O HINO AURIVERDE
I
Era pelas últimas horas de uma tarde
admirável.
A estrada torcia-se como uma serpente
enorme, recolhendo-se cuidadosa às sombras vertidas pelo chão juntamente com as
folhas secas escapadas aos fartos penachos do arvoredo.
O sol passava por cima da floresta,
vergastando com chibatadas de fogo os grelos tenros da ramaria e os grelos
deixavam-se cair exaustos sob o suplício.
Apareceu então na estrada uma espécie de
mendigo. Seguia lento, cabeça inclinada; amparava-se a um pau mal desgalhado e
trazia na mão um pedaço de corda. De vez em quando o sol furava os ramos e
jogava-lhe à nuca um punhado de fogo.
II
O mendigo não sentia as garotadas do sol.
Ia refletindo, remordendo meias palavras, nessa reflexão difícil de um espírito
obscuro e selvagem. Pensava naquela infâmia de pele preta, que lhe haviam
colado à carne; naquela robustez maldita, que parecia querer eternizar-lhe o
suplício do cativeiro; recordava-se das chicotadas do cafezal, daquele trabalho
cruel que mal rendia-lhe a farinha abjeta da ração... E que tempo havia!...
Dantes, ele tinha o cabelo preto e a pele lisa; agora os cabelos estavam como
paina, brancos, brancos, e a pele riscada de rugas... Só ficara-lhe dos
primeiros anos o pulso rijo para o eito e a canela forte para as pernadas. O
tormento da força.
III
De súbito, no meio dos sussurros
indistintos do mato, feitos de chilros de pássaros e de marulho de folhas,
ouviu-se um acorde que não era o canto das folhas, nem a conversa dos
passarinhos.
O mendigo preto parou. Pôs-se a ouvir
aquela música melancólica e agradável, que entrava religiosamente na mata, como
a nota de um órgão.
A povoação estava perto. A música era um
realejo que se tocava.
- Aqui está bom, disse o velho escravo.
E preparou com a corda um laço.
O realejo executava, então, uma outra peça.
Tinha o mesmo tom vagaroso e triste, como se estivesse combinado para
acompanhar os preparativos sombrios do escravo.
IV
À beira do caminho havia um tronco notável,
que estendia acima da estrada um galho musculoso como um braço enorme,
terminando como um punho colossal, fechado e ameaçador.
O escravo subiu e sentou-se tristemente
sobre os músculos magníficos desse braço hercúleo. Lançou alguns olhares para o
seu bastão, que ficara lá embaixo. O único companheiro e o derradeiro amigo.
Enfiou depois o pescoço no colar sinistro
da sua corda. Prendeu-lhe a outra ponta ao punho arrogante, fechado para o
céu...
V
O céu brilhava azul, como um pensamento de
criança: e, no meio das bonanças harmoniosas daquela tarde serena, voava, macia
como uma nuvem tênue, a solfa queixosa do realejo.
Aquela música!... aquela tarde...
O velho escravo levantou os olhos, do
bastão, para o espaço; foi, sem tremer, até a ponta do galho que o sustinha, e
escorregou...
VI
Naquele instante, o realejo tocava para os
meninos da povoação as harmonias patrióticas do hino nacional...
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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