sexta-feira, 29 de maio de 2015

Raul Pompéia: "O fruto da formosura"

O FRUTO DA FORMOSURA

Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dois anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.
Foi crescendo... crescendo...
Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.
Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.
Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma cousa indigna.
Este escrúpulo avultava com o tempo.
Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...
Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.
Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...
Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.
Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...
E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!
Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!
A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.
Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.
O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.
O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.
O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.
Está amando, o pobre...
Por fim, expande-se.
Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dois lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.
Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.
Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...
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Então começa a decadência.
O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...
Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...
É quase a história comum de todos os frutos.


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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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