andas.
Atrás
deles o general com o seu condutor, que lhe ia explicando o motivo daquela
manobra, aliás não difícil de compreender.
A
ligeireza das canoas permite aos navegantes do interior levarem-nas por terra,
a braços, para salvarem as cachoeiras na subida e descida dos rios, e, tornando
a entrar com elas na água a distância conveniente, seguirem diretamente sua
viagem, até encontrarem outro obstáculo semelhante, que semelhantemente hão de
evitar.
É
o que não tardaram a fazer os quatro índios, que dali a pouco já tinham outra
vez a sua canoa flutuando nas águas do rio, eles dentro com suas varas, e a
prancha deitada à ribeira para tornarem a embarcar o viajante branco e o seu
negro condutor.
Embarcaram;
e a canoa seguia cada vez com menos dificuldade e trabalho para os que a
impeliam, porque o rio se ia fazendo mais plácido, espraiando mais, e também
rareando mais para o lado direito a espessura do arvoredo, que mostrava não sei
quê de menos selvagem, e parecia de espaço a espaço deixar entrever certos
indícios de alinho, a que não podia ser estranho o homem, e que não desfigurava
todavia a natureza.
Andando
assim mansamente, ao montar de um cabo em que a sinuosidade do rio toda se
torcia para o outro lado, houveram vista de muitos fachos de luz que se moviam
no interior das terras e se dirigiam para a margem do rio.
–
Stá acábádo nosso viage – disse o preto.
–
Pois quê?! E que luzes são estas? – perguntou o general.
–
O palácio é ali – respondeu o negro, apontando para a esquerda, que era a
margem direita do rio, e de donde as luzes vinham. – Esse é scavos e cárruáge
de meu Sió, que vem buscá Sua Esserença.
Dali
a poucos momentos com efeito a canoa tinha parado; e, quase ao mesmo tempo, o
general distintamente viu rodar até quase à beira da água uma elegante caleche
inglesa com suas lanternas acesas, tirada por dois nobres ruços rodados;
volantes adiante, estribeiros ao lado, archotes na mão.
Um
luar brilhante iluminava, além disso, a paisagem, que oferecia o mais estranho
e inesperado quadro que, no meio das matas do Novo Mundo, poderia imaginar-se.
CAPÍTULO
5: A CHEGADA
Era
em verdade para surpreender o quadro magnífico que se desenrolou diante dos
olhos do general: um imenso parque inglês, cortado de sinuosas e bem saibradas
ruas, com lagos e pontes, quiosques e estátuas, templos e ruínas, com todos os
vários e disparatados acidentes e ornamentos que são de rigor em tais casos, e
que a arte europeia imitou dos caprichos da chinesa.
O
francês pasmava do que via – e a ideia de se ver transportado, por um golpe de
varinha de condão, de pleno Brasil para Windsor, para Eagley-park ou para
Stonhouse, ia-lhe parecendo menos absurda de momento para momento. Sonho,
visão, ilusão dos sentidos!... deixou-se ir com ela, fosse qual fosse e como
fosse. Saltou da canoa em terra, e logo para o estribo da caleche que o fulo
automedonte boleara até quase rente da água. Um lacaio mulato abriu a
portinhola e logo a fechou e levantou o estribo.
Spiridião
Cássiáno subiu para a almofada, e a caleche partiu a todo o trote por uma das
largas ruas do parque. Galopavam ao lado os dois estribeiros, adiante os
volantes, todos com archotes de cera nas mãos, que parecia um préstito e
cortejo real.
Foram
andando, andando, como dizem as histórias de fadas e princesas encantadas: mas
palácio, casa, ou coisa que com ela se parecesse não a via o nosso general.
Estava já a ponto de sair de sua habitual reserva de bom gosto e polidez, e
quase descendo, como um bom burguês, a interpelar diretamente o prognóstico e
pespontado Spiridião, quando a carruagem, passando por um maciço de árvores
altíssimas, desembocou numa espécie de largo, donde clara e distintamente se
via, situada a pouca distância, a meio de uma suave ondulação do terreno,
abrigada de três oiteiritos que a rodeavam, uma verdadeira aldeia de Suíça.
Muitas casas pequenas, e, ao parecer, destacadas, com seus tetos de colmo, suas
balaustradas exteriores de troncos rústicos, formavam o lugarejo, que, para de
todo se caracterizar, tinha no meio sua igreja com alto campanário e adro
plantado de araucárias, e pinheiros de tão alpino aspecto que fariam cantar o
ranz das vacas a qualquer emigrado do monte Branco ou do São Bernardo. Por
entre as árvores, as sepulturas com suas cruzes à cabeceira, seus rústicos
monumentos de singela piedade.
A
carruagem subiu por umas alamedas tortuosas, que melhor se poderiam chamar um
lacete bordado de árvores, até às primeiras habitações da aldeia, e parou à
porta da que parecia a maior delas. Imediatamente se abriram ambos os batentes
da porta da que exteriormente figurava uma grande choupana, mas que em seu
interior, agora patente, mostrava um magnífico vestíbulo, esplendidamente
iluminado, e no qual se perfilavam duas alas de lacaios, elegante e ricamente
vestidos; calção e meia branca, farda escarlate agaloada de oiro, as mãos
alvíssimas, porque todos as tinham dentro de luvas escrupulosamente brancas,
não menos alvas as cabeças porque estavam artisticamente apolvilhadas, branco o
dente e branco tudo o mais: o que singularmente aumentava o efeito das retintas
negras caras, que outra estranheza não tinham senão a cor; pois não eram
disformes as feições – de negros, só tinham ser negros.
No
momento em que o respeitável Cássiáno di Mello i Mattôss, com o chapéu pendente
da mão esquerda, oferecia o braço direito ao general para se apear da caleche,
atravessara à pressa por entre as filas dos lacaios e se dirigia para a porta
um homem, não velho, antes moço do que velho, mas naquela duvidosa têmpera dos
quarenta aos quarenta e tantos, em que um desgosto de mais que venha, uma
enfermidade que por pouco se agrave, de repente se cai na velhice: isto é, os
que caem, porque outros há que deitam âncora nessa perigosa enseada e por tal
modo se economizam, se cuidam e acautelam que antes dos setenta não chegam a
velhice. E fazem muito bem!
Este
homem vinha simplesmente vestido; pantalona branca, meia de seda e sapato, a
gravata e o fraque pretos, as mãos calçadas de legítimas Boivins espelhentas e
perfumadas – Mil perdões, meu general! – disse ele arredando o braço de
Cássiáno e substituindo-o por sua própria mão que deu ao viajante para descer
–; mil perdões de o não ir receber à entrada de nossas fronteiras, e de o
esperar aqui com esta aparente sem-cerimônia.
Mas
tive hoje um dia tão amargurado! Passei-o em sustos ao pé de minha mulher; e só
agora... Mas a sua chegada traz-nos alegria e esperança. Vamos festejá-la com o
dobrado prazer, porque minha mulher está boa inteiramente boa; melhorou como
por encanto.
–
Senhor visconde, não tenho palavras com que agradecer tantos extremos. Nem as
minhas ideias, a falar a verdade, estão ainda bem claras, porque tenho vindo de
maravilha em maravilha.
–
Estranhou o nosso parque inglês no meio destes matos selvagens? Ou talvez estes
meus cottages aqui? Estas são maravilhas bem simples, general. Foi um
inocente capricho de minha mulher, a que acedi com muito gosto, porque também a
mim me seduz o casto esplendor da elegância britânica... E, se é que não ofendo
alguma suscetibilidade nacional...
–
Como assim, visconde?! Em Paris, bem sabe, as nossas casas, as nossas
carruagens, os nossos cavalos, até o nosso trajo, tudo é inglês.
–
Verdade é, que para os confortos da vida...
–
Material...
–
Pode ser; não questiono mais agora. Mas não deserto o meu posto; hei de
entregá-lo a minha mulher para o convencer.
–
Oh!, então já me dou por vencido e convencido.
Tinham
atravessado quatro salas, todas mais suntuosas e elegantes umas que as outras,
e providas com profusão de tudo o que, obedecendo aos variáveis caprichos da
moda, inventa cada dia a imaginação dos primeiros artistas de Londres e de
Paris para regalo dos sentidos e satisfação da vaidade humana. Cássiáno seguia
a respeitosa distância, levando a maleta do general, que ali enfim se vira
obrigado a confiar-lhe.
Chegavam
aonde parecia o mais interior da casa:
–
Abre essa porta – disse o visconde ao negro – e acompanha o general ao seu
quarto. Tomaremos chá quando o general estiver pronto e nos queira fazer
companhia.
Despediu-se
com uma cortesia elegante o visconde, mas acompanhada de uma expressão da
fisionomia tão aberta e cordial que o francês entrou já fascinado para o seu
quarto.
CAPÍTULO
6: A SALA
Não
sabia o general que pensar de quanto via e ouvia: tudo o enchia de admiração, e
tudo excitava as mais fortes simpatias de sua alma. Já estava ansioso por
conhecer intimamente uma família cujo chefe o recebera por tal modo, e que
vivia num sertão da América, rodeada de todas as elegâncias das primeiras
capitais da Europa, misturando uma opulência de príncipes com uma simpleza e
cordialidade de patriarcas.
Mas
era preciso vestir-se. Abriu a sua mala, sacou primeiro e depositou
cuidadosamente na gaveta de uma secretária o seu querido Hortus siccus.
Depois fez tirar o fato que lhe era preciso; e com o auxílio do honesto
Cássiáno, que se mostrou, como era, um inteligentíssimo guarda-roupa, vestiu a
rigorosa calça branca, o colete de casimira acamurçada e o fraque preto com a
roseta obrigada do inevitável cordon-rouge – São Luís ou Legião de
Honra, ordens ainda então quase confundidas, porque os Borbons tinham
ressuscitado uma, sem se atreverem a destruírem a outra, e os mais acérrimos
bonapartidas não cobiçavam menos a cruz do rei santo, do que os legitimistas
mais puros intrigavam para obter a estrela do imperador proscrito.
Está
vestido e pronto o nosso general; precede-o Cássiáno para o guiar ao salão; e
um criado branco que está na sala anterior, abrindo ambos os batentes da porta,
anuncia:
–
Sua Excelência, o senhor General, Conde de Bréssac!
Se
os vários aposentos por que tinha passado o viajante competiam uns com outros,
em esplendor e magnificência, este era o modelo da elegância, da simplicidade e
do gosto. Oiros nem sedas não as havia ali; e à primeira vista, toda a sua
mobília e adereços pareciam de pouco preço, porque a suntuosidade e a riqueza
se escondiam sob as formas mais modestas; recatava-se o luxo como um timidez
que lhe dobrava as graças e a sedução.
Eram
de fina escaiola brunida as paredes e o teto, tudo de um branco-mate-azulado,
aljofarado, tendendo a cor de cinza, e realçado por estreitas cintas de vivo
escarlate; as cortinas, de cima, de caxemira da Índia da mesma cor, apanhadas
por largos torçais de seda branca, e assentando sobre outras cortinas de
finíssima Bruxelas, que, todas caídas, deixavam penetrar a viração da noite,
tão necessária naqueles climas.
Dois
esplêndidos Ticianos, vários Teniers com dois belos retratos de homem, dois de
mulher, e outro de uma menina que mostrava de nove a dez anos, tudo
encaixilhado em primorosas mas singelas molduras inglesas, eram os principais
ornatos das paredes. Postos como à sombra deles, pendiam vários desenhos,
aquarelas, esbocetos a óleo, mais ou menos acabados e modestamente enquadrados em papel. O chão, pintado à
flamenga e por mão de mestre, representava um estranho capricho do pintor ou do
dono da sala; parecia juncado das mais raras flores e folhas – umas inteiras
outras desfolhadas; e não se diria senão que os jardins das quatro partes do
mundo tinham sido postos a saque pelos gnomos, pelas fadas, silfos, duendes, e
toda a mais corte e casa da rainha Mab, que ali as tinha vindo espalhar, para
dançar sobre esse tapete fantástico suas aéreas danças.
No
meio da sala um paté, ou divã redondo, igualmente forrado de caxemira, coroado
por um elegante vaso de Sèvres em que viçavam e recendiam belas e variadas
flores.
Sofás
e cadeiras de todos os feitios e prestando-se a todas as posturas que pode
imaginar a fantasia do conforto; um excelente piano de Erard, caixa de boule;
mesas de todas as qualidades, esta de bronze com mosaico, aquela de boule,
outra com pano de veludo, estoutra de charão preto realçado pelas vivas cores
de quanto há mais raro e brilhante na flora siamense, ou cochinchinense.
Sobre
todas essas bancas, livros preciosamente encadernados, gravuras, anuários, as
ilustrações de Londres e de Paris, a escolha dos jornais literários de quase
todas as línguas, brochuras, folhetos, estatuetas, modelos em bronze e em jaspe
dos principais monumentos da Europa, bustos, ao sério ou em caricatura, dos
principais personagens do mundo civilizado, tudo disperso, confuso, na bela e
poética desordem da ode de Boileau. E como a reserva deste exército de
bricabraque, duas largas prateleiras – etagéres – de ébano, marchetadas
de madrepérola, continham, em não menor desordem nem menos pitoresca
disposição, mais livros, e uma infinidade de non-descriptuns como raras
petrificações, curiosos fósseis, infinitos monstros e caprichos do reino
vegetal e animal – antiguidades, rococós, prodígios da moderna e da antiga
Sèvres, raridades da velha e da nova Saxônia, maravilhas da escultura
florentina, relíquias da arte egípcia, grega, etrusca, romana – misturadas com
os feios e laboriosos partos da imaginação chinesa.
Dois
maciços candelabros de prata carregados de velas de cera iluminavam todas estas
elegâncias; e apesar da brisa, que entrava no aposento por todas as janelas,
abertas de par em par, ardiam tranquilamente, obrigadas por largas mangas de
cristal que protegiam e aumentavam suas luzes.
Levantou-se
o visconde ao ver entrar o seu hóspede, e indo-lhe ao encontro, o tomou pela
mão e o conduziu ao pé de uma jovem senhora que na Europa mostraria ter de
dezoito a dezenove anos, mas que não tinha mais de quinze: tão precoce é a
natureza naqueles climas.
–
General, minha filha Isabel. Filha, apresento-te o General Conde de Bréssac,
particular amigo do nosso Fernando, e que o há de ser nosso, porque já lhe
queremos e o estimamos muito.
–
E há bem tempo o estamos esperando senhor General! Já nos tardava.
O
velho francês, com a sua habitual galantaria de antigo regime, tomou a mão que
lhe oferecia Isabel; mas em vez de a sacudir inglesmente, se inclinou com
respeito e a levou aos lábios.
Sentaram-se
os dois juntos donde estava Isabel, abrindo e folheando não sei que nova
brochura recém-chegada da Europa – alguma coisa de Lamartine seria, que era o
favorito –, e começaram a entreter-se dos últimos acontecimentos do Velho
Mundo, dos destinos e das esperanças do Novo; falaram das coisas e dos homens,
e por fim vieram a falar de Fernando, do tal primo Fernando, a que ainda agora
tinha aludido o visconde quando apresentara a sua filha o general, que por ele
viera recomendado.
Mr.
de Bréssac tinha conhecido na Alemanha este Fernando, sobrinho do visconde,
único sobrinho que tinha, e filho também único de uma irmã adorada, querida e
venerada como mãe, que o criara a ele, órfão desde o berço.
Apesar
da diferença de idade, porque o general tinha mais de sessenta, e Fernando não
passava de trinta e cinco, tinha-os ligado a conformidade de gostos e uma
simpatia poderosa na mais estreita amizade. O jovem português viajava desde a
idade de vinte e quatro anos, com autorização e a largas expensas do tio do
Brasil, que o habilitavam a viver na elegância e a frequentar a primeira
sociedade em toda a parte onde sé achava.
Em
1827, De Bréssac, legitimista de opinião e liberal de sentimento, tinha ido
oferecer a sua espada, ociosa na Europa, à independência dos Helenos. Fernando
de Almeida, entusiasta como jovem e como poeta – que tinha esse defeito –, o
acompanhou na qualidade de ajudante-de-ordens. Ambos foram feridos defendendo a
bandeira da cruz e da liberdade contra a bruteza do Alcorão e do despotismo.
Mas desgostosos das intrigas políticas, das mesquinhezas ridículas, das
torpezas feias que viram chover de toda a parte para anular e deturpar o mais
belo esforço do século XIX – a ressurreição da Grécia –, ambos se despediram do
serviço e voltaram à França. Aí se separaram.
O
português foi visitar a Itália, e comparar outro povo adormecido à sombra do
Coliseu e da Coluna de Trajano, com o que vira entristecido nas ruínas do
Hipódromo e do Templo de Diana.
O
velho francês escandalizado da Revolução de 1830, que por então ocorrera, profundamente
indignado com o que ele chamava a ingrata perfídia de Luís Filipe, que traíra a
legitimidade, e falsificara em todo o sentido o que podia ter havido de justo
ou resultar de proveitoso daquela revolução; deixou o seu país e resolveu ir
entregar-se, nas solidões da América, à sua ocupação mais querida e predileto
estudo – a Botânica.
Correra
já grande parte do Brasil, e atravessando agora por terra, da Baía para
Pernambuco, mandou ao visconde de Itahé, antes de empreender o difícil trajeto,
a carta em que Fernando
tanto o recomendava a seu tio. A resposta foi um pedido da maior instância para
que viesse passar alguns dias com a sua família, que o receberia como um amigo
íntimo e quase parente, e indicou-lhe como e aonde devia achar-se a fim de ser
conduzido até a sua habitação. O general foi, por dias contados de terra em
terra, de engenho em engenho, até que na última aldeia o acomodaram com aquele
cavalinho costumado ao trânsito, em que vimos dirigir-se à margem do rio, onde
sabia que havia de vir buscá-lo a canoa do visconde.
CAPÍTULO 7: INTIMIDADE
Todas
as circunstâncias que acabam de referir-se eram de há muito sabidas dos três:
mas explicadas e comparadas agora, deram assunto à conversação que entre eles
se estabeleceu e que mais e mais se foi tornando íntima e cordial, e tão
suavemente expansiva, que pareciam amigos de infância, indivíduos de uma mesma
família que há muito se não encontram, e que reciprocamente se estão dando
conta de sua vida e aventuras, se repetem as saudades que tiveram e o prazer
que sentem em se tornar a ver reunidos.
O
general falava com entusiasmo do seu jovem ajudante-de-ordens, da sua bravura,
da sua elegância, de seu muito e ornado espírito, do bem formado de sua alma.
Isabel
escutava com vivo interesse; o visconde, vinham-lhe as lágrimas aos olhos. E
ora o pai, ora a filha repetiam ao velho amigo as expressões de afeto, de
admiração apaixonada com que Fernando falava em suas cartas do seu querido e
amado chefe.
–
Por estes dois anos aqui o teremos – dizia o visconde, saltando-lhe os olhos de
alegria –; estarão concluídas as suas viagens, e será tempo de se recolher, de
vir viver enfim no seio de sua família. Fernando não teve outra, de pequeno foi
órfão como eu; e nós somos hoje os únicos parentes chegados que tem. Eu não sou
muito mais velho que ele, mas servi-lhe de pai: e contudo pode-se dizer que o
não conheço, só o vi em criança.
–
Assim me disse ele, que fora muito pequeno para o colégio em Inglaterra.
–
Mandei-o, não tinha ele treze anos, e já eu estava no Brasil. E quando fui de
visita a Portugal haverá dois anos, não chegamos a ver-nos, porque... Mas isso
é mais comprido, e toca na política do meu desgraçado país natal... de que
tomara eu esquecer-me para sempre... Não, esquecer-me não, dessa pobre terra,
que a amo com toda a profunda ternura de minha alma. No meio destas opulentas
regiões, parece que avivam e pungem mais as saudades que dela tenho. Não,
general, esquecê-la, jamais! Mas esquecer-me dessas misérias, dessas torpezas,
dessas mesquinhezas vis, dessas intrigas baixas, invejosas que lá chamam
política, e a que tudo sacrificam grandes e pequenos, altos e baixos, tudo,
tudo. Lá tudo é assim; e a quem não é assim detestam-no e perseguem-no.
Morrerei sem a tornar a ver, a minha terra! Morrerei desconsolado e antes do
meu tempo talvez! Os meus ossos aqui ficarão no exílio!...
–
Papá, papá!, exclamou Isabel tomando-lhe a mão.
–
Perdoa, filha; tens razão de me arguir: é feia ingratidão chamar exílio à tua
terra, à da tua boa mãe... Como está ela, tua mãe, agora?
–
A mamã ficou-se vestindo para vir para a sala, e não pode tardar. Passou-lhe de
todo: o papá bem sabe o costume. Não sente senão aquela debilidade extrema. Mas
hoje nem isso: está animada, contente.
–
É um mal inexplicável o seu, os médicos não falam senão em nervos. O costume,
quando não entendem. Mas eu vejo-a consumir de dia para dia. Vai tu lá, Isabel,
vai ver como ela está agora; e se a vires melhor, explica-lhe quem cá temos,
e...
–
Ela sabe, papá, e não tarda aí. Mas eu vou.
Isabel
levantou-se, e atravessou rapidamente a sala, mas com certa moleza graciosa,
que deixou o general encantado de sua figura, a qual se tinha algum defeito era
o de uma leve inclinação a arredondar-se, a suavizarem-se de mais as linhas de
sua perfeita simetria. A cintura de vespa, o colo alto, os dedos afilados,
largos e fortes os ombros, o seio túmido e os braços torneados. Era branca por
extremo, mas pálida; os olhos castanho-claros, de grande brilho mas pouca
vivacidade. O cabelo da mesma cor, porém com um reflexo tão doirado que à
primeira vista podia passar por loiro, caía-lhe em longas espirais que
naturalmente se anelavam sem se encrespar, e lhe caíam em vasta profusão pelos
ombros e pelo seio.
Uma
túnica azul, ligeira e transparente, realçava a beleza e – permita-se dizê-lo
no mais inocente sentido – a morbidez lasciva daquelas formas sedutoras que, se
as animasse mais alguma rosa, se as não velasse o casto véu de uma palidez
melancólica, arrebatariam mais desejos do que admiração e sentimento.
Não
era uma beleza romântica: pesa-me confessá-lo. Silfa de Walter Scott, não era;
fada de Shakespeare não podia ser; mas tal como as plasmava Homero, como as
metrificava Ovídio ou Tibulo. Não lhe posso valer, era assim. Bem sei que a
deusa da moda se chama Magreza; que as Giselas e as Ondinas expulsaram Vênus e
as Graças, e reinam transparentes e diáfanas nos corações ascéticos dos nossos
macilentos Antonys.
Mas
não lhe posso valer, repito. Era assim Isabel: e eu escrevo uma história, não
faço versos à Lua, debruçado nos balcões ideais de uma criação caprichosa e
imaginário estilo... devorado pelo verme roedor dos negros pensamentos que
baloiçam tristemente ao vento da solidão no crepúsculo da noite... etc., etc.,
com três versos na mesma rima seguida, e um agudo depois em ão, coração,
desesperação ou semelhantes... e embasbacado fica o Grêmio Literário, o Centro
Comercial e não sei se a própria Academia também – depois de regenerada.
Os
olhos dos dois recém-feitos amigos seguiam com prazer a graciosa forma de
Isabel; que, levantando um reposteiro no fim da sala, ia sumir-se no interior
da casa, quando volvendo atrás e tornando a levantar a cortina, disse,
voltando-se para eles, com angélica expressão de alegria:
–
Aí vem a mamã! Aí vem a mamã!
E,
segurando bem alto as pregas da caxemira que tinha na mão, se pôs de lado em
atitude de quem dá lugar a outrem pata que passe.
CAPÍTULO 8: A DOENTE
Sentiu-se
na sala o rodar lento de uma cadeira de braços no próximo corredor, e logo
apareceu no limiar da porta e entrou efetivamente no aposento numa vasta
poltrona amplamente estofada, e nela languidamente recumbente a figura
extenuada, mas bela, da inválida viscondessa.
Um
roupão – peignoir – de finíssima cambraia de linho, bordado de ramos
soltos, guarnecido profusamente de Mames, e froixamente cingido de um cinto de
seda cor de hortênsia, assentava sobre uma túnica da mesma cor. Laços do mesmo
no pescoço; e uma touca que cientificamente lhe enquadrava o rosto alongado
pelo padecer, mas interessante quanto ser podia. Os olhos pretos, cintilantes
de toda a vida que ali se tinha concentrado... ali, e no coração, por onde só
vivia. Assim, trazia o rosto animado, a boca risonha e expressiva – e só as
mãos magríssimas, cor de cera, descaídas froixamente no regaço, e que pareciam
as de um defunto.
Duas
mulatas – genealogicamente falando, mas brancas em toda a aparência – vestidas
com a mais apurada coqueteria de uma soubrette francesa, a coifa de rigor
dissimulando o excessivo riçado dos cabelos, o avental e todas as outras
denguices do apetitoso costume, eram as que vinham rodando a cadeira de sua
senhora; e com verdadeiro cuidado o faziam porque deveras a amavam.
Ao
entrar porém na sala, foi o marido e foi a filha que tomaram conta da caldeira
e de a dirigir para o sítio favorito e costumado que era ao pé de uma larga
janela de arco, saída e coberta, de donde se respirava a brisa perfumada e
suave que vinha dos jardins, e que não havia aroma nem fragrância que não
trouxesse para a reanimar.
Ali
a colocaram e lhe puseram sua almofada aos pés, e lhe arranjaram, como ela
gostava, as cortinas da janela, e dispuseram os candelabros de modo que lhe não
desse luz de mais. E enquanto um e outro se ocupavam à porfia em torno dela:
–
Como te sentes agora, Maria – disse o visconde –, estás melhor?
–
Tão bem que me parece impossível o mal que estive todo o dia. O calor é o
inimigo; sinto-me renascer com a fresquidão da noite.
–
E o general – acrescentou olhando para o hóspede –escusas de mo apresentar;
reconheci-o logo pelos retratos que temos dele. E verdade, senhor general, as
cartas de meu sobrinho Fernando, há anos a esta parte, quase que não contêm
outra coisa: as suas feições, as suas qualidades, tudo já antes de o ver,
sabíamos de cor.
–
E na sua língua dele, par coeur.
–
É verdade, filho.
O
general respondeu, como bom francês e francês de boa companhia, a estes
cumprimentos afetuosos que lhe iam direitos ao coração, e o prendiam àquela
família que apenas começava a tratar, como se nascera no meio dela e tivera
parte em seu sangue.
A
admiração de encontrar gente assim, com uma casa assim, num trato de vida como
aquele, entre colonos americanos do Sul, não tinha pouca parte na fascinação
que sobre ele exercia quando o rodeava. Não o surpreendia a riqueza, o fasto de
gente que sem dúvida contava por milhões seus haveres imensos. O visconde de
Itahé era conhecido e nomeado em toda a parte por ser talvez o mais rico
proprietário do Brasil, senhor de inumeráveis engenhos, de minas de brilhantes
ultimamente descobertas em suas vastas possessões; e capitalista cujos imensos
fundos estavam espalhados por todos os brancos da Europa e da América, cuja
firma em qualquer parte do mundo valia como oiro em barra. O que o confundia
era a elegância, eram as maneiras, era o bom gosto com que, em meio dessa
profusão de riquezas quase fabulosas, aparecia uma simplicidade de grão senhor,
familiarizado com a opulência e superior a ela. As suas ideias e prejuízos de
fidalgo velho transtornavam-se; as parvenus que vira em toda a parte não
eram assim.
É
que há uma fidalguia de alma que nem sempre falta ao que chegou por si à
grandeza, assim como nem sempre vem aos que a herdaram de seus antepassados.
Veio
o chá. Isabel fez as honras dele com sua graça indolente e mesurada. A noite
passou-se numa conversação íntima, cheia de encanto e abandono, porque todos
procuravam agradar, nenhum brilhar. O espírito vinha, quando vinha, trazido
pela mão das Graças, sem estudo, sem pretensão nem trabalho, como verdadeiro
filho de boa família, que sabe entrar numa sala sem pisar os pés à gente, rasgar
os vestidos às senhoras, e acotovelar a companhia para que o admirem e
aplaudam, como faz o espírito bastardo e parvenu, que se não contenta do
sorriso, do gesto agradável que ao outro basta – quer a gargalhada das turbas,
os pontos de admiração pasmada das néscias preciosas, que a cada sandice
pedante exclamam du Grec ma soeur!
Fez-se
tarde. Vieram criados com bandejas de fiambres; vinhos finos e todos os
restaurantes usados. O general não quis tomar nada, como homem que só comia
duas vezes ao dia.
À
doente trouxeram-lhe uma xícara de caldo que ela pareceu beber com gosto. E o
visconde e a filha trocaram sorrisos de satisfação e de esperança vendo-a, pela
primeira vez há tantos meses, tomar com visível prazer aquele alimento de que,
só à força de rogos e com manifesta repugnância, raro conseguiam fazer-lhe
engolir algumas enfastiadas colheres.
Deram-se
as boas-noites, separaram-se, e foi cada um ao seu quarto: a família brasileira
positivamente namorada do velho general; ele jurando, por quantos santos azuis
e cinzentos tem a ladainha das juras francesas, que em toda a Europa não havia
gente como aquela, nem tão amável, nem tão alegre, e que tão bem soubesse
reunir, no trato da vida, o comnme il faut de grão senhor com a afetuosa
expansão das classes menos elevadas e mais singelas.
CAPÍTULO 9: DE MADRUGADA
Ainda
não eram as cinco da manhã no outro dia, já o hóspede francês estava de pé, já
se fazia suas abluções escrupulosas, e se vestia com a singela elegância de uma
toilette matinal. Sentiu baterem-lhe mansinho à porta.
–
Entre! – disse. E entrou, já todo, àquela hora, de ponto em branco, ou mais exatamente
de ponto em negro, o nosso respeitável amigo Spiridião, que tinha sido
expressamente detalhado para o serviço do general, em atenção à sua conhecida capacidade
como guarda-roupa, barbeiro, cabeleireiro, e – o que ele mais presumia – a ter
estado um ano em França em companhia de “Sió moço”, o qual Sió moço era
Fernando de Almeida, a quem fora levar a Paris certos papéis importantes que
lhe mandara o tio, que só de Cássiáno os fiara. E o dito Sió moço tinha gostado
tanto da caturra importância e das outras muito sérias e excelentes qualidades
de pai Cássiáno que não quisera largar de si, nem deixar voltar à América o
negro: em triunfo o que queria passear por todo esse Norte da Europa no
pescante de sua sege de posto. De puro frio e de puras saudades adoeceu em
Paris; que foi preciso tratá-lo a caldos de papagaio, e embarcá-lo a toda a
pressa para a Baía, onde chegou ainda doente, mas tão secante com o que vira em
Paris, com as suas descrições dos boulevards, do Palácio Real, das Tulherias,
que ninguém o podia aturar.
Os
ares do Brasil, sua segunda pátria, a primeira fora Cabinda, breve o curaram da
nostalgia, mas da secância nada o curou.
O
mesmo ficou sempre: aquele mal francês – mal moral se entende – tornou-se
constitucional e inextirpável em Spiridião.
Oiçamo-lo
falar ao nosso viajante.
–
Peço perdão, Générá. Sió mandá dizê qué si qué dá um passéo com êri no páqui
anti d'amoçá. E si quê i a cáválo ou de cabrióla.
–
Cabriolas?, meu amigo! Deus me livre! Estou muito velho para isso. Irei antes a
pé se... se teu amo não cansa...
–
Cansa, não cansa não. Sió Visconde é caçadô. Más êri dizê si qué antes caréche
ou cabrióla.
–
Nem carecha nem cabriola, não – disse o bom do general, imitando a meia língua
do negro.
O
que tanto lisonjeou o pai Cássiáno e tão agradavelmente lhe titilou os nervos
que rompeu com a gravidade de seu caráter, abriu uma dentuça que chegava de
orelha a orelha, e desatou uma imensa gargalhada que degenerou por fim numa
trovoada de tosse acompanhada de crebros e crepitantes espirros.
O
francês ria que chorava. Spiridião voltou pouco a pouco, mas com frequentes
recaídas, à sua habitual e respeitosa gravidade.
–
Peço perdão, Générá: não pódi contê. Más tem um modo de dizê tão ingráçádo, que
um homi não pódi... – E engolindo outro ataque de riso e de tosse que lhe
sobrevinha, cortejou profundamente, e foi levar a resposta a seu amo.
No
entanto o general saiu do quarto, dirigiu-se às salas e foi encontrar o
visconde, que o vinha buscar em verdadeiro traje de colono: o chapéu de palha
desabado, a calça de riscas, e a véstia de abas – ou, se preferem, a quinzena
do mesmo.
–
General – disse o visconde apertando-lhe alegre e afetuosamente a mão –; General,
decididamente a sua vinda trouxe-me ventura. Minha mulher passou a noite
admiravelmente: e eu sinto-me outro homem de a ver melhor.
–
Se bastasse a força de vontade para obrar prodígios, não haveria milagre que eu
não fizesse nesta casa, visconde.
–
Bem o creio, meu amigo.
E
apertou-lhe cordialmente as mãos ambas com a sincera expressão de uma amizade
que por momentos crescia e os ia estreitando cada vez mais.
O
visconde abriu uma janela rasgada, ou porta de vidros que dava para o parque, e
saíram.
CAPÍTULO
10: O PARQUE
À
admiração do General, ao ver claro agora e iluminado pelos raios do
sol-nascente o grandioso espetáculo apenas intervisto na véspera à noite, não
achava palavras em que se expressar, nem as tenho eu para as reproduzir.
Ficou
imóvel, estático, absorto na contemplação de belezas que a Arte e a Natureza se
não deram ainda assim as mãos para criarem outro sítio da Terra.
O
terreno descia em volta da casa num declive suave, todo arrelvado e florido,
mas florido numa variedade de cores e de formas que não alcança a imaginação de
um europeu. A proporção que se alongava o terreno, cresciam os arbustos em
ramalhetes, em pequenas moitas; depois em maciços mais espessos, até dar em
árvores altas e copadas, cheias de frutos e de flores; mas onde as árvores eram
maiores, e rareavam mais, deixavam estender a vista por avenidas imensas, umas
direitas que se perdiam por elas os olhos, outras sinuosas, mas que todas iam
sumir-se longe e muito longe na impenetrável escuridão das matas virgens do
interior. Algumas eram largas estradas que levavam aos engenhos, às roças, aos
canaviais imensos, aos cafezais, às vastas plantações de tabaco, de mandioca,
de algodão. Obra de duas léguas quadradas em redor da habitação, girava um
fosso profundo, intransitável para os animais ferozes, e que de dia se passava
em pontes móveis, sempre guardadas, e à noite cuidadosamente fechadas.
No
centro quase do terreno um vasto lago natural, aperfeiçoado e embelezado
todavia, de contínuo se renovava com um riacho considerável que ali vinha ter,
e com a saída de muitos regatos que iam serpeando por todo o parque levar a
frescura e o principal alimento a toda essa pasmosa vegetação, correndo por
entre o viço das flores e das relvas. As grandes massas de árvores eram
indígenas, primitivas; eram as mesmas das florestas selvagens, mas
desassombradas em grupos isolados, e mais belas assim. As menores e muitos dos
arbustos eram da Europa, da África, da Ásia, da Oceânia. Flores e relvas por
entre isto tudo e estátuas e templos.
Os
quiosques turcos, as ruínas italianas, torres góticas, pagodes índios, ermidas
portuguesas, pórticos mexicanos, agulhas egípcias, mirantes chineses, e
palhoças de várias nações de África e da América; cada coisa tinha sido
colocada na disposição de terreno que mais apropriada parecia, e ao pé das
árvores e das flores naturais dos países que representavam.
–
Vejo que admira o nosso parque, general – disse o visconde.
–
E um prodígio, é a coisa mais bela que tenho visto.
–
Há aí muita coisa bela com efeito. Mas eu não tenho aqui outro mérito senão o
de o ter mondado com alguma arte, e sinceramente digo que me parece com algum
gosto também, das demasias de vegetação natural. Cortei por onde fazia jeito,
deixei todas as árvores mais belas, até os próprios arbustos; as lia-nas e o
mato baixo, deixei-o em muita parte. Fiz sangrar o rio próximo e derivar dele
essa ribeira que aí vem ter, porque a água da lagoa era quase estagnada. E com
um pouco de capim que por aí se plantou, umas socas de bananeiras que por aí se
meteram, umas laranjeiras e uns limoeiros, que se dispuseram com algum gosto, e
um bom jardineiro que mandei vir de Escócia, e que ao principio fazia tudo
atravessado mas que por fim calhou com os descontos do clima... tudo ficou
feito em menos de dois anos.
“Os
outros dixes de estátuas, pontes, ruínas e mais acessórios do parque inglês são
coisas da minha pobre Maria Teresa... Coitada!, que tão brasileira é no
coração, mas tem a cabeça anglo-gala; meia em Londres que ela admira, meia em
Paris que é a sua segunda pátria. Foi educada ali de muito pequena.
–
Ah!, foi educada em Paris?
–
Sim, no Sacré-Coeur.
–
No Sacré-Coeur! É possível?
–
De nove anos para ali foi.
–
Nove anos! A mesma idade de minha filha.
–
Pois tem uma filha, general?
–
Filha... quando digo filha, é porque o meu coração a adotou. E se me nascera em
casa, nos meus joelhos, não a adotara, não a estremecia mais. Quanto dera para
que a visse, visconde, a minha bela, a minha divina Helena! Como tem estampada
no rosto e na figura a grande raça de seus maiores!... Mas são contos largos,
meu amigo; é uma história para se contar devagar, o como eu herdei esta órfã de
uma família que pereceu toda inteira numa dessas tremendas hecatombes da guerra
da Grécia... Toda, sem ficar senão esta criancinha de nove anos... Funestas
recordações! Dolorosas saudades de um tempo que passou, coroado de mais
espinhos do que rosas... mas que lembra, apesar disso! Lembra e há de lembrar
até o derradeiro dia da existência.
O
general entristeceu. Diante daquelas saudades que lhe anuviavam os olhos, a
Natureza já não sorria, a matiz dos prados, o aroma das flores tinha perdido o
seu encanto. Caminhava lentamente em silêncio pela silenciosa fresquidão
daquelas ruas, acompanhava-o o português sem dizer palavra, e assim chegaram à
borda da lagoa.
Ali
eram tantos os pássaros aquáticos e tal a bulha que fizeram ao chegar dos dois
que forçoso foi ao velho viajante sair do seu pesadelo acordado, e deixar-se
distrair pela folgazã alegria da Natureza.
–
Meu amigo – disse ele voltando-se para o visconde e apertando-lhe afetuosamente
a mão. – E preciso ser indulgente com os velhos, que já não vivem senão do
passado... Mas estas são palavras ocas e de tarifa e no meu caso falsas. Eu
tenho mais futuro do que passado... e um futuro que me ocupa muito, que me faz
desejar e apreciar a vida. É a minha Helena, de quem tenho que cuidar, de quem
preciso ser pai e ser mãe, porque ela não tem senão a mim neste mundo... Animo
e alegra!, que de tristezas morre a metade da gente que morre. Que bonito está
isto! Que viçoso, que admirável!
E
com a elasticidade das grandes organizações superiores repeliu de si a
melancolia e desalento que o prostravam, e ganhou seu natural equilíbrio de bom
humor, de jovialidade, que fazia dele o mais amável e sedutor general velho que
ser podia.
CAPÍTULO 11: O PALÁCIO ENCANTADO
Iam
assim os dois pelo parque, tal como vão os homens pela vida: ora alegres, ora
tristes, ora rindo, ora chorando; ora atentos a graves meditações, ora
tropeçando em observações insignificantes, pedras soltas do caminho intelectual
em que topamos, folgando ou desesperando segundo o ânimo vem disposto.
–
Mas como é isto? – disse de repente o general, voltando-se para o lado das
habitações. – Estamos nós nos Jardins d'Armida ou na ilha de Calipso? Ontem à
noite entrei pelo vestíbulo magnífico de um palácio... fui de sala em sala, a
qual mais suntuosa... Inda há pouco tornei a passar por algumas delas... E
agora volto-me para o sítio donde vim, e não vejo senão uma graciosa aldeia da
Suíça, um grupo de choupanas inglesas, que lhes não faltam nem os pinheiros
alpinos para completarem a ilusão! Valham-me estas bananeiras, estes coqueiros,
e aqueles imperiais ananases que ali estão doirando com os primeiros raios do
sol dos trópicos, senão... aquela mesma pitangueira em flor que ali está, a
tomara por um pé de murta ou por outra planta ainda mais europeia. Que é do
palácio donde eu saí, que se fez da grandiosa residência onde me hospedaram
esta noite? Que varinha de condão sumiu o castelo e o transformou numa dúzia de
choupanas irregulares, destacadas, formando, verdade seja, um lindo acidente na
paisagem?
Sorriu-se
o português com visível satisfação e disse:
–
Foi uma fada sem dúvida a que criou esta ilusão. Pobre fada, que diferente está
do que então era! Foi minha mulher que imaginou e desenhou essas choupanas.
Vistas assim a distância, parecem uma aldeia suíça ou de Escócia, é verdade:
mas estão colocadas umas de encontro às outras por tal modo que se comunicam ao
redor, e por dentro não parecem, nem de fato são, senão uma só e a mesma casa.
“Veja:
aquela maiorzita à esquerda é a sala onde ontem tomamos chá; estas outras três
choupanas mais para o centro, as outras salas por onde passou. Essa o
vestíbulo. Naquela está a câmara de minha mulher, os seus quartos e os de minha
filha; nesta os meus. Para estoutro lado ficam os dos hóspedes. Aquele onde
dormiu só tem vista para um pátio interior; ali o pusemos de propósito para
que, levantando-se cedo, não descobrisse o nosso inocente engano, antes de lho
explicarmos. Pieguice!, confesso; mas desculpável em solitários como nós, que
as únicas festas e divertimentos que temos são estas de fazer as honras do
nosso eremitério aos viajantes que por acaso sucede termos a fortuna de
hospedar.
“O
que parece a igreja e o presbitério, efetivamente o é, porque ali mora o nosso
capelão e ali é a ermida onde se diz missa e onde, com permissão do bispo, se
administram todos os sacramentos à população que nos rodeia e que é
considerável. As oficinas da casa, abegoarias, cocheira, cozinha e o mais de
lavor que precisa tamanho estabelecimento, são no interior da aldeia, com
portas e serviço para o lado oposto. De modo, diz minha mulher, que se provê às
necessidades materiais da vida, e não somos obrigados a presenciar a prosaica
elaboração a que é forçoso proceder para isso.
– Que gentil capricho! Bem se vê que é de
mulher... mas não de qualquer mulher!
–
Não por certo, Maria é um anjo... mas agora, um anjo que está cansada da Terra.
Já a não entretém nada disto que dantes era sua vida.
Assim
foram passeando, e a pé andaram horas, discorrendo preguiçosamente de rua em
rua, de bosque em bosque, e colhendo o general aqui uma flor, observando acolá
uma árvore, herborizando sempre e poetizando tudo, que os espíritos
contemplativos da Natureza insensivelmente se elevam das obras dela para o
infinito da Beleza Eterna, que são as regiões da Poesia.
Lineu
foi um grande poeta; e Camões seria um grande botânico se tivesse lidado mais
com o seu amigo Garcia de Orta e se a ciência estivesse já melhor formulada,
mais transcendente dos aforismos oficinais que então a envolviam como em suas
faxas infantis.
CAPÍTULO 12: O ALMOÇO
Do
mais alto a que se remonta o espírito do homem, breve o reclamam as
necessidades materiais da vida; e é força obedecer-lhes como assobios do
falcoeiro obedece o falcão no ar.
Ouviram
tocar uma sineta:
–
É possível – exclamou o visconde – que sejam já nove horas?
–
São – respondeu o general, olhando para o seu relógio.
–
As nove e meia almoçamos. Voltemos a casa.
Apressaram
o passo, e cada um foi para o seu quarto. Dali a meia hora estavam na livraria
confortavelmente sentadas as duas senhoras, o general e o visconde, à roda de
uma mesa coberta dos mais luxuosos manjares que o ritual gastronômico manda
servir a este primeiro repasto da manhã.
A
livraria era toda fechada em círculo, truncado apenas em um segmento ocupado
pela vasta janela em varanda donde lhe vinha a luz e ar, e agora a frescura
matinal que dava melhor sabor ao almoço. As mesmas portas eram estantes
suspensas em gonzos fáceis que se moviam para abrir e para fechar. Gótico o
estilo, ricas as madeiras, os cristais preciosos, a coleção dos livros feita
com o discernimento e gosto com que a faria Nodier se fora rico.
Quase
no fim do almoço veio o chá, o café, o mate. Isabel, mais gentil ainda se é
possível, no seu roupão de manhã, de um cor-de-rosa pálido e amortecido, que
menos pálida a fazia, mandou retirar os criados, e ela só preparava tudo,
servia tudo e a todos; sem perder de vista a mãe que apenas tocava no seu
carimá, espécie de fécula gelatinosa, e que a pobre senhora fingia quanto podia
que engolia, mas a repugnância era muita e mal a encobria o fingimento.
Agora
que a via à luz do dia conheceu bem o general quanto era fundado o terror
daquela família e que aéreas eram as esperanças que ainda alentavam o visconde
e a filha.
Toda
reclinada na sua poltrona, mortal na cor e na atitude, só vivos os olhos mas de
uma vida turbulenta e febril, envolvida em uma capa de veludo roxo, os pés em
borzeguins de arminhos, e achando ainda fria a manhã àquela hora e naquele
clima, não podia duvidar-se que a infeliz senhora estava no último período de
uma consumpção lenta – que tinha sido lenta, mas que agora fazia desesperados
progressos de dia para dia, de hora para hora.
Sabiam-no
os médicos, sabiam-no todos, menos o marido e a filha, a quem dizê-lo era
matá-los sem nenhum proveito. Se o sabia ou não a mesma doente, era duvidoso:
umas vezes parecia ter a consciência da sua próxima dissolução, outras falava
como quem contava de viver ainda anos de anos. De Isabel, porém, e do Visconde
ocultava ela sempre, quanto podia, o seu estado verdadeiro; não se queixava
nunca do peito; dizia, como os médicos, que tudo eram nervos, e pedia a estes
que o seu mal verdadeiro o encobrissem aos seus. E como desta piedosa fraude se
não seguia dano algum à doente, os doutores diziam que sim, e sustentavam até à
última a ilusão daqueles dois entes que sonhavam ainda felicidade e prazeres,
quando já toda a sua alegria tinha a cova aberta para se enterrar no meio
daquelas solidões para sempre.
Acabou-se
o almoço. O general, triste de suas próprias recordações, triste da próxima
desolação em que já via sepultada aquela família tão merecedora de melhor
ventura, porém mais triste ainda da sua descuidada alegria por tão falsas
melhoras, alegria traidora que fazia mal ver, quis sair dali a todo o custo;
pretextou que precisava aproveitar o seu tempo, e que desejava ir herborizar
nos contornos. Declarou o visconde que o havia de acompanhar; as senhoras
aprovaram. E os dois novos amigos saíram armados e equipados como convinha, na
companhia de dois negros fiéis e experimentados, resolvidos a internarem-se
pela solidão do deserto até onde pudessem, tomando razoável tempo para voltarem
às horas de jantar, que eram as seis da tarde.
CAPÍTULO 13: A MÃE
Ficaram
sós a mãe e a filha.
–
Fecha aquela porta por dentro, Isabel. Tenho que alar contigo, e não queria que
me ouvisse ninguém.
Isabel,
desconfiada, com um pressentimento de terror, daqueles que batem no coração de
repente, sem se saber porquê nem donde vêm, levantou-se trêmula, agitada, foi
fechar a porta, e voltou sentar-se aos pés da mãe, onde estava, porém mais
chegada a ela, com as mãos mais apertadas nas suas, e sem ousar erguer os olhos
para o rosto querido, e tremendo de lhe ver sair da boca não sei que fatal
sentença que a ia aniquilar.
Era
o coração que adivinhava.
–
Isabel – disse a mãe com um acento de suavidade celeste na voz –, olha bem para
mim, filha.
Isabel
olhou, e tremeu de todos os membros.
–
Não tremas, filha; que me fazes mal, muito mal.
–
Que tem, mamã?... que tem?
–
Pois tu não vês o que eu tenho, filha? Pois tu não vês que estou a morrer?
–
Morrer, mamã!
–
Morrer, filha. Já não posso, já não devo ocultar-to mais.
–
Mas os doutores...
–
Os doutores não tornam cá. Pedi-lhes eu encarecidamente que não voltassem para
que teu pai lhes não lesse nas caras a sentença irrevogável que agora vai
cumprir-se, e que eles há quatro dias me deram. Animo, filha! Põe o coração em Deus. E lembra-te que
nestes últimos momentos, tua mãe que te adora, que te ama com tanto extremo,
tua mãe precisa de ti, e que não tem mais ninguém para a confortar. Se tu lhe
faltas, se tu sucumbes ao desalento, é a tua mãe que abandonas... e lhe
redobras as amarguras desta hora fatal.
–
Mamã, mamã! – articulou pausadamente Isabel, apertando os dentes e engolindo os
soluços que a afogavam. –Mamã, não vê que eu não choro?... Pois a sua filha não
há de ter força para a acompanhar?
–
Filha, tu és um anjo, e tens a energia do bem na tua alma. Morro mais tranquila
com saber que te deixo em dote o que a poucas mulheres é dado, uma serena mas
invencível força de ânimo que sempre o que quer pode. Tu és criança, filha, és
formosa, e serás imensamente rica. Ainda quando teu pai casasse outra vez.
–
Meu pai casar!...
–
Teu pai é homem, filha, e moço ainda...
–
Mamã!
–
Tu não conheces os homens, nem o mundo, Isabel. Houve um tempo em que me dava
isso cuidado. Tenho pensado melhor e já o não temo. A ignorância na mulher é a
inocência... e a inocência tem muita força. É condição das filhas de Eva que
quanto mais sabem mais erram. Sim, filha: ainda que teu pai casasse outra vez,
a maior parte dessa imensa fortuna que juntou teu avô era tua sem partilha.
“Não
cases senão com o homem de quem gostares e de quem tenhas provas que o coração
é nobre e o espírito elevado. São grandes consolações para os desgostos da
vida, que vida sem eles não há...
“Eu
casei com o homem da minha escolha; e as suas grandes qualidades de espírito e
de coração me deram toda a felicidade que tive na vida... toda a que me não
veio de ti; ainda agora me ajudam a levar com paciência a morte. Que a alta
ideia que formares do homem a quem deres tua alma, não busques diminuí-la
nunca!... Erro fatal de muitas mulheres que por vaidade o fazem para
exaltar-se, cuidando engrandecer-se a si com depreciarem aqueles a quem se
deram. Loucas! Humilham-se, abatem-se, arrastam-se. É a maior desgraça que pode
suceder a uma mulher, e dela nascem todas.
“Antes
fechar os olhos aos defeitos, negá-los a si própria, porque em nós chegando a
ver o primeiro defeito grave no homem que amamos, nunca mais vemos nele senão
misérias: e nesse momento a nossa felicidade acabou. O que o vulgo chama
impropriamente ilusões, e que não é senão a exaltação do espírito ao ideal da
Suprema Beleza, desaparece. Fica o amor brutal, grosseiro, degradante, que nos
anivela com os outros animais todos, porque os há que sentem do coração, mas
com os derradeiros e mais vis da criação. Oh!, se os teus olhos se abrirem a
alguma fatal realidade, se a exaltação da tua alma se abater, se as tuas
ilusões (como lhe chamam) por qualquer motivo começarem a dissipar-se, recua,
foge, morre antes: mas não te dês. Porque a humilhação da tua alma é certa... E
mais vale mil vezes morrer do que sentir-te humilhada a seus próprios olhos.
“Teu
pai, bem o sabes, o seu grande desejo, a sua maior felicidade neste mundo é
ver-te unida com Fernando, teu primo, o seu sobrinho valido. Não oiço senão
bens dele... Mas, não sei porquê, tenho no fundo da alma um receio instintivo
de que não seja homem para ti. É um homem do mundo, ele, do grande mundo; e tu,
filha da soledade, criada neste deserto. Teu pai não te obrigará; nem tu és
para isso, que eu bem te conheço, filha. Assim a tua escolha fica livre. Pensa,
examina, conhece-o; e não ames senão a quem conheceres; não te dês senão a quem
amares. Este velho general, este amigo íntimo de Fernando... simpatizo com ele,
com a sua figura, com as suas maneiras, com o seu espírito realmente
superior... Mas...
–
Mas quê, mamã?... Eu também sinto a respeito dele...
–
Mas porque me dirá o coração, porque vejo eu não sei em que fantásticas
estrelas, que a desse velho é oposta à tua, à de teu pai, e que?... Loucuras!
Visões de uma cabeça esvaecida!... Não faças caso disto, filha. O conde de
Bressac é um homem respeitável, um amigo certo e provado do que naturalmente há
de ser teu marido. Não te deves prevenir e preconceituar contra ele por minhas
irrefletidas palavras.
“E
mais te não digo, filha, que não precisas. Teu pai é um homem de valente juízo;
e em tudo quanto um homem pode dirigir uma mulher (que é muito menos do que se
cuida) ninguém te há de aconselhar tão bem como ele. Não te incumbo legados,
não te encarrego deixas, não te imponho mandados de nenhuma espécie. Todos os
nossos escravos são bons, porque nós temos sido bons com eles. Sei que o teu
desejo é libertá-los a todos...
–
Oh!, sim, mamã.
–
Tal não faças, minha filha. Não dês alforria senão aos que tiverem juízo e
indústria para usar de sua liberdade. As beatas, e os hipócritas Ingleses têm
causado tantos desgraçados com as suas declamações contra o tráfico dos negros,
tantos, pelo menos, como os que mercadejam no infame negócio. A emigração de
África para a América é uma necessidade absoluta e inevitável, que convinha regular
e fiscalizar no sentido do Evangelho e da civilização, mas não proscrevê-la
absurdamente. Teu pai te instruirá sobre este ponto. As suas ideias e os seus
planos são mais cristãos e mais justos de que os de todos os filonegros da
Europa, que a respeito da África e da América tanto sabem e entendem como dos
países da Lua.
“Não
fiz, nem faço testamento: sei o que me fica no teu coração, e no de teu pai. Só
uma coisa te deixo encomendada: é que tenhas muita indulgência com frei João
Índio. Ele custa a sofrer; é como todos os de sua desgraçada raça, mole no bem
e no mal. Mas é honrado, fiel, sacerdote exemplar... e de suas mãos hei de
receber a última bênção para o meu trânsito...
–
Mamã! Oh!, minha querida mãe!
–
Tem dó dele, Isabel, e atura-o com paciência. As suas desconfianças
visionárias, as suas superstições absurdas, nem sempre são para desprezar.
Sabes tu? Aquele espírito habitualmente obscurecido pelos vapores crassos de
sua indolência e de uma espécie de estagnação de todas as faculdades, ilumina-se
às vezes do instinto de um grande amor, de uma dedicação por esta nossa
família, que é o único afeto de sua alma neste mundo!
–
Mamã, bem sabe que eu também quero muito a frei João Índio.
–
Sei, filha, e descanso em ti neste ponto, bem como nos outros todos. Teu pai
não gosta dele; mas há de tolerá-lo por amor de ti, como o tem tolerado por
amor de mim. E agora, querida Isabel, saberás que me sinto melhor, mais
aliviada com ter aberto o meu coração à minha filha. Era um peso que me
oprimia, e que apressava e amargurava a minha morte.
“Estou
melhor... mas muito exausta; preciso descansar. Chama para que me levem ao meu
quarto. Despir-me-ás tu, e me meterás na cama, porque estou melhor despida. E
não sairás de ao pé de mim.
–
Mamã, mamã! – ia rompendo a soluçar a pobre Isabel.
–
Vamos, vamos! Animo, filha! Estarás ao pé de mim, e me darás o meu jantar. E hás
de me ler esses versos novos de Lamartine, que tu achas tão bonitos, a ver se
me convertes à tua fé, se fazem com que eu goste mais do teu poeta francês do
que do meu Walter Scott e do meu Shakespeare. E eu farei por adormecer quando
for hora de irem para a mesa; que então irás tu também, não desconfie teu pai.
E depois, quem sabe? Eu para a noite, quando refrescar o ar, estou sempre
outra, revivo como as plantas com a frescura do orvalho.
–
Se Deus quisesse, mamã, eu ainda tenho fé...
–
Tem sempre fé em Deus, que há de querer o que for melhor para nós.
Isabel
abriu a porta, puxou o cordão da campainha, vieram as escravas, levaram a
enferma ao seu quarto; e a filha a despiu, a deitou, conchegou-lhe a roupa, e a
ajeitou entre almofadas para lhe achar a menos dolorosa posição que em seu
estado podia dar-se.
Depois
leu-lhe um pouco, falou-lhe outro pouco das coisas que sabia interessarem-na
mais – das suas flores favoritas, do seu colégio de índios que ela protegia, do
seu hospital de negros velhos que ela amparava. Fê-la rir com as elegâncias do
nosso amigo Spiridião, e com as disputas que sempre andavam travadas entre ele
e Fr. João Índio, de cuja missa o atrevido negro duvidava se era “missa inteira”
e tal que chegasse para cumprir o preceito em dia santificado. Com isto e com
dois caldos que lhe fez tomar aos golos, se passou o dia à enferma. A febre não
recresceu; e quando estavam a dar as seis horas, que os herborizantes voltaram
e se foram vestir para jantar, estava ela sensivelmente melhor, e tanto melhor
se sentia que se quis levantar e vir para a mesa.
Opôs-se
Isabel, instou e conseguiu que não o fizesse.
Havia
em casa uma criada velha de grande confiança, minhota cerrada ainda depois de
quarenta anos de ausência da santa terrinha do Num-bou-lá, aguentando sob a
ampla saia de baeta e as roupinhas atacadas, o calor infernal dos trópicos;
testuda portanto, já se vê, mas fiel, zelosa e amante de seu amo, que não quis
deixar nunca, nem depois de rica, independente e senhora sua, como era. Ficou
esta Gertrudes, que assim se chamava a minhota, no quarto com a doente; e
Isabel se foi vestir para presidir à mesa, forceando por se iludir com a ideia
de que os pressentimentos da mãe eram falsos, que ela estava melhor, e ainda
havia de escapar desta crise, como tinha escapado das outras que há seis meses
se tinham repetido tão frequentes.
CAPÍTULO
14: ISABEL
Tocou
para o jantar: Isabel, que no seu quarto desafogava a soluçar e a chorar
enquanto suas aias a vestiam, mirava maquinalmente o espelho em que se não via
com a força das lágrimas; mas ouvindo aquele som que a despertou, estremeceu,
voltou a si, e se firmou na resolução de obedecer a sua mãe e de encobrir ao pai
a impendente calamidade que estava a cair sobre eles. Feito este grande esforço
de ânimo, compôs o semblante, enxugou os olhos, e com um daqueles sorrisos que
a mais inocente mulher tem sempre no meio das maiores dores, quando é preciso
ocultá-las, veio para a sala em que era costume juntarem-se antes de ir para a
mesa.
Tinham
dito ao visconde que sua mulher estava melhor e dormia; pelo que, não quis
entrar na câmara e se foi direito as seu quarto vestir muito sossegado.
Tanto
ele como o general estavam já na sala à espera de Isabel, e lhe vieram ao
encontro alegres e satisfeitos de a verem.
A
beleza de Isabel era daquela espécie, não digo a mais fina, porém certamente a
menos comum, que brilha mais de dia que de noite. Extremamente pálida mas de
uma tez puríssima, a sua compleição não tinha que pedir segredo às luzes
artificiais da noite.
Demais
era botão de flor que abria; todo o sol lhe era pouco. flores que já brilharam
em muita e muita manhã clara, são as que pendem para a tarde, que se arrugam
com o ardor da calma, e que precisam da meia luz do crepúsculo para se
reanimarem.
O
pai quando a viu entrar sentiu jubilar-lhe o coração e jurou que nunca a vira
mais bela. “Ah!, se a visse agora Fernando!” disse consigo.
O
general cortejou, dandinando-se das reminiscências dos seus tempos, e suspirou
meia dúzia de madrigais fadeurs que lhe acudiram à estereotipada
memória. Um magnífico vestido de glacé cor de pêssego, com três largos folhos,
os ombros e os braços nus, o cabelo solto e ondado, sem uma pulseira, sem um
laço, sem um único dixe; os pés calçados de estreita chinela de cetim preto,
estreita mas fácil e naturalmente justa, que lhe deixava toda a elasticidade e
a morbideza do pisar; a luva da mesma cor do vestido abotoava no punho com três
rubis que pareciam três gotas de sangue cristalizado; tal era a toilette de
Isabel; toilette que, em sua dolorosa preocupação, na ausência de todo o
estudo, saíra por acaso tão perfeita, qual a não conseguiria talvez em ocasião
mais requerida, com horas e horas de consultação ao toucador.
–
Querida Isabel – disse o pai abraçando-a –, tua mãe não está muito boa?... Ela
que se deitou...
–
Não está, não, papá.
–
Mas nunca tão mal como ontem?
Isabel
não respondeu. O pai não fez reparo, e continuou:
–
Oh!, como ontem! Aquilo sim, que foram transes! Cuidei que me ficava nos
braços. É que também o dia está melhor hoje, menos quente, menos abafado. E tu,
filha? Mas tu estás sempre boa. É a minha grande felicidade neste mundo,
general, a saúde desta filha, que nunca teve a menor coisa. De criança de peito
nunca fez passar uma má noite a sua mãe. Que bulhas, que disputas não tive eu
com Miss Mac'Drugg, a sua aia inglesa (creio que a moda é dizer governanta) que
por força lhe queria imbutir saias e pílulas e toda aquela pestilência que
viaja com uma inglesa sempre, na polida e envernizada boceta de Pandora,
primeiro e indispensável artigo de sua bagagem. E verdade, que novas há de Miss
Mac'Drugg? Não te tem escrito? Há três meses que está na Baía, por um córto
visito, como ela diz às suas amigas, as tais misses...
–
Mac-Flirts.
–
Pois Mac-Flirts, sejam. Mas é preciso que lhe escrevas, que dê por feito o seu
córto visito, e que volte quanto antes.
–
Porquê, papá?
–
Porque tu já não falas inglês, e...
–
Ora, papá!
–
Não é ora papá; é que esta senhora, general, fala inglês perfeitamente: e,
ficando assim muito tempo sem ter com quem praticar, esquece-o.
–
Tem razão o papá: era uma pena – disse o general sorrindo.
–
Bem, bem, general! Venha em meu auxílio! – clamou o pai.
–
Mas se eu não gosto de ingleses – continuou Isabel, felicíssima de lhe ter
aparecido um assunto de discussão que arredava do pensamento – não do seu, que
era impossível –, mas do seu pobre e descuidado pai, as penosas ideias que o
preocupavam: – Se eu não gosto de ingleses nem da sua língua! Estudei-a por
fazer a vontade ao papá...
–
E a tua mãe, filha, a tua pobre mãe, que é a sua língua predileta.
–
Pois sim... mas a falar a verdade, eu não gosto senão só da nossa boa velha
língua portuguesa. Não se ofenda, general, eu também sou muito parcial do
francês, mas é só do francês de Lamartine e de Chateaubriand...
–
Nem sequer chega a Molière a amnistia?
–
Sim, também chega.
–
A Racine?
–
Não.
–
A Voltaire?
–
Nada.
–
Que capricho!
–
Não é capricho. Nem eu pretendo saber destas coisas, general, entender de
autores e de literaturas. Sempre ouvi a minha mãe, e o creio e o compreendo
bem, porque o sinto, que uma mulher literata deve ser a coisa mais ridícula e
abortiva do mundo. Mas eu não conheço o mundo e facilmente cairei, talvez, em
seus ridículos sem o saber. Digo o que sinto, digo as impressões que me faz um
livro, como digo as que me faz uma bela paisagem, uma pintura, uma estátua.
Isso não é entender, nem julgar, é sentir. E entrar-me pelos ouvidos de modo
que me traga ideias perfeitas, naturais, sentimentos verdadeiros ao espírito,
só a língua da terra de meus pais. Fui criada aqui: não vê? Se eu fora de
pequena para um colégio estrangeiro, não sei...
–
Tens razão, filha – disse o pai tomando-lhe a mão e beijando-a –; tens razão; e
também a tive em te não querer educar para francesa ou inglesa.
O
general admirava, no entanto, a pureza de coração e a solidez de espírito de
uma menina nascida no fasto e na grandeza, rodeada de escravos e dependentes e
saudada desde o berço por herdeira de milhões. “Se será com efeito”, pensava
ele, “a nossa tão gabada educação do mundo a que tudo falseia e corrompe?”
CAPÍTULO
15: O JANTAR
Abriu-se
nisto a porta, e Spiridião Cássiáno di Mello i Mattôss, a carapinha apolvilhada
de fresco, as luvas saltando de brancas, fez a sua aparição oficial e
inclinando-se gravemente a Isabel, lhe intimou, por esta forma sacramental, que
o jantar estava na mesa.
O
general deu o braço à interessante brasileira; e seguidos do visconde se
encaminharam à sala do jantar.
É
impossível imaginar nada mais elegante, mais cômodo, nem mais confortável
segundo o clima, do que aquela casa de jantar. Bastantemente comprida e larga
em proporção, tinha, de um dos lados maiores, três portas espaçosas com só dois
largos cristais ingleses, um em cada batente. Do lado oposto um magnifico
aparador corrido todo de canto a canto, resplandecia de prataria, porcelanas e
cristais de diversas cores e feitios, e exalava, com o cheiro apetitoso das
viandas, o perfume das flores dispostas em grandes jarras de Sèvres.
Sobre
a mesa um plateau de vermeil, cuja peça central, digna de Benvenuto
Cellini, representava – oh horror!, oh escândalo das artes progressivas e
fomentadoras! – o clássico grupo das três deusas litigantes no ida, e do
juiz-pastor deixando-se peitar pela que mais lhe desse, e entregando a maçã
fatal à que melhor soube peitá-lo. A direita e esquerda do grupo se elevavam,
como de entre uma rica e viçosa folhagem de oiro, dois elegantes vasos de
cristal verde e tão puro que parecia sólida esmeralda, com as bordas patentes e
debruçadas como as do cálice de um elegante convólvulo, contendo uma quantidade
de frutas escolhidas, misturadas de folhas e de flores. Era o ananás com a
rosa, a gardênia com a anona, a laranja com a sua própria flor, a magnólia com
a goiaba, o araçá com a passiflora, o caju rodeado de begônias cor de sangue,
as uvas com a fruta-do-conde, e as mangas cor de cera com as róseas grinaldas
da buganvília. Daqui se estendia por toda a mesa um variado mosaico de outras frutas,
doces e conservas: o coco verde com a sua nata deliciosa e refrigerante, a
melancia que degenerou da Europa, curcubitando tortuosa e aleijada, porém muito
mais doce e melhor tornada no terreno alheio o melão com a polpa cor de sangue,
as bananas enfim, que são a mais vulgar, porém a mais útil produção da Pomona
tropical.
O
forte das viandas foi cortado e servido dos bufetes por um bem disciplinado
regimento de criados que, debaixo do comando do seu ilustre chefe, o grande
Cássiáno, manobrou com uma pontualidade, inteligência e ordem admiráveis.
Monsieur
de Bréssac pensava assistir a um jantar imperial do Palácio de Estio em
Sampetersburgo, se o fasto gigantesco, se as desperdiçadas galas da nobreza
americana se lhe não estivessem metendo por todos os sentidos e triunfando de
luxo sobre o mais refinado das elegâncias do Velho Mundo.
A
mesa era oval, Isabel ocupava o centro de um dos lados mais extensos, tinha o
pai à direita, o general à esquerda e em frente as três largas janelas ou
portadas, agora abertas de par em par.
Os
últimos raios do Sol davam nas longas, acetinadas folhas das bananeiras que
viçavam junto da casa, e as faziam resplandecer de uma mistura de oiro e verde,
arraiado de púrpura nos caules mais tenros; mas por entre grupo e grupo dos gigantescos
herbáceos, artisticamente dispostos, penetrava e se estendia largamente a vista
a espraiar-se nos vastos jardins do parque, na lagoa, até à cinta verde-negra
dos circunstantes matos virgens.
O
general falava pouco, comia menos, mas todos os seus sentidos se banqueteavam.
E não há para, negá-lo: com toda a simplicidade de seu caráter, apesar de toda
a ingênua facilidade com que o visconde e sua filha naturalmente usavam, que
não gozavam, de sua extraordinária opulência, era todavia visível que o seu
amor-próprio se banhava com deleite na admiração do surpreendido estrangeiro.
Um habitante do nobre faubourg, um homem da velha corte de França, que
em seus primeiros anos tinha saudado ainda os derradeiros esplendores de
Versalhes, e as mais livres, porém mais finas etiquetas do grande e pequeno
Trianon – que durante a República se refugiara nos tépidos salões de Viena e de
Sampetersburgo –, que depois, meio reconciliado com o Império, vira nas
Tulherias as pompas quase bizantinas da corte do usurpador – que nas ruínas de
Atenas e de Roma estudara as relíquias da antiga civilização, do antigo fasto
dos Césares, e das elegâncias de Péricles! – vê-lo a esse homem, já enfastiado,
já gasto e cansado das maravilhas do Velho Mundo, rejuvenescer agora para admirar
de todos os seus olhos, reviver para gozar de todos os seus sentidos, essa obra
de suas mãos deles, esse Eliseu de sua criação – revestir-se com eles de glória
e de prazer supremo nesse Tabor da sua transfiguração, desejando, como Pedro,
um tabernáculo para ali ficar – porque ali estava bem –, era na verdade para
lisonjear a solitária família de Itahé.
CAPÍTULO 16: INTERRUPÇÃO
Com
efeito, adiantada já a sobremesa, tomava o general algumas colheres da fresca
nata de coco verde, quando exaltado por um irresistível pensamento:
– Oh! uma
cabana aqui com a minha Helena e juro a Deus que todo o Mundo Velho se podia
afundir, quanto para mim, perecer como a Atlântica do meu amigo Nepomuceno
Lemercier, sem me ficarem a mim mais saudades do que ficaram os versos do
ilustre acadêmico na memória de alguém que tivesse a fatalidade de os ler.
–
Veja o que diz, general! Somos capazes de o tomar pela palavra, de o fazer
registar o seu temerário juramento.
–
Vejo e sinto; demais sinto o que digo: porque a lembrança destes sítios
encantados, porque as saudades (saudades é a palavra aqui, não outra de nenhuma
língua) as saudades da angélica família que aqui soube plantar suas tendas, não
me hão deixar nunca mais, e me farão aborrecer o resto do mundo. Que palácios,
que jardins, que bosques poderão já agora contentar olhos que se fartaram
nisto? Como me não hão de parecer hortas de couves e de alface os mais cuidados
parterres de Londres? Em que estufas acanhadas poderei eu mais com
paciência, ver florescer a buganvília ou frutificar a bananeira, colher um
ananás de um vaso de barro, apanhar um ramo de flores de laranjeira de um
caixão de tábuas pintado de verde? Que ridícula paródia me não hão de parecer
os nossos jardins! E o que digo das plantas, oh!, se não estivesse aqui uma
senhora, visconde, se eu pudesse falar com a mesma liberdade dessas flores
contrafeitas que brilham à luz da cera e do azeite na escaldada atmosfera das
estufas de nossos bailes ou meneiam suas frontes caídas por entre a névoa
grisalha de uma fria manhã nas ruas macadamizadas de nossos jardins
empoeirados, de nossos parques raquíticos, por entre as nossas árvores
recortadas à tesoira...
–
Vamos, vamos, general! Isso agora também é de mais. Isabel, sentido com a
galantaria francesa! Não vês como te lisonjeia e sacrifica sem misericórdia
todas as formosuras do outro hemisfério?
Isabel
sorriu tristemente e disse:
–
A mim, sim! Como eu me tenho por tão bela! E como não sei o que é a graça, o
irresistível encanto das parisienses!
–
Coqueteria tudo, artifício, disfarce, impostura, falsidade, mentira! Encantos
comprados à modista, graças à costureira, figura ao espartilheiro. Tudo
comprado, até as caras e o cheiro, as cores e a morbidez da pele, que vêm da
loja do perfumista. A simetria das formas é baleia e algodão; o espírito, os
ditos agudos são estofo de vaudeville; e o mesmo sentimento, extrato
sublimado de novelas, factício, mentiroso e postiço como elas: nada que fizesse
a natureza, tudo a arte; nada que venha do coração, que gire com o sangue
nessas veias, que saia da alma... Aquelas almas estão todas como a do
licenciado... enterradas na Bourse, onde suas altas e suas baixas são
regularmente cotadas... almas que já estão ardendo nas caldeiras de Pêro
Botelho dos caminhos de ferro, penando por oiro, oiro e oiro, que é a mania
única da Europa desde o palácio dos reis até o falanstério dos comunistas!
–
E a da América também, meus amigos – disse o visconde.
–
O mundo foi sempre assim: quando tinha só três, depois que tem quatro, e assim
será sempre quando tenha cinco partes, como já querem contar-lhe: foi, é e há
de ser o mesmo. Aqui está ainda a riqueza em poucas mãos; e algum que tem
consciência e pudor pode ainda afastar-se, como eu aqui fiz, para longe das
asquerosas oficinas em que se trituram as carnes e as vidas humanas (brancas e
negras segundo os países) para fazer delas o oiro, o poder, as riquezas, e que
sob a forma de engenhos de açúcar, de minas, de manufaturas, de fábricas, de
batalhas, são todos o mesmo: feudos de milhares de escravos, sujeitos pela
miséria ao poder de um homem que a sorte fez rico, poderoso e senhor. Tenho a
infelicidade de crer que este destino da espécie humana é fatal, inevitável,
irremediável; que se lhe podem mudar as formas e os nomes, outra coisa não.
Moderá-lo, suavizá-lo podia o cristianismo, e especialmente a sua mais pura,
mais velha e mais perfeita comunhão, a católica. Parece que o não quer Deus...
pois permite que por um lado a filosofia regeneradora do século renegue da
cruz, seu único estandarte, sua força, sua legitimação e seu poder imenso, e
por outro que os sacerdotes de Cristo tomassem medo à Civilização e ao
Progresso, à Liberdade que nasceu à sombra dos altares e tarde ou cedo há de
voltar a eles... O dia de Deus ainda não chegou, há de chegar; mas antes que chegue
pressinto grandes calamidades.
Interrompeu-o,
nestas palavras, um murmúrio surdo que se levantou entre os criados e escravos
que ocupavam o fundo da sala. E quando ia a perguntar com gesto imperativo o
que significava aquela falta de disciplina, tão desusada e inaudita, viu
abrirem-se as largas portas do fundo, prostrarem-se todos de joelhos, e
ouviu-se uma voz bem conhecida pronunciar grave e tristemente a saudação
latina:
– Pax huic domui!
A
que responderam muitas vozes de crianças:
– Et omnibus habitantibus in ea.
–
Frei João Índio e os seus rapazes!? Que significa isto, Isabel?
–
Ai, meu pai! Significa... não sei... mas pressinto... Eu vou... É, é... oh meu
querido pai! É o que eu esperava.
E
deitou a correr, atropelando os que estavam de joelhos e rompendo para a porta
da sala, conseguiu assim passar adiante à inesperada procissão que lenta e
pausadamente ia entrando pelo imediato aposento e se dirigia ao interior da
casa.
Eram
umas vinte crianças de nove a treze anos, índias todas, grosseiras mas
limpamente vestidas, com suas opas encarnadas, vulgarmente ditas capas do
Santíssimo: suas tochas acesas nas mãos, e atrás deles um padre de sobrepeliz e
estola, o véu sobre os ombros, e cobrindo com ele a píxide ou âmbula em que se
continha o Viático.
O
visconde, espantado, a língua presa, ficou imóvel, olhando com uns olhos fixos
que não viam, ouvindo com uns ouvidos que lhe não mandavam som distinto nem
ideia precisa ao espírito. No meio de toda aquela gente prostrada, batendo nos
peitos, ele ficou de pé, como a estátua da Impiedade, o símbolo da Impenitência
que parecia insultar a compunção geral.
A
procissão passou; todos a seguiram... menos ele, que, imóvel, impassível, ficou
no mesmo sítio.
CAPÍTULO
17: SIMPATIA
Enquanto
o visconde, tolhido de susto e de pasmo, tinha ficado só na deserta casa de
jantar, rodeado das relíquias das iguarias, do fasto e da suntuosidade, que ali
pareciam agora as do naufrágio de todas as alegrias e prazeres humanos, e
causavam asco e dó vendo-as dispersas em tomo desse homem prostrado e ferido de
uma dor mortal – o viajante seguia, com os demais, o Viático. À porta da câmara
da viscondessa lhe explicaram o que, naquela casa, só Isabel ignorava, o pai, e
ele hóspede recém-chegado: que a dona dela, a senhora de toda aquela imensa
riqueza, há muitos dias abandonada dos médicos, estava no derradeiro período de
uma consumpção lenta, e que a cada instante receavam vê-la expirar. Enquanto
estavam à mesa, tinha-lhe sobrevindo um paroxismo mortal; e a criada de
confiança que a velava, a pontual Gertrudes, não tratou senão de fazer o que
sua ama com a maior instância lhe encomendara: correu a chamar o capelão, que
há muito estava de sobreaviso e que imediatamente acudiu com os Sacramentos.
Tudo isto se tinha passado em poucos minutos, não houve tempo nem reflexão para
mais; e as ordens estritas da enferma tinham sido que por nenhum modo
sobressaltassem sua filha ou o visconde. Isabel, pressentida pela conferência
da manhã, adivinhou logo tudo, e sem mais perguntar, correu direita ao quarto
da mãe, que achou moribunda. Ao pai tudo tinha escondido temendo os excessos de
sua dor. Ninguém ousava dar-lhe o golpe, ninguém tinha ânimo para o prevenir; e
à força de precauções que deixaram cair repentino o raio direito e desapiedado,
com que o assombraram, o mataram na alma para sempre.
Da
porta da câmara da moribunda o general deitava os olhos para ver os que a
cercavam. Viu a filha, meia ajoelhada meia deitada no leito, que a sustinha nos
braços; viu muitos homens, muitas mulheres de joelhos que soluçavam e choraram;
viu muitos mais na antecâmara que faziam o mesmo; viu que só o visconde não
estava, e que ninguém dava por sua falta! Saiu à pressa, e veio encontrar o
desgraçado marido tal como o deixara, só, pasmado, em pé ainda, os braços caídos,
os olhos fixos no vago, ausente de toda a razão, toda a consciência da vida.
Tomou-o fortemente dos braços, sacudiu-o com violência, e com aquela severidade
na voz que é preciso usar com os alienados ou fracos de espírito para lhes
despertar algum resto de razão:
–
Que é isso, senhor visconde! A nossa amizade é de homem: mas instantes destes
valem séculos; e eu revisto-me de toda a autoridade de um amigo velho, para
exigir, para que mandar se é preciso... que não dê a sua filha um espetáculo de
cobardia e de vergonha!
Os
sons destas últimas palavras tiveram uma como ação voltaica sobre os nervos do
português. Cobardia, ele! – Vergonha, ele! Estremeceu e as suas faces pálidas
ficaram de púrpura.
O
general continuou:
–
Vamos. A vontade de Deus está sobre tudo. Fizeram mal em no enganar assim até à
última: é verdade. Mas o mal está feito, e agora é preciso ser homem. Sua filha
não há de ficar só ao pé do leito da moribunda.
Este
último argumento foi o verdadeiro choque elétrico na paralisia da alma; ouviu
dentro em si aquelas palavras como se lhe despertassem um eco surdo que lá
estava abafado; reviveu para sentir, e pareceu reanimar-se. Apertou ambas as
mãos do general, que lhe tinham as suas, correu-lhe um violento estremeção todo
o corpo, e, levantando os olhos ao Céu, como quem o tomava por testemunha de um
voto intimamente pronunciado, exclamou:
–
Meu amigo, meu verdadeiro, meu único amigo, que me não desampare nesta hora!...
Oh!, e nunca mais até que chegue a minha...
E
desde essa hora, um poder sobrenatural pareceu vincular aquelas duas almas e
selar, de eterno selo inviolável a dependência de um e a autoridade de outro.
Desde aquela hora a alma do português morta, extinta, não pareceu ressuscitar
senão em obediência à voz poderosa que a ficou dominando como sua. Via, ouvia,
sentia, mas não julgava por si. Não perdeu a memória de nenhum sentimento ou
afeto. Ficou-lhe inteira a inteligência para pensar e gozar, para amar e
aborrecer; tudo o mais da vida lhe ficou, menos a vontade e a força de querer;
essa não a tornou a recobrar; tomou-a para si o hóspede francês.
CAPÍTULO 18: ÚLTIMA COMUNHÃO
O
toucador da viscondessa, despojado de seus adornos e elegâncias, tinha sido
convertido em altar, e colocado junto a um grande quadro que pendia defronte do
leito, em cujo fundo de veludo roxo assentava uma singela cruz de ébano com a
imagem de Cristo. No altar, toalhas e luzes, e sobre ele o Viático. De joelhos,
inclinado diante do Santo dos santos, estava o pároco índio, o capelão do
visconde. Em derredor e com tochas acesas servindo-lhe de acólitos, os
educandos do Colégio de Índios, que ele dirigia, fundação a mais querida e
patrocinada da moribunda. Um recolhimento santo e solene tinha pendentes todas
as cabeças, submissa a dor e mudo o pranto.
Entraram
os dois amigos, e apenas foram vistos, ajoelharam junto do leito, e ninguém se
ocupou deles.
O
sacerdote orava baixo, e parecia esperar com resignada confiança que Deus
acudisse à agonizante com um momento de lúcida consciência em que pudesse
administrar-lhe os derradeiros auxílios do seu ministério.
A
enferma abriu os olhos serena, e sorriu de um sorriso angélico e suave. Pós a
mão sobre o peito como quem se queria inclinar diante da augusta presença do
Redentor que vinha a visitá-la. Depois sentiu a filha que a amparava e com a
outra mão apertou a dela. Girou os olhos pelo aposento, viu o marido debruçado
ao pé do leito, e mais se animou de o ver. Deu com os olhos no general... e
estremecendo involuntariamente arredou dele a vista: mas vencendo logo com a
reflexão um vago sentimento de repugnância que lhe inspirava o estrangeiro o
saudou com os olhos.
Todos
os tinham fitos nela, e retinham os soluços que queriam rebentar, mas ninguém
chorava porque a serenidade do seu rosto era tanta que parecia inspirar
contento e alegria, condenar a tristeza e reprovar toda a expressão de pesar.
O
sacerdote levantou-se, veio ao pé do leito da enferma e lhe perguntou se estava
disposta a receber a Eucaristia.
Respondeu
distintamente que sim. Confessada e comungada três dias antes, a moribunda quis
todavia reconciliar-se.
Saíram
todos da câmara; Isabel a última e com marcada relutância: foi necessário que a
mãe lho pedisse instantemente:
–
Minha filha, é um momento: e eu não fico só: está Deus aqui. E é somente ao seu
ministro, a ele só, Isabel, que eu quero, que preciso dizer duas palavras.
Isabel
saiu e foi abraçar-se com o pai. Ambos e todos ficaram esperando com ansiedade
que os últimos segredos dessa alma piedosa se exalassem no seio daquele que a
consolava e confortava na derradeira angústia.
Durou
poucos minutos a reconciliação. O padre fez sinal para que entrassem.
Ajoelhou
a filha a um lado da cabeceira, o marido ao outro; e ambos mudos, ambos
concentrados em sua dor, e sem mais expressão no semblante que a das lágrimas,
a ouviram pedir perdão a todos – a eles também! Rogar-lhes que encomendassem
sua alma a Deus; e não lhe esqueceu no perdão e na rogativa esse próprio amigo
de ontem, a quem dirigiu, como por distinção, estas palavras memoráveis:
–
E ao senhor general que de tão longe veio ver morrer uma pobre americana no
fundo deste deserto... que também peça a Deus por mim! Que se lembre de mim,
que me vou... que morro, nas suas orações! Que se lembre dos outros que
ficam... em cujo Poucos
instantes tinham decorrido desde que o general safra a buscar o seu amigo.
O
derradeiro e augusto ato da vida cristã não tinha começado ainda.
Amor
e saudade me custaria dobrado morrer!
O
velho cortesão de Luís XVIII inclinou a cabeça profundamente, apertou a mão do
visconde, junto de quem estava, e rebentaram-lhe as lágrimas dos olhos.
Toda
a família reunida naquela suprema e dolorosa cena testemunhou e celebrou assim
a adoção do estranho, a posse que dela tomava um velho desconhecido que nenhum
podia amar ainda, estimar ainda, porque o não conheciam, mas que todos queriam
já propiciar como ao seu destinado, como a um fado que lhes aparecia de
repente, e do qual procurava adivinhar cada um se lhe seria adverso ou
favorável.
Criados,
escravos, chefes e subalternos dos diversos estabelecimentos dependentes
daquela poderosa casa ficaram olhando para o conde de Bréssac como para quem
ficava, de ora em diante naquela família, com toda a absoluta potestade do bem
e do mal.
Porque
pensaram eles isso? Porque o imaginaram? O que era para eles esse homem? O íntimo
amigo de Fernando, a sombra, o reflexo desse parente nunca visto, menos
conhecido que ele ainda! Nada. Razões não as havia; eram pressentimentos tudo.
Não
acerta a razão explicar muitas vezes, a maior parte das vezes, os nossos
pressentimentos. Mas alguma coisa há mais do que a razão no homem; alguma coisa
que vê, que sente, que pressente o que ela não alcança.
A
enferma comungou com muita serenidade e devoção; seus membros extenuados
receberam a extrema-unção da Igreja. A procissão retirou-se murmurando seus
cânticos melancólicos. Os homens foram todos acompanhar o Sacramento que
voltava à ermida da povoação. As criadas e escravas vieram para a antecâmara da
viscondessa por ordem de Isabel; ela ficou só com a mãe.
–
Sabes que estou melhor, filha? – disse a moribunda com um derradeiro sorriso de
anjo que se despede. – Estou, e mais confortada. Alentou-se-me este último
sopro de vida que ainda aqui está.
–
Mamã, mamã, se Deus ainda quisesse?
–
Quer sim, filha, adorada filha da minha alma, quer usar da Sua imensa
misericórdia comigo, adoçando-me estes últimos momentos que tão amargos devem
ser a quem n'Ele não creia, e não possa esperar em Sua infinita indulgência. Ai
que horrível será! Eu hei de reclinar-me no teu colo, e com esta mão nas tuas,
com estoutra nas de teu pai, com os olhos naquela cruz, naquele Senhor que
expirou nela por mim, acabarei a minha pobre vida neste mundo, e vos irei
esperar sossegadamente na Eternidade... sossega, se tu me prometes de guardar o
que esta manhã te pedi...
–
Juro-lhe, minha mãe.
–
Bem, minha filha; estou sossegada. Agora só mais uma palavra sobre o meu
protegido. Frei João Índio, bem sabes, quando acabaram os conventos em
Portugal, veio para aqui, para ao pé desse resto de aldeia em que nasceu e à
qual tem esse estúpido e irracional amor dos da sua raça. Para convento do
Brasil não quis ir, nem da sua Ordem os há cá: ele é Camilo. De modo que aí
ficou. Tu eras muito criança e mal te lembrará que andava contigo ao colo, que
te cuidava e te aturava mais que eu, e do que teu pai.
Bem
vês se lhe hei de querer: a sua dedicação por ti entrou-me no coração. Eu tenho
um dó, uma compaixão dele infinita, e ao mesmo tempo uma confiança, uma fé na
amizade daquela natureza selvagem, que te asseguro morro descansada se me
prometes de o não separar nunca de ti, suceda o que suceder.
–
Pois prometo mamã, sossega.
–
Deus to pague, filha, porque bem sei que não gostas dele... e tens razão.
–
Gosto, gosto, mamã: que ideia!
–
Ele é bruto e teimoso, incapaz de toda a ocupação e trabalho. Só se for cuidar
dos doentes, servi-los, que era a sua vocação e o seu instituto. Para tudo o
mais, é nulo. Tem todos os defeitos da sua raça desventurada, mas é cristão
sincero, amigo verdadeiro, e a ti quer-te, ama-te como se fosses sua filha, e
tem por ti uma veneração e respeito que só pode ter-se por um ente de natureza
superior. A mim, bem sabes, que o pobre homem quase que me reza, cuida que sou
santa...
–
E eu não lhe hei de querer, mamã, não lhe hei de perdoar todas as suas tolices!
–
Não são tolices somente, são demasias brutais às vezes. Mas, querida filha, eu
não sei porquê, será porque nasci nestes desertos, porque bebi deste ar
selvagem, e mamei leite selvagem também; será porque de tão livre e tão feliz
que me eu cria em minha ditosa infância, me levaram a um colégio da Europa, um
cárcere para mim, a sofrer todos os martírios da civilização com que me
transformaram, será disso talvez ou não sei de quê; mas é certo que eu tenho
mais medo da polida e afetuosa urbanidade com que me entram pelo coração de
surpresa e parecem querer roubar-mo à traição, do que...
Nestas
palavras entreabriram a porta da câmara: era o visconde, que parecia duvidoso
de entrar. Um sinal da doente o chamou para o pé de si. Ele olhava para trás
como quem lhe pesava de entrar só; mas o velho general – que esse era quem com
ele vinha – lhe fez por sua parte outro mui decisivo sinal de que devia entrar
só. Entrou.
CAPÍTULO 19: RELIGIÃO, POESIA, MORTE
O livro era
Os Mártires de Chateaubriand. As sortes virgilianas com que deparou eram o
episódio de Cimódoce; a fascinadora descrição da primitiva cristandade em
Lacedemônia, aquela inimitável simplicidade evangélica, aquela não menos
admirável singeleza homérica.
Oh!,
se o autor desse livro sublime, que assim ocupava a atenção do viajante,
passasse àquela porta que ali está cerrada e contemplasse a enternecida cena
que aí vai!
Mais
poesia há na sincera expressão dessa dor, nas singelas palavras de consolação,
de saudade e de esperança que esses três se estão dizendo com os lábios, com os
olhos – do que em todos os livros de quantos poetas houve e há de haver.
Crer
e amar – é a única religião verdadeira; crer e amar – a única poesia
verdadeira: uma não está sem a outra. O poeta de ambas se inspira: mas não há
escrito humano que possa chegar a mais do que a refletir palidamente os divinos
clarões que delas reverberam.
Que
veja alguém romper a aurora, nascer o Sol, abrir a flor do casulo, ondear a
seara com o vento; agitar-se o mar na tempestade, trovejar no céu a tormenta,
espreguiçar-se o arroio pelo prado, morrer o justo no seu leito, o criminoso no
patíbulo, o soldado na batalha, sorrir a criança no seu primeiro sorriso nos
braços da mãe, nascer o amor verdadeiro nos olhos da mulher, gemer a dor no
coração do pai que perdeu o filho, estrelar-se o firmamento azul por noite
serena – que as contemple alguém, essas ou outras das imensas maravilhas e
belezas de que está cheio o Universo, o que são o culto, a religião, a poesia
dos que crêem – e vejam depois se há Homeros que lhas possam dizer à alma com a
mesma força, com a mesma graça!
Passou-se
a maior parte da noite assim: vinha de vez em quando Isabel buscar
um caldo, ou o pai preparar um remédio; e não vinham mais tristes, porque a
querida enferma não piorava.
Diminuíam-lhe
as forças, mas a febre não aumentava; e a dissolução daquela fina existência
ia-se operando lenta e gradualmente, em sobressaltos.
Era
manhã clara; já o Sol rompia no oriente, e:
–
Oh!, eu não quero morrer aqui – disse a doente – sem ver o sol, sem regalar os
meus olhos pela última vez com o magnífico espetáculo da Natureza. Que me levem
onde eu veja resplandecer à luz do dia, todas essas belezas de Deus que me
cercaram na vida, essas árvores, essas fontes, esses sítios encantados onde fui
tão feliz, onde tão amada fui, onde tanto amei... O ar desta câmara afoga-me,
está gasto, não o posso respirar. Quero refrescar-me na brisa pura da manhã
perfumada como ela vem das nossas florestas virgens, das flores selvagens do
deserto. Oh!, não posso estar aqui.
Foi
preciso obedecer-lhe.
Envolta
em caxemiras e peliças, em veludos e arminhos a passaram do leito para uma
cadeira estofada que levaram quatro escravas, como quem leva umas andas; e na
sua sala favorita a puseram, aquela onde estava o piano, as pinturas, os
retratos e todos esses frágeis mas queridos monumentos de uma vida de família:
o desenho acabado um tal dia, o presente recebido em tal ocasião... Pura e
celeste religião dos Penates, que não tem coração, nem Deus o que não professa.
A mulher especialmente, a mulher que a Monsieur de Bréssac, tomando o primeiro
livro que achou sobre o bufete de antecâmara, foi sentar-se no vão de uma
janela, abriu o livro à ventura e começou a ler à toa; mas dentro em pouco
tempo estava absorvido na leitura.
Escarnece,
que a despreza ou lhe é indiferente... cuidado com tal mulher; não há que fiar
nela.
Colocaram-na
bem no vão da janela de arco que está no meio da sala: janela inglesa com
sacada saliente e coberta, por onde a luz entra larga a jorros a inundar todo
esse aposento.
–
Que dia, que céu, que beleza! – exclamou a enferma. –Que embalsamado está o ar!
Acolá, Isabel; vês acolá Rodrigo? Onde eu fiz plantar aquela cruz tosca de
madeira, entre aquelas pitangas floridas, tão bonitas... ali desejo eu ficar.
Sabes?, a pitangueira é a murta da nossa terra. Eu não fiz senão amar na minha
vida: quero na morte abrigar-me entre essas ramas de que se coroa o amor. Uma
pedra simples com o meu nome de batismo somente: “Maria” e nada mais...
“E
agora assim... dá cá a mão, Isabel; a tua mão, Rodrigo... Assim, assim...
sustenta-me a cabeça... E é trovoada isto, que se escurece tudo?... Não, são as
sombras da Eternidade que vêm sobre mim. Isabel, filha! Marido da minha alma!
Adeus! Senhor Jesus Cristo, Virgem Santíssima, sede comigo.
–
Mamã!... – clamou Isabel, fora de si, e perdida toda a força com que até ali
tinha resistido.
–
Filha!... – pronunciou a mãe com dificuldade já...
E
não disse mais nada. O último suspiro ainda saiu articulado naquela palavra
querida.
CAPÍTULO 20
São
passados dois dias: a manhã está triste e úmida, o céu feio e nublado, cai uma
chuva miúda que ensopa as ervas, faz pender as flores e tine com som baço e
melancólico nas copas altas das árvores.
Além
sobre um outeiro, rodeado de viçosos mirtos brasileiros, está uma cruz tosca, e
ao pé dela uma cova aberta; um pequeno grupo de homens de diferentes cores e
raças a rodeia. Junto de um caixão negro aspado de uma cruz de prata, um
clérigo de sobrepeliz e estola recita lentamente o ofício da sepultura. Ao pé
dele um homem moço, mas débil e extenuado pelo sofrimento, ouve com atenção os
versetos melancólicos dos salmos responsórios; mais a um lado, outro homem mais
velho e mais forte, alto, magro, em grande uniforme de general; e entre estes,
uma jovem senhora coberta de rigoroso luto.
Nenhum
chorava; todos tinham as lágrimas estanques nos olhos inflamados, túmidos.
Os
três eram os senhores, o resto do grupo servos e dependentes. E ali estava toda
a família do poderoso visconde de Itahé dizendo o último adeus a sua boa
senhora que ao pé daquela cruz vai enterrar-se.
As
orações terminaram, o caixão desceu ao fundo da cova; e o som baço da terra,
caindo sobre as pranchas do ataúde, foi diminuindo, foi emudecendo mais e mais
até que morreu de todo, e a cova ficou cheia e a terra se anivelou com a terra.
Puseram-lhe em cima um grande penedo tosco sem nenhum modo de feição ou lavor
senão só o nome de MARIA, gravado no mais alto em letras fundas.
–
Tudo está consumado – murmurou o clérigo, inclinando-se diante da cruz.
–
Adeus, mamã! – disse Isabel.
O
visconde ajoelhou sobre a terra encharcada e mole e abraçando-se com o rústico
monumento da esposa, beijou o nome de Maria. Daí levantou-se, e, tomando o
braço da filha, sem mais lágrimas nem palavras caminhou para casa. No mesmo
silêncio o seguiram todos.
O
tempo levantou. O Sol brilhante e poderoso apareceu de repente no céu,
afugentando os densos vapores que o enegreciam; toda a Natureza sorriu. Os
capins dos prados reluziram de seu verde transparente; as flores mais belas,
mais viçosas de cor e de aroma levantaram a corola pendente, as árvores
estremeciam vibrando como de prazer em seus ramos. Saíam de seus ninhos
miríadas de pintadas aves, cantando as poucas a que a Natureza ali deu o
raríssimo dom da melodia. Ressurgiu toda a Natureza e se vestiu de gala e de
alegria.
A
morte não assusta, não entristece senão ao homem, porque só ele compreende a
mágoa sem fim e a dor sem remédio.
CAPÍTULO 21
Onde
raras estrelas pasce o pólo, todas cintilavam espargidas pela abóbada celeste.
Em
toda a aldeia suíça chamada Nova Itahé, elegante e caprichosa residência do
visconde do mesmo título, já dormem todos, menos os que a dor tinha despertos
para velar saudades que nunca se hão de apagar nesta vida.
Na
livraria estão os dois inconsoláveis anojados – o pai e a filha; vestidos de
rigoroso luto e sentados um defronte do outro, sem pronunciarem uma sílaba, sem
outro sinal de vida mais do que o pranto de seus olhos, que não cessa. Entre os
dois está o general, tão carregado de luto como eles, quase tão triste e talvez
mais pensativo. Para os dois, há aquela dor imensa, mas única; deixam-se
embrutecer, esmagar por ela; as do francês são tantas, deixaram tantos cuidados
após si, quem sabe de remorsos?... Não há mágoa tranquila, há um padecer
excruciante para os corações que têm de se repartir assim entre muitas penas.
Com
um imenso número do Times aberto diante de si, a luneta cravada nos olhos,
Monsieur de Bréssac forceja para fixar a atenção e distrair-se dos internos
pensamentos que o devoram. Impossível!
O
visconde não tirava dele os olhos senão para os pôr na filha. Parece que só
amparado entre os dois se lhe sustem a vida.
Deixemo-los:
dê-se à dor o que é da dor, e à humanidade o que é seu. Deixá-los desgastar no
pranto e embotar no padecimento o gume da espada que os está lacerando.
E
condição do homem sofrer e repousar depois no cansaço do sofrimento. Deixá-los,
e vejamos se por essa população, que toda parece dormir, alguém vela todavia
ainda.
Não
se vê luz senão na capela; será a perpétua luz da lâmpada que arde silenciosa
no santuário? Não: ouve-se o murmúrio de um orar fervente, e não de quem recita
fórmulas banais e sabidas, mas comunga mentalmente com o mundo dos espíritos.
Vejamos,
oiçamos.
Ajoelhado
nos primeiros degraus do altar, está um vulto negro. Sobre suas vestes pretas e
talares, como as de um simples, uma cruz vermelha lhe assinala o peito; cor de
cobre e mal-assombrado o rosto, onde não há sinal de barba, e que tem não sei
quê de afeminado e de feroz ao mesmo tempo. O cabelo hirto e mal semeado em roda
da larga tonsura clerical. E frei João Índio; as feições de sua casta e os
hábitos de seu instituto o denunciam.
É
frei João o que está diante do altar, abrindo o seu coração de selvagem ao Deus
dos Cristãos, que ele adora, – que é Deus dos brancos infelizmente, gente má e
opressora, e dos negros também – que ainda é pior – raça abjeta e desprezível,
nascida para a escravidão somente.. Mas enfim. Deus é Deus de todos, pensava
tristemente o frade. Se fosse dos Índios só, não se veriam eles tão desamparados
e oprimidos como andam! Embora: o grande Espírito de seus pais, é Ele, é o Deus
grande, o Deus dos Cristãos. Frei João é cristão sincero, e as suas mesmas
superstições selvagens se convertem nele em fundamento de crença e de piedade.
–
Meu Deus – dizia o frade –, Vós bem sabeis que sou índio, e que o meu sangue
nem o meu coração não podem mudar. Consagrei-me ao Vosso altar e fugi da minha
desgraçada terra para viver e morrer na Europa, onde não chegasse o ar de
nossos montes e o cheiro embriagante das plantas do deserto, porque eu temia a
minha natureza bruta e não queria ser senão Vosso, meu Deus.
É
noite, e naquele céu.
“Não
o permitiste, Senhor, assim. Deixastes que os ímpios expulsassem os Vossos
servos de suas casas, que Vossas eram; que os roubassem, que os proscrevessem,
que os obrigassem a despir seus hábitos, e a trajar mundanamente como eles!
“Não
lhes quis obedecer: fugi, e aqui vim outra vez para viver e para morrer com os
meus e na minha terra.
“Mas
onde estão os meus? E que tenho eu nesta terra, que ainda chamo minha, não sei
porquê? A nossa última esperança foi-se... esse anjo em figura de mulher que
tinha vindo do Céu para nos consolar voltou à sua pátria, deixou-nos! Ontem
demos à terra os seus despojos mortais, seu eterno espírito voou ao Céu, e nós
ficamos órfãos e desamparados. Este miserável resto de uma nação tão
poderosa... que tudo quanto os olhos vêem destes montes era seu, que hoje todo
o seu domínio são essas poucas choupanas arruinadas da Velha Itahé... quem o há
de defender do Banco e do Negro, nossos inimigos capitais?
“A
jovem senhora é boa e santa, quase como sua mãe, mas o resto de sangue índio
que gira em suas veias já não tem o instinto da sua raça. Pode ser que nos
detestasse ainda mais se soubesse que participa da nossa origem.
“Eu
que a amo como filha e que, apesar das odiosas misturas de sangue, ainda
distingo, ainda respeito nela o de nossos antigos caciques, eu sou para ela um
objeto de escárnio e de aborrecimento, bem o conheço. Que será, meu Deus,
quando chegar esse português com quem a casam, esse pobretão do reino velho a
quem vai dar todas estas riquezas, que Vós não consentistes decerto que se
perdessem nesta família senão porque nela se conservou o sangue, embora
degenerado, dos primeiros e verdadeiros senhores destas terras escolhidas, e
para que o seu amparo se pudesse estender sobre nós, seus verdadeiros filhos.
Oh!, isto não pode ser assim, nem Vós podeis permiti-lo, meu Deus.
Inspirai-me,
Senhor, o que devo fazer, e confortai a minha alma que sucumbe. Dá-me tu luz do
Céu, minha irmã, e não me abandones agora, que eras a minha guia, a minha protetora
neste mundo.
“Não
pode ser! Isabel não pode ficar órfã e abandonada neste mundo, escrava da
vontade de seu pai, que não é, que não pode ser bom pai, porque todo o seu amor
o dá a esse sobrinho, para quem cobiça tudo, a quem tudo sacrifica.
“Não,
Isabel não hão de ser sacrificada, nem a há de levar de nossas terras esses
estrangeiros cobiçosos e egoístas, que não vêm cá senão para nos zombar.
Estas
últimas palavras foram já ditas de pé, sem tom, nem ar de súplica ou de oração.
Já se não humilhava nas preces e nos rogos aquela alma selvagem. As paixões do
índio, excitadas pela desconfiança, já estavam desgovernadas e soltas, não
respiravam senão vingança.
Saiu
da capela, entrou no presbitério; tomando o seu bordão seguiu em direção aos
matos, caminhando à borda do canal que vinha dar à lagoa do parque, para o
sítio onde o rio se dessangrava nele e onde, não longe, era situada a já
florescente e hoje quase arruinada aldeia Velha de Itahé.
Esta
aldeia Velha de Itahé, que, segundo as tradições dos índios, tinha sido a
capital de uma nação poderosa, que ocupara aquelas terras em épocas remotas,
perfeitamente representava hoje o estado de uma raça votada a perecer, a
extinguir-se e a morrer às mãos da civilização que a invadira; e que lhe levara
todos os seus vícios e corrupções sem que nenhuma de suas vantagens tivesse
podido dar-lhe.
Durante
alguns anos e sob o regime dos missionários jesuítas, pareceu animar-se; mas
com a expulsão dos padres recaiu na consumpção que a devora, e que a indolência
natural aumentou. Muitos, dos índios, emigraram para o interior a unirem-se a
outras tribos selvagens, que mais sertão adentro conservam sua feroz
independência, ou vieram entregar-se à crapulosa civilização das cidades;
outros, mas poucos, se conservaram em suas choupanas, dependentes do antigo
colono Aires Leite, fundador da imensa riqueza e vasto patrimônio da
viscondessa de Itahé.
Era
Maria Teresa a última descendente daquela família, cuja origem os índios
atribuíam a seus antigos caciques, e esta tradição explicava sua adesão aos
senhores da Nova Itahé.
Tinha
sido sua ama-de-leite uma índia da aldeia velha, por nome de Mohema; bela como
não é raro que o sejam as de sua raça e notável por sua supersticiosa aderência
às práticas e crenças dos antigos aborígenes, e por ser como arquivo de todas
as antigas memórias e tradições, que em tudo e por toda a parte se obliteram.
Mohema
era mãe de frei João Índio, que assim veio a ser criado na residência dos pais
de Maria Teresa, onde desde seus primeiros anos se afeiçoara à religião dos
invasores, como sua mãe lhes chamava. Apesar do seu natural eminentemente
selvagem, adquirir por sua irmã de leite aquele amor e devoção sincera que foi
a paixão de toda a sua vida; e que por morte dela se reportava agora todo a sua
única filha Isabel, não obstante a espécie de ciúme, malquerença e ódio de raça
que professava a seu pai, a quem detestava porque era europeu, e porque aos
hábitos, à educação e às práticas europeias, atribuía a prematura morte de sua
adorada irmã.
Frei
João, protegido pela poderosa família da sua colaça, estudara no Seminário da
Baía, onde se ordenou sacerdote. Estivera como capelão alguns anos em casa de
seus protetores mas tal e tão odiosa impressão lhe fez o casamento de Maria
Teresa, com o que ele chamava um aventureiro do reino velho, que, por faminto e
não por emigrado, viera para o Brasil, que resolvera ele emigrar para a Europa,
vindo professar em Lisboa no Instituto dos Camilos.
Os
anos que viveu em Portugal, isolado do mundo, e entregue todo exteriormente ao
escrupuloso desempenho da regra em que professava, tinha-os inteiramente
passado em chorar por sua terra, e em rogar a Deus que o levasse para si, a
esperar por sua irmã, que lá iria ter um dia, e junto da qual seria feliz por
toda a eternidade.
Já
disse como a revolução e a extinção das ordens religiosas o fez voltar
inesperadamente ao Brasil, onde tomou o seu antigo cargo de capelão.
A
sua repugnância, o seu ódio contra o marido de sua irmã, definhara e diminuíra
bastante, vendo-o cooperar com sua mulher nos benefícios que ela liberalizava à
raça índia, fundando no presbitério o colégio da educação, e provendo por mil atos
a proteção daquele mal-aventurado povo.
Maria
Teresa bebera com o leite e com as práticas de seus primeiros anos um
entranhável afeto àquela proscrita raça, cujas ligações de sangue com o seu
próprio, Mohema lhe exagerara e profundamente gravara em seu tenro ainda e
compassivo coração; exaltando-lhe também a infantil imaginação com legendas
misteriosas, em que a sua razão descobriu depois absurdas fábulas, mas não
chegou nunca a deter de todo a impressão supersticiosa que haviam feito.
Senhora
elegante, de um espírito sólido e cultivado, com uma alta e superior
inteligência, a sua imaginação contudo era índia, era selvagem, e corria
desregrada e solta, sem obedecer a nenhumas leis.
Assim,
conhecia a bruteza e nulidade de seu colaço; não lhe dava importância alguma
como homem social, tinha contudo uma fé supersticiosa e cega no filho de
Mohema, que era forte e sabido naqueles mitos e histórias absurdas da raça
indígena. O Índio detestava o Preto, Maria Teresa, só por via da sua religião,
se curvou a amar o Negro e afeiçoar-se por pai Cássiáno. O Índio vive sempre em
desconfiança do Branco, e ela, adorando seu marido, não podia vencer o seu
coração e confiar inteiramente naquele que amava mais que a si própria.
Habituada
aos gozos do luxo e da elegância europeia, não podia viver sem eles; sentia
contudo uma espécie de remorso desta necessidade, e se acusava dela como de um
crime.
A
ideia daquele sobrinho, daquele Fernando, a quem seu marido destinava a filha,
desde o berço, era uma ideia de terror, que a perseguia como uma sombra ma.
A
sua razão e a sua religião sublime condenavam todas estas superstições, mas
elas estavam arreigadas em sua alma pelo instinto.
E
da luta contínua em que viveu, travada em seu instinto selvagem e sua razão
civilizada, morreu vítima aquela boa e santa criatura, legando à sua adorada e
única filha os mesmos gérmenes de infelicidade e destruição.
Tudo
isto sabia e conhecia frei João, como amigo que era, confessor, e irmão de
leite e de crenças – antes de instintos da malfadada viscondessa, cuja morte
era para ele, para Mohema, e para todos os poucos índios que ainda conservavam
a fé da sua raça, o maior dos infortúnios que podia acontecer-lhes, e que
comparavam às duas grandes calamidades da sua história: a descoberta do Brasil
pelos Portugueses e a expulsão dos Jesuítas.
CAPÍTULO 22
Caminhando
ao longo do canal, ia frei João refletindo em todas estas coisas que
rapidamente ficaram esboçadas no capítulo antecedente; e ora apressava
desordenadamente o passo com a violência e impetuosidade do pensamento e das
tenções que formara, ora ia lento e pausado, com a indolência do desalento e
desesperança que lhe travava do espírito e o desanimava.
Chegou
onde o canal sangrava o caudaloso rio, que, nos princípios desta história,
vimos subir pela ágil e ligeira canoa, que tripulavam quatro índios, e que
governada por nosso excelente amigo Spiridião, conduzia o general de Bréssac
aos domínios de Itahé.
Chegado
ao extremo ângulo formado pela derivação e pelo rios, frei João parou, e
soltando um daqueles longos e evidentes assobios, que só um índio sabe dar,
imediatamente lhe respondeu um outro mais discordante e complicado; e não
tardou a sentir-se na água o esplachar de remos e o mover de uma embarcação que
não podia ser senão uma canoa.
E
com efeito a mesma canoa dos quatro índios, mas sem arrais preto, branco, nem
vermelho abicou perto de frei João. Poucas palavras e todas em sua língua se
trocaram entre os índios e o frade, que embarcou e seguiu com eles para a
margem oposta.
Desembarcaram
daí a poucos minutos e os índios remeiros, tendo varado a canoa na praia,
acompanharam, no mesmo silêncio em que até ali tinham vindo, o taciturno frei
João, que, sem olhar para eles, sem dar a menor demonstração de se importar de
sua companhia, foi por vestígios de choupanas e cavas destruídas, de campos
noutro tempo lavrados, de hortas abandonadas, até chegar a uma das cabanas,
que, não longe de outras que ainda tinham aparência de ser habitadas, parecia a
maior e a mais bem conservada.
Era
o que ainda restava da aldeia da Velha Ithaé.
Frei
João entrou na cabana, cuja porta estava aberta, e com ele os quatro índios.
Sentados
nó chão em semicírculo, à roda de uma índia velha que parecia presidir ao
sinédrio, estavam uns poucos de homens velhos, alguns moços, e todos, exceto
um, mais ou menos marcados no rosto e nas feições de evidente origem dos
indígenas.
Aquele
era um homem moço ainda, mas obeso, posto que ágil e robusto, de compleição
sanguínea, pescoço apoplético; as feições europeias mas desfiguradas' pelas
bexigas que se percebia ter tido não havia muito tempo. O seu vestuário era
ousado da cidade, limpo, mas desalinhado; sem ar grosseiro e vulgar. Todos os
índios, maltrapilhos, meios nus; um deles, com o trajo e ademanes livres de
verdadeiro selvagem.
A
velha – que bem mostrava ainda o que fora, o mais belo tipo de sua raça, alta,
esbelta, de vigorosas e pronunciadas formas – era Mohema. Viu entrar o filho e
os homens que o seguiam, e sem surpresa nem sobressalto, disse-lhe:
–
Já vos estava esperando há muito; meus filhos, ali é o vosso lugar.
Sentaram-se
em continuação do semicírculo, e Mohema disse:
–
O espirita de nossos pais nos acompanha: bem vedes que a velha Mohema não
engana, que tudo sai certo quanto ela vos diz. Não disse eu que o padre cristão
era índio como nós? Aqui o tendes.
“Eu
tinha consultado as profecias dos nossos antepassados, e em verdade vos digo
que os Espíritos são por nós, e que a filha dos caciques não há de casar com o
estrangeiro. E a vontade do seu pai, mas não é a nossa nem a dos Espíritos.
“Essa
gente da aldeia nova quer acabar com a nossa raça, fazer aliança com os Negros,
libertá-los e fazer-nos trabalhar a nos: o Índio nasceu para ser livre e não
para o trabalho, nasceu para a caça e para a guerra. O Branco e o Preto que
façam o açúcar, que cavem a terra, e que levem o oiro das nossas minas, que nós
lho damos, e nos deixem a nossa liberdade e os nossos bosques.
–
Mohema – disse um velho –, as tuas palavras fazem saltar o meu coração. Se o
Índio já não é o que era, e nós não podemos senão viver em paz com o Europeu,
que é mais forte que nós, que tem por si o Negro, nosso inimigo! E nem podemos
fugir deles, porque precisamos deles e das suas artes, que nos importa que a
filha do visconde case com este ou com aquele? Não será com algum de nós.
–
E porque não? – replicou Mohema. – É ela nobre, rica e poderosa pelo sangue
português que tem ou pelo que lhe vem de nós? Aqui está o jovem Acaiba, filho
do senhor do engenho de Sorocaba, que não despreza de descender da nossa
origem, de usar do nome índio da sua raça.
Frei
João, que até ai tinha ouvido taciturno e cabisbaixo as declarações de
Mohema,
levantou a cabeça e disse:
–
Basta, mãe! Os três Espíritos enganam-te. Os teus discursos não são inspirados
como dantes eram.
“Esse
homem não é nosso, a parte do sangue de suas veias que não é português, é
também estrangeiro porque é Negro; as suas feições o dizem. Pôs-se o nome de
Acaiba para se fazer grande e independente, renegou o português que era o
melhor que tinha.
Anda
nesses enredos e embustes para nos trazer ao seu partido, para ver se alcança a
mão de Isabel, de cuja imensa riqueza está namorado. Não o há de conseguir
enquanto frei João, este pobre frade que aqui está, tiver o olho aberto.
–
Filho! Filho! Assim nos quereis atraiçoar! Mudaram-te com esses hábitos!
–
A mim ninguém me mudou. Índio nasci e índio hei de morrer. E também sou frade,
e de frade não hei de renegar.
“Minha
irmã morreu há três dias, e eu prometi em seu leito de morte que velaria sempre
por sua filha. Seu pai quer casá-la com um sobrinho, outro português como ele;
mas fiai-vos no que vos digo, não o há de conseguir. Isabel há de escolher por
si, que são os votos de sua mãe. Não deis ouvidos ao falso Acaiba e tende bom
ânimo.
–
Mas, filho, querem libertar os Negros, e os Negros em sendo livres hão de
devorar-nos.
–
Os Pretos são homens. como nós. Libertou-os e remiu-os o mesmo sangue precioso
que remiu os homens todos.
–
Tu blasfemas! Comparar o escravo com o homem livre das florestas!
–
Minha mãe, eu sou cristão e sacerdote de Cristo. Diante do Deus dos Cristãos,
não há Índio, nem Português nem Africano, há homens. Não sabes tu que, pelas
antigas profecias, os pecados de nossos pais haviam de trazer sobre nós os
castigos que estamos sofrendo?
–
Sim, mas as profecias também falam de um vingador que há de vir de longe.
–
O vingador é Jesus Cristo, e d'Ele só é o prêmio e o castigo das obras dos
homens. Eu sou índio, mas índio cristão. Creio, como vós, que terra e os céus,
as plantas e os animais têm espírito que nos prediz o futuro, mas é porque Deus
o permite e manda. E não é aos que se embriagam e efeminam todo o dia e dormem
toda a noite, que os espíritos do ar ou da terra falam das coisas que estão por
suceder, sim aos que oram e crêem e fazem penitência de seus maus feitos.
.....................................................................................................................
.....................................................................................................................
– Tu, mãe, vem comigo.
–
Onde?
–
À aldeia nova. Ficarás esta noite em minha casa; amanhã irás ter com Isabel,
que quer ver-te e consultar.
–
A mim!
–
Encarregou-me de te procurar.
–
Irei.
–
Traz contigo aquelas drogas e simples que ninguém sabe conhecer nem colher
nestes sítios senão tu, nem empregá-los devidamente. Vós, ide cada um para
vossas choupanas e sossegai.
Os
índios saíram; Mohema, depois de ter escolhido umas ervas, frutos secos,
sementes e raízes que pendiam do teto da choupana, pôs-se a caminho com frei
João, que de volta com os remeiros entraram na canoa, atravessaram o rio e a
grandes passos, sós os dois, seguindo o longo do canal, chegaram à nova aldeia
e se recolheram ao presbitério.
CAPÍTULO 23
Isabel
tocou à porta do quarto do pai, que lhe conheceu a voz e languidamente lhe
disse:
–
Entre, minha filha.
O
elegante e faustoso senhor de todos aqueles imensos domínios, prostrado e
abatido pela dor e pelo que ainda é pior que ela, e desanimação e desalento que
lhe sucede, estava tristemente descaído sobre um sofá, escondendo em uma das
mãos o rosto, para vedar de seus olhos a luz que lhos ofendia, débeis e
cansados de chorar.
–
Meu pai – disse Isabel, sentando-se ao pé dele –; meu querido pai, então? Onde
está o seu grande ânimo?
–
O meu ânimo, filha – respondeu ele, abraçando-se com ela e beijando-a muitas
vezes –, o meu ânimo está enterrado acolá no parque, debaixo daquela cruz.
–
E a sua filha?
–
Ah!, a minha filha está aqui nos meus braços, e esta não só ma hão de tirar,
porque primeiramente me hei de ir eu, e não tardará.
–
Sim! E a sua filha só, só neste mundo, no meio deste deserto! Vamos, lembre-se
do que diria a mamã se o ouvisse dizer semelhantes coisas. Do que estará
dizendo, agora no Céu, vendo-nos faltar às promessas que ambos lhe fizemos, de
viver unidos e resignados com a sua falta, de vivermos por amor dela.
–
Mas que hei de eu fazer, filha? Eu não tenho força nem ânimo para viver. Deus é
testemunha.
–
Há quatro dias que não toma coisa alguma, e que se alimenta com esse café que
aí vejo sobre a mesa. Fechado neste quarto, agora ultimamente nem conversa com
o general.
–
O general é meu amigo, não o duvido, mas a sua conversa cansa-me; os seus
conselhos não os posso seguir.
–
Pois que lhe aconselha ele?
–
Que saia daqui, que vá para a Europa. Eu! Eu abandonar estes lugares onde fui
tão feliz, que todos me recordam a minha ventura. Que abandone a sepultura de
minha mulher, de tua mãe, Isabel!
–
E porque não, meu pai? Ninguém quer mais a estes sítios do que eu, nem sente a
vida mais presa a eles do que eu, que aqui nasci, e que não conheço outros. Mas
aqui perdi minha mãe, e não quero perder meu pai, moço ainda, e cheio de saúde
e de futuro.
Não,
meu pai, a sua estada aqui é a sua morte, e nem Deus, nem minha mãe, nem eu
podemos consentir em
tal. Precisamos da sua vida para muito.
–
Que dizes, filha?
–
Digo o que é, o que deve ser.
–
Pois também, tu! Também és da opinião dele?
–
Certamente, porque nem meu pai, nem eu nos devemos enterrar neste deserto, tão
sós. Enquanto minha mãe foi viva, nunca senti a solidão porque ela no-la
povoava de seu espírito, de sua graça e do seu amor. Agora, é diferente. Todas
estas flores da nossa existência aqui se convertem em espinhos que nos
dilaceram, ou frutificam em bagas amargas e venenosas que nos empeçonham.
“Meu
pai, está ali a velha Mohema.
No
dia seguinte, pela manhã, o general, fechado no seu quarto, escrevia e
classificava em novos cadernos as suas herborizações; o visconde meditava no
seu em descaída melancolia, sem saber nem poder ocupar-se em coisa alguma, tal
era a prostração de espírito e corpo, a que mais e mais sucumbia de dia para
dia.
–
Mohema! Que tem que ver aqui, a velha bruxa índia?
–
Mandei-a eu chamar.
–Tu!
–
Eu, sim. Ninguém conhece como ela as ervas que restauram a saúde e os nervos;
nenhum médico as sabe aplicar tão bem. As suas fumigações e beberagens, conheço
eu de que são feitas, não fazem mal; há de tomá-las o papá, e há de
experimentar as suas benzeduras e feitiços e verá como torna a si, como a sua
razão se vigora para refletir na nossa situação e deliberar seguramente o que
nos convém.
–
Ó filha, tu não sabes a repugnância que eu tenho a índios.
–
Olhe o que diz! E eu e minha mãe não temos sangue índio? Ignora a nossa alta
genealogia, que descendemos em linha reta do poderoso cacique, não sei quantos,
e não sei que?
–
Tolices e superstições e mal entendida vaidade da família de tua mãe.
–
Sim, que meu pai não tem o seu orgulho minhoto de vir de não sei que
ferrabrases de Alexandria, que foram às Cruzadas, à Índia, e não sei aonde
mais.
–
Os Sousas, que vêm dos Soutos da Grécia, não há dúvida. Teus avós são do Paço
de Sousa. Os verdadeiros Sousas de Portugal. O caso é bem parecido!
–
Não é, decerto. Que os seus avós vestiam de ferro e os meus de penas. As terras
que eles deixaram dão couve galega, e as que ficaram destas apenas produzem
oiro e diamantes. Ora vamos, ria-se, que todas estas nossas genealogias são tão
ridículas umas como as outras, como todas.
–
Tem razão, filha; muita razão.
–
Pois se tenho razão, ria-se.
–
Filha da minha alma!
E
abraçou a filha e riram ambos abraçados; e se o riso era ainda amargo, também
as lágrimas já eram mais doces.
–
Agora vou buscar um caldo?
–
Pois sim, rapariga.
–
E trago Mohema?
–
Tenho-lhe zanga.
–
A ama de minha mãe?
–
Venha Mohema.
E
ria a pobre criança, para sustar as lágrimas que resplandeciam da luz de seus
olhos, animada com esta vitória, com o íris depois da tempestade. E saltando e
correndo foi buscar a velha feiticeira índia.
CAPÍTULO 24
As
drogas de Mohema, ou talvez melhor os solícitos cuidados de Isabel, foram com
efeito milagrosos: o visconde melhorou; e sem tornar a ser o que era, porque a
alegria, a serenidade de espírito, a amenidade de seu caráter e trato familiar,
não volveram mais, contudo recobrou bastante de si e de seus grandes poderes
intelectuais, para ainda fazer honra ao seu nome, e ocupar na sociedade o lugar
que ele e a sorte lhe haviam dado.
Estavam
uma noite todos três – ele, a filha e o general – na preferida sala da janela
inglesa, e depois da refeição do chá, que Isabel tinha servido com a sua graça
habitual, realçada certamente agora pela doce melancolia que a saudade da
querida mãe dava a toda a sua pessoa, M. de Bréssac como preocupado de uma
ideia que o entristecia deixara esmorecer a conversação, que afinal descaíra em
tristonho silêncio.
–
Em que pensa, general? – perguntou o visconde.
–
Penso em que devo partir, mas despeço-me com outro ânimo, porque o vejo mais
confortado e porque levo a grande consolação de conhecer o solicito
anjo-da-guarda a quem o deixo confiado. Está um navio a largar da Baía para o
Havre. E forçoso partir depois de amanhã.
–
Não, não parte, eu lho prometo.
–
A minha odisseia está feita, só me resta ver o fumo do lar paterno e morrer.
Morrer para tudo que não seja a minha Helena e o seu estabelecimento no mundo.
Esta carta (leia visconde), que é de Madame de Abrantes, insta pelo meu
regresso a França, porque Helena está crescida, bela, prendada, e é preciso ir
cuidar do seu futuro e não tenho tempo a perder. Acabo pois a minha odisseia;
só se a minha bela Circe à força de encantos...
–
Circe e Calipso reunidas ambas na minha augusta pessoa – disse Isabel – nem
transformam o general de Bréssac em cerdo feroz, nem lhe mandam queimar as
naus... para que não as parta.
–
Beijo as mãos a Circe e a Calipso.
–
Mas el-rei Alcino é que não deixa partir Ulisses.
–
E porquê, real senhor?
–
Porque partirá com ele. E a infanta Nausica também.
–
É possível?
–
É possível e é certo. Tenho no Recife, em Pernambuco –continuou o visconde –,
uma galera, minha, esplêndido navio, bom veleiro, bem tripulado e costumado às
viagens da Europa. Partiremos juntos, se o general...
–
Oh!, mas eu não ousava desejar, nem mesmo sonhar tanta felicidade. Agora, sim,
agora posso jurar-lhes que a minha odisseia está acabada. Findou aqui, porque
onde poderei encontrar mais delicada e benévola afeição do que a encontrei
aqui, visconde?
–
Nem no Sacré-Carur? Preveni-o, general, que sou muito ciosa, como verdadeira
portuguesa, ou verdadeira brasileira, que ainda é pior.
– Il y a avec le ciel des accommodements.
–
No meu céu, nada; não entram lá essas transações... ou tudo ou nada. Coração
que não for meu todo, absoluta, exclusivamente, Não no quero para meu, diz um
poeta português que não vale Molière, que me parece que não é menos cioso do
que ele, porque se ri dos ciosos.
–
E isso é razão?
–
Oh, infalível. Quem muito escarnece e mofa de um defeito, é para encobrir que o
tem.
–
Já vejo que não é Nausica nem Calipso com quem tenho de fazer viagem, mas uma
Circe feiticeira que adivinha. Calipso não sabia senão chorar, e não podia
consolar-se, diz o texto.
–
O francês de Fênelon não é o grego de Homero.
–
Jesus! Helenista também, Dona Isabel!
–
Por favor a meu hóspede, que é todo heleno...
–
Misericórdia! Parece-me, com o devido respeito, que vossa excelência comete...
–
O quê?
–
Um calembur.
–
General!
–
Vamos – disse o visconde, revendo-se na filha –, a discussão vai-se exaltando;
intervenho com a autoridade paterna e presidencial. Está fechada a discussão, e
não há votos, porque não há projeto sobre a mesa, como dizem por todas essas
assembleias e parlamentos em que hoje vivemos.
“Amanhã
vamos fazer, como sabem, a Cabana do Pai Tomás, edição brasileira em prosa
possível. Não é o original filadélfico e como o poetisa aquela bela dama dos
Estados Unidos, que, se não estivesse aqui Isabel, diria que sempre tem as
meias de uma cor!
–
Azul, não, papá: que ninguém escreve com menos pretensão, mais singelamente, e
com mais simplicidade evangélica.
–
Então se as meias não são azuis, hás de permitir ao menos que te diga, que a
touca, boné ou o que quer que traz na cabeça, é incômodo.
–
Não sei.
–
Mas sabe todo o mundo, filha, que as suas declarações são rouges, são mais
vermelhas que a bandeira de um falanstério socialista.
–
Se o Evangelho é socialista... Se o Evangelho é o Livro de Deus, que manda aos
homens que se amem como irmãos e como iguais.
----
Fonte:Almeida Garret: Helena. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Fonte:Almeida Garret: Helena. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário