DIA DE GALA
Era duplamente dotada de fibra e de
imaginação; com este aparelho arma-se uma criatura terrível; terrível ou
deliciosa: pontos de vista. Para completar, moça e viúva.
A viuvinha sofria, assim, de uma viuvez
carnal, saudade orgânica do esposo (esposo aqui em gênero, não em caso) como
deve padecer a roda dentada, da ausência absurda da engrenagem conjugante.
Era religiosa. No êxtase da crença,
oferecia aos numes do oratório o sacrifício difícil dos seus desgostos.
Na restrita pobreza dos recursos de
costureira, por meio de vida, faltavam-lhe divertimentos. Ela morava ali, no
largo do Paço, naquela casa de perspectiva secular que parece como uma boa
velha antiquíssima a debruçar-se para a gente a contar histórias do Sr. D. João
VI, que Deus tenha. Valia-lhe de prazer o panorama do mar e por exceção, na
monotonia da vida, as procissões do Carmo e as paradas de grande gala
As procissões produziam-lhe um meio enlevo
beato, agradável como uma baforada de incenso, mas triste no fundo: como em
geral nas solenidades eclesiásticas parecidas todas com um funeral. O seu
melhor prazer eram as paradas. Fazia-lhe gosto à viuvez solitária ver em massa
tantos homens fortes.
As dragonas, sacudindo ouro aos ombros de
alta patente, as baionetas cintilando à grande gala do sol, percorridas de
frêmitos incertos, como uma seara metálica, os penachos cor-de-rosa da
oficialidade, arrufando as penas como aves guerreiras sobre as barretinas e a
temerosa cavalaria, mascando impaciência, transpirando espuma sob os arreios,
os possantes corcéis apeados de estátuas equestres. E o tinir seco das bainhas
contra as esporas e as vozes nervosas impertinentes de comando, na boca de
capitães obesos e as salvas à hora do beija-mão, na marinha de guerra e nas
fortalezas. O rumor, o espetáculo produziam-lhe estranho abalo. Ela pensava em
combates, multidões armadas atropelando-se, desaparecendo em fumo, surgindo em
sangue; pensava nos acampamentos cobertos de tendas e marmitas; deixava-se
levar na meditação imaginadora a conceber a reação de amor selvagem dessas
populações nômades sem família, depois de uma jornada de morticínio; pensava
nas mulheres do campo dos lugares por onde passa um exército e nas vivandeiras
moças; pensava com terror lascivo nas cidades entregues ao saque, em que os
soldados acham que vale a pena poupar a vida às mulheres; ocorria-lhe um
episódio da campanha russo-turca, citado no Jornal
do Comércio: quarenta
mulheres vitimadas por um batalhão inteiro, num paiol abandonado, entre elas
uma de doze anos apenas... a medida que passeava ao longo das filas um binóculo
de teatro, visitando a infinidade de caras, bronze fundidos na soalheira das
marchas.
Não foi, porém, na predisposição comum que
a surpreendeu aquela data: dois de dezembro. Sentia-se presa de um mal-estar
indefinido, um alvoroço no organismo que a inquietava como a iminência de uma
crise, um desassossego de espírito que lhe tolhia a atenção para o trabalho,
impossibilitando mesmo que lhe morasse no cérebro por dois segundos a mesma
idéia, ímpetos de choro sem causa, vontade louca de rolar no chão em assomos de
convulsões.
Dois de dezembro, cortejo no Paço da cidade
Era um presente de céu aquela data, pensava
ela desfolhando o calendário à parede. Pertencia-lhe a grande gala. O que em
outra ocasião fora um divertimento, naquele dia era uma necessidade; naquele
dia, distrair-se era um curativo.
Às onze e meia já lá estavam os pelotões em
forma. Pelas objetivas do binóculo começou a passar a tropa sucessivamente, em
revista sui generis da curiosidade feminina. Uma por
uma sucediam-se as caras da soldadesca em cerrada continuidade de galeria
numismática. E do sótão ignorado caíam, chuva de rosas sobre as fileiras,
olhares de simpatia tão bons, tão expansivos que fariam esquecer o serra-fila
ao galucho basbaque que os colhesse no ar.
Tinham decidida preferência as fisionomias
duras, viris, douradas a fogo pelo verão das campanhas, riscadas de preto no
vinco das rugas, indelével gravura do rictos de severidade marcial que é como o
uniforme dos rostos. Mas, que interessante variedade! as faces deformadas por
um gilvaz glorioso e devastador, outras picadas de varíola em caprichosas
granulações de carne; cá, um semblante de criança grandes olhos negros sobre
malares proeminentes do Norte, nadando em candura, ao lado da baioneta feroz;
mais além, uma cara branca, crivada de sardas, sobrancelhas louras ásperas;
algumas reclamando a baixa do serviço ativo na expressão mórbida; em
compensação, algumas apopléticas, sufocadas na gravata de couro como no laço de
uma forca.
A viúva olhava como se aspirasse de longe a
emanação do pano grosso das fardas suarentas, úmidas às axilas e na constrição
dos talins.
Depois o binóculo visitava os oficiais. Era
outra cousa. A rudez militar suavizava-se geralmente em fisionomias elegantes,
peles aristocráticas amaciadas na sinecura das comissões de paz, carinhas
guardadas em algodão e perfumadas para a ostentação oportuna das paradas,
altivas, sobre a plebe do exército, como lambrequins de luxo sobre uma torre de
ferro, militares de salão meigos e amáveis que possuem palas de tartaruga para
a rua do Ouvidor e frascos de brilhantina para a perpétua frescura do bigode;
soldados queridos de outras mulheres, não dela, dessas mulheres masculinas que
desejam no homem o desconto do que no próprio caráter há de mais. Ela preferia
os oficiais de grosso trato, que lembravam o marido, um bravo do Paraguai, que
lhe morrera nos braços não sei por que, talvez mesmo porque ela o amara muito.
Ia por estas conjunturas quando o binóculo
parou sobre o rosto do capitão Mauro, do 13.o, formado ali, sob as
janelas do Paço.
Fazia um tempo admirável. A pobre solitária
bebia tentações no ambiente da praça, sobre a florescência de sangue dos flamboyants.
Formosa era ela. Não achava segundo marido
por muitas razões, a primeira: por essa desconfiança que persegue as belas
viúvas, muito razoável em teoria, mas injusta de fato. Muitas razões ou, pode
ser, simplesmente para dar assunto a esta narrativa.
Foi um relâmpago.
- Emília!
Emília era a criada, trefegazinha e
esperta. Discreta ou não, no momento convinha que fosse. Foi-lhe confiado este
bilhete em letra miúda e nervosa, este lacônico bilhete:
"Hoje, às quatro horas, sr. capitão,
espera-o alguém na rua... numero... para dizer-lhe duas palavras amáveis."
O lugar do encontro era a casa de uma amiga
ausente, de que tinha a chave a viuvinha.
A nossa heroína esperou que a carta tivesse
partido para arrepender-se, mas o arrependimento foi vivíssimo. Aterrou-se com
a imagem da temeridade a que se arrojara. Ela conhecia o capitão Mauro, frequentador
da casa nos tempos do marido. Um homem atirado, audaz para todas as empresas,
na sua construção de aço e saúde. Estava sinceramente arrependida. Tranquilizou-a,
felizmente, o alea jacta dos supremos apertos, acolitado
pela ponderação de que não custava nada deixar o capitão bater com o nariz na
porta.
Emília tinha ordem de acompanhar o batalhão
no fim do cortejo e entregar a missiva no quartel.
A viúva avistou no largo a criada
insinuando-se pela multidão. Viu sair o imperador, no coche de ouro, para S.
Cristóvão, com os seus Polichinelos sovados de libré verde e galões largos à
traseira e os empoeirados jóqueis, dirigindo a atrelagem, de corpete curto,
camisa a mostra, sobre o cós dos calções e a cavalaria lascando a calçada com a
violência do galope; viu afinal desfilar a tropa música à frente Nunca lhe
pareceram tão verdes as bandeiras cobrindo os pelotões, abertas amplas ao vento
do mar.
Depois, distraidamente foi ao guarda-roupa
e tirou uma pequena máscara que lá estava, velha lembrança de um baile Com a
tesourinha pôs-se a cortar o veludo, alargando o rasgão dos olhos o mais
possível; deixando bastante pano, contudo, para que não a reconhecesse o
capitão Mauro. Pobrezinha! Como se já não estivesse decidida a afogar
brutalmente no peito mais aquele sonho culpado...
Apesar dos impedimentos possíveis da disciplina,
o nosso oficial à noitinha, mandava apalpar as dragonas perguntando se não
sentiam ainda o metal quente - da insolação do cortejo, é possível, mas
provavelmente de um colar de braços nus que o haviam estrangulado. Agora é que
sei, notava mais, o que é ter amor à farda.
E muito tempo depois, entre outras boas
histórias de sacristia, um padre do Carmo contava, sem violação do sigilo, o
que certa confissão lhe dissera de um dia de gala na monotonia triste da
viuvez.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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