A CRUZ DA MATRIZ
A igreja Matriz de *** está distante uns
cinquenta passos do povoado...
É um edifício pobre de arquitetura, mas
rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes
velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação
primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no
vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma
cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa
torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão
quando soa a hora da missa.
Galga três pedras amontoadas, como degraus,
quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima,
que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.
O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada.
Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma
portinha. A da direita dá para um terreiro; a do lado oposto comunica com a
sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por
mobília dois bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário,
sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dois castiçais
azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.
A sacristia tem uma janela e uma porta, que
se abrem para um terreno plantado de girassóis.
Entre a janela e a porta está um dos bancos
de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes.
Manhãs e tardes de tranquila meditação, inspirada menos pelos segredos da
ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o
pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou
mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e
alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.
Ao lado do pároco aparecia às vezes o
sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos
nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto
inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão
era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior
número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os
afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.
Milhado, ou não, o certo é que Brício era
paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se frequentemente
forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia
conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De
fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que
responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro
do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:
- O brejeiro é levado.
Estes termos traduziam a irritação do
sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso
esquecimento.
As vezes que as travessuras de Brício
ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às
punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da
Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um
reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o
repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres
dos dedos do vigário.
Pela manhã, quando aparecia o padre na
sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis
instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma
paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que
chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca
da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos
pombinhos e ao lado do candidato.
O sacristão vingava-se. Resmungava contra
matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se
lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não
deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos
simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha
esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão
esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.
À tarde, já feitas as pazes com o vigário,
Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em
decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos
descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras
horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras
e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.
Uma vez, era ao descair de um belo dia. As
cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As
tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...
Nessa hora alguns campônios contentes
seguiam pela estrada de... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas
mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia
batizar-se.
O préstito caminhava... De repente parou...
Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.
Os campônios olharam em redor, talvez
assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes
de mato rasteiro.
- Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu
passarinho!
Os rústicos que, sem o saber, haviam
afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha
do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.
Entretanto, o menino aproximou-se da sua
armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.
Franziu o senho e pôs-se a olhar
alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que
seguia para a matriz.
Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com
os dentes cerrados.
- Mas não! disse, depois de refletir. Vão
batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.
Brício, pois o caçador não era outro, tinha
formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão
entrava no povoado.
Encaminhou-se este para a casa onde moravam
ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara
alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.
- Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em
casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está
furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...
Brício soltou uma gargalhada franca e
ruidosa:
- Ah! disse ele. Não tiveram sacristão.
Nada mais justo...
O amiguinho do sacristão arregalou os
supercílios com um ar pasmado.
- Não me entende. Não é?... Eu te
explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu
alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram,
levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de
mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o
sacristão... Bem feito! Não acha?
- Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que
os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e
juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...
- Oh! oh! Que logro!
- Sim! mas o Sr. vigário está seriamente
zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!
Brício sumia-se por um lado, quando por
outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.
Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote
dirigiu-se a ele:
- Você viu o Brício?
- Não, senhor, respondeu o menino.
E se afastou do padre, que ficou mordendo o
beiço, ante a mentira do pequeno.
- Este é outro, disse ele, a meia-voz.
Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...
Tinha já Brício chegado à igreja e se
acomodara na torre.
Dentro em pouco avistou, caminho da matriz,
o vigário
Vinha devagar, por causa da sua moléstia.
Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes
apaziguado o sacerdote.
- Bom, disse consigo, ele me há de
avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me
deixa andar quase... Ótima razão!
É a mesma que ele tem para não subir. O
reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais
tarde descerei sem receio...
No princípio de uma cólera, qualquer cousa
que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a
de todo.
Parece que o sacristão sabia disto, que
cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se
para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do
frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que
entrava...
Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um
grito de terror.
Era o vigário C...
Sucedera uma cousa horrível.
O pobre sacristão escorregara para fora e,
fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro
oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.
Brício, com as mãos pregadas na cruz com
uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.
A cruz se ia entortando lentamente. Se
Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.
O ferro começou a rachar-se.
O menino, aterrado, via como avançava a
morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...
O mísero vigário estava fora de si. Tinha
querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício
e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.
- Brício! Brício! gritava.
E o ferro da cruz, primeiro devagar...
depois, rápido... partiu-se.
Daí a pouco estava no adro da Matriz de***
um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um
pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte
sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma
cruz de ferro... Era o sacristão Brício.
A porta da igreja estava aberta. A noite
enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da
alampada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do
moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da
nave uma sombra negra.
Dir-se-ia um espectro...
Mas o espectro falou:
- Malfadada criança!
E depois com entonação soturna.
- Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!
Estas vozes perderam-se pelos recantos do
templo, e a luz da alampada tremulou como em soluços.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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