DE MADRUGADA
I
Top, um lindo perdigueiro malhado, era o
cão de um meu vizinho; e o meu vizinho um esquisito, desses homens que fazem
não se sabe o que, e vivem não se sabe como, isto é, cosendo o manto das
aparências ricas, com as misérias íntimas. Via-se-lhe a família a rir nas soirées, enfaixadas nas sedas, e não se via
se chorava, quando a chitinha doméstica substituía os tecidos faustosos. O meu
vizinho Ricardo, por seu lado, era alegre, de uma alegria frenética, nervosa;
isto em sociedade. Concentrado em seu gabinete, era um abstrato meditador e um
meditador triste.
II
Top não o abandonava nessas horas de
melancolia; o generoso cão entrava no quarto do dono e, pé ante pé, ia
enrodilhar-se junto da poltrona de Ricardo. Punha-se a fitá-lo, imóvel e
interrogador. A melancolia do dono parecia influir na existência do pobre
animal.
Top ia perdendo visivelmente o curvilineado
elegante das formas e começavam a emergir-lhe na pele umas saliências ósseas de
mau desenho.
Era uma pena ver-se aquele homem e aquele
cão, cruzando às vezes um olhar morno e cheio de tristeza, isolados na meia
sombra do quarto. Felizmente ninguém surpreendia tais cenas.
III
Esta noite, um rumor despertou-me. Era a
minha pêndula que dava horas. Não me foi possível contar as pancadas. Saltei do
leito e com um fósforo iluminei o mostrador do relógio. Eram quatro horas. Boa
hora de levantar-se para quem gosta de o fazer bem cedo. Contrariei com esforço
a preguiça da madrugada, que me entorpecia, e preparei-me para um passeio.
Devia ser agradável. Ao menos divertido. À hora em que o Rio de Janeiro salta
n'água da Guanabara, para os seus mergulhos higiênicos, sempre se tem o que
ver...
IV
Saí.
V
Uma hora mais tarde, a minha curiosidade de
passeante foi atraída por uma coisa extraordinária.
Eu costeava o cais da praia d... Num ponto
em que o pequeno muro de cimento faz uma entrada, recolhendo o mar num remanso
onde as algas apodrecem e dormem as ondas, vi uma sombra saltar do chão para o
muro e do muro para o chão, de um modo aflitivo, soltando como que gemidos,
espiando para o mar, tentando pular e com medo. A luz do dia que chegava e as
estrelas que fugiam deixaram-me ver. A sombra era um cão: o perdigueiro malhado
do meu vizinho. Uma pancada forte senti no peito.
VI
Encaminhei-me com pressa para o lugar.
Antes de lá chegar, vi o cão atirar-se para o lado do mar e sumir-se.
Corri. No ponto em que estivera Top eu
inclinei-me. Descansei os antebraços no cimento do cais e examinei o mar.
Fazê-lo e recuar foi coisa de um segundo. Lá embaixo boiava um cadáver de costa
para cima, com os braços abertos. Perto dele, o perdigueiro debatia-se tentando
puxá-lo.
VII
Entretanto, brilhava a aurora vermelha como
uma chaga, derramando nas ondas as cores da tragédia.
Eu vi sobre o parapeito do cais um objeto
branco. Era um envelope.
Fugi.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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