CAVALEIROS ANDANTES
AO MEU AMIGO J. CAPISTRANO DE ABREU
AO MEU AMIGO J. CAPISTRANO DE ABREU
I
Pode ser que o dia histórico de amanhã,
desfeitas às brisas da madrugada a noite de tempestade que se anuncia no
oriente do futuro, acamada em firme cristalização de paz toda essa fervura
vulcânica de aspirações infrenes que estremecem no subsolo do edifício social
do nosso tempo, destruída a linha das fronteiras, após o desmembramento dos
impérios, como se destruíram os castelos do feudalismo; reorganizando-se a
humanidade sobre uma topografia nova, graças à justiça civil da dinamite,
graças ao direito internacional dos canhões; pode ser que traga o dia de amanhã
da evolução o advento feliz das esperanças realizadas, dos que crêem na
Providência latente dos fatos.
Até ao presente século, serenamente
julgando, triste tem sido a jornada dos homens através da vida. O oásis da
eleição e do venturoso privilégio para alguns; para a multidão indistinta, o
amplíssimo deserto, a marcha forçada do trabalho e do sofrimento, ao sol
inclemente de um céu sem eco para os clamores, sem misericórdia para as
lamentações.
A par dos fatos, como por uma errata de
idealismo, desenvolveram-se as formas da meditação. Teogonias, religiões,
filosofias, propagandas morais, reformas humanitárias, a hipocrisia dos comícios
e as sínteses francamente artísticas da literatura; criou-se um mundo
imaginário, buscou-se ao azul do infinito, na metamorfose dócil das nuvens, os
aspectos consoladores que faltam à realidade rasteira. Surgiram os Heróis, os
Deuses baixaram à terra, para contrastar a pureza olímpica de sua essência com
a grosseria humana das vulgaridades.
Extasiados na contemplação que nos arreda
da natureza crua das cousas, pobres mortais, entregamo-nos facilmente à
história do ideal. Vazadas no molde dos sonhos, as concepções visionárias
encarnam-se; sentimos a ilusão, gozamo-la, sofremo-la, palpamos a sombra,
amamos, adoramos a miragem interior do nosso delírio, desequilibrado o critério
da opinião, doidos que estejamos da anagogia do instinto artístico das almas.
A história é a mesma, desde a conquista de
Roma, desde aquele passado heróico em que o pomo da discórdia confundiu os
deuses na disputa dos homens, até às loucuras cavalheirescas dos cruzados, até
às campanhas mais recentes cm nome das crenças, até às revoluções modernas do
igualitarismo, assopradas pela tuba enfática das proclamações.
Os ideais variam, o engano permanece. Os
mesmos desatinos em nome de princípios diversos.
Primeiro foram as concepções da arte
consubstanciadas com as crenças religiosas; em seguida uma época de transição,
o divórcio dos ideais, delimitados o campo da arte propriamente dita e os
domínios da religião; finalmente, a religião vencida e o ideal artístico em
triunfo.
O princípio, os poemas eram os livros
sagrados; a estrofe era o veículo da prece. Filhas da mesma disposição
espiritual contemplativa, as duas irmãs separam-se. De parte a parte,
exaltam-se, independentes, por muitos séculos, os entusiasmos artísticos e os
entusiasmos religiosos. Os deuses são meros pretextos para os artistas; as
estátuas são meros ídolos para os crentes. Dante escreve a Comédia, o leitor piedoso a diviniza.
Surgem as rebeldias lítero-filosóficas e preparam a última fase que recalcou
para o escuro a rareada legião dos crentes e glorificou os artistas. Ganhou
predomínio a ilusão literária. A retórica foi a alma dos últimos conflitos
históricos. Armou-se o gesto de Mirabeau com o sabre de Bonaparte.
Em nossos dias a frase declina. O livre
exame requintou-se em desalento; não sei que sombrio niilismo preocupa o enlevo
das contemplações humanas. Dir-se-ia que vai naufragar o instinto artístico no
mar das trevas; que a transmigração do ideal baixou progressivamente, da
concepção enganosa das teogonias até à religião dos desesperos. Confunde-se a
necessidade brutal da existência, ananckhe, com a prostração desanimada das
fantasias. Desabam os santuários; a imaginação morre aos pés do industrialismo
ovante.
Indústria é a grande palavra - capital e
servidão, tirania e esbulho. Só a indústria marchou em progresso ao rodar do
tempo, a indústria, que é o egoísmo, o individualismo, contra a solidariedade,
que é poema; o fatalismo da força maior triunfante, o fato positivo,
indiferente à moralidade e à estética; a economia política da iniquidade,
avessa à pragmática do belo e do justo, feições similares da mesma idéia inane.
Às vezes, sucedeu ser tão viva a
exacerbação da fantasia concorrente que a evolução da força das cousas mostrou
ressentir-se. É o caso da caudal encrespada à superfície pela viração em
contrário: no fundo a correnteza é a mesma regular e invencível. Também
Maquiavel ensina, o mestre sem piedade das duras lições, "que vemos em
triunfo os profetas armados e acabando desgraçadamente os propagandistas
inermes. E refere o exemplo de Savonarola. É que os profetas armados triunfam
pelas armas, não pelas profecias. Não vence o justo; convence o ferro. A
justiça é ideal; a força é fato.
Na época presente, entretanto, chegamos à
dissolução. A fórmula da luta pela vida deu carta branca a todos os abusos;
definitivamente poder é poder. Desapareceu mesmo a hipótese dos profetas
armados. Os inermes embucham, quando não fazem, para que não sucumbam, da
profecia um mercado.
Ao passo que a emulação dos tiranos e a
rebeldia crescente dos oprimidos, sem fé, sem esperança, vai espalhando na
atmosfera da civilização o pavor negro de uma expectativa, como não conheceu
jamais a história dos povos.
II
Aos grandes ciclos do Ideal corresponderam
paralelamente, nos domínios do Fato, três espécies de atividade psicológica.
Época das religiões; época das filosofias; época das constituições e dos
códigos. Delírios sucessivos da mesma febre.
Destas crises, a mais duradoura e a mais
grave foi a primeira; período agudo: as Cruzadas, os mais belos dias do
desvario beato da humanidade; personagem típica - S. Luís. A segunda
complicou-se por muito tempo com a primeira até acentuar-se; período agudo:
reforma e guerras de religião; tipo - Lutero. A terceira perdura em
manifestações fugitivas até aos nossos dias: período agudo: Revolução Francesa;
personificação - Danton.
Hoje que, o ideal expira, entramos por uma
idade nova, rumo trágico do futuro à luz de um astro misterioso, em noite de
desolação. Os últimos sonhadores, olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão
desesperando da quarta hora de Justiça de Proudhon.
Estudando sem preconceito a sociedade
moderna e a filiação histórica das datas, verifica-se que, excetuando o esforço
dos tiranos e conquistadores, que recortaram à ponta de espada as linhas
geográficas do mapa-múndi e sedimentaram as camadas sociais, segundo a mecânica
do egoísmo - todas as grandes lutas dos homens nada mais foram que a gênese
ensanguentada de mil vocábulos: nulas variantes fônicas das expressões: Deus,
Verdade, Liberdade, trilogia sinistra da eterna ignorância.
Mas ao artista deve ceder o historiador,
para o estudo das tragédias do Ideal no passado. É a missão contemplativa do
moderno idealismo. Deus, Verdade, Liberdade, são os três cantos da melancólica
epopéia das aspirações humanas, cujos versos de sangue vêm entrelinhando a
história, desde às obscuras tradições do Oriente. À luz da arte erige-se o
severo monumento das audácias, dos desesperos, Ossa e Pelion sobrepostos em
direção ao céu; e a grita desordenada dos entusiasmos e das decepções vibra na
abóbada como uma sinfonia profunda. Ao redor da concepção do Belo e do Justo
agrupam-se os heróis. Cada século faz galgar um certo número a escadaria, e
organiza-se o conjunto peça a peça, avultando com o tempo, harmônico e
admirável.
Suprema Bondade foi a mais sublime criação
do instinto artístico. O Bem é ao mesmo tempo o belo, o justo, o verdadeiro:
Ideal dos ideais. Contra a tirania dos egoísmos, que é o Mal, lavrou este
protesto o coração humano.
Conforme os diversos graus de cultura
intelectual dos homens variou-se a maneira de conceber a Bondade. Para cada
fase do desenvolvimento uma hipótese antropomórfica
- Hércules, Cristo, D. Quixote. Hércules é
a bondade heróica e mitológica; Cristo é a bondade medieval e católica; D.
Quixote é a bondade moderna idealizada na ironia do livre exame. Três imagens
dolorosas, geradas de estranho pessimismo. Hércules tem a púrpura abrasadora de
Nessus; o Nazareno tem a Cruz; o cavalheiro de Cervantes tem o carnaval das
armaduras e o pelourinho implacável da gargalhada.
III
Hércules enche o passado. Concretiza a alma
dispersa das resistências. Vive na Pérsia, no Egito, nas Gálias a tradição
herculana, como símbolo da força propícia contra a força adversidade. Hércules
é o amparo e a defesa. O chão é rebelde e estéril, - Hércules é o sol que cria
a nuvem e a fecundidade. A humanidade está cercada pela conspiração dos
monstros, hostilizada pelas forças ocultas da natureza e pelas sugestões da
maldade, a iniquidade devastadora campeia em auge - Hércules faz a justiça de
Talião. Monstro de Neméia, hidra de Lema, corcéis de Diomedes, touro de Creta,
Anteu, Lacínio, Gerion, Cacus, Buziris, sob qualquer fisionomia que se
manifeste a tirania e a violência,. Q herói a chama a combate. Zombou de Juno,
que era a cólera celeste, e libertou Prometeu, que era o sofrimento humano.
Carregou aos ombros o firmamento, por alívio de Atlas, que era o trabalho
forçado, e destruiu a necessidade cosmegônica, abrindo à expansão ampla do
oceano a clausura do pedrado Mediterrâneo, erguendo às portas do Atlântico
padrões eternos do cometimento - as poderosas colunas.
Missionário do sacrifício, era a lei dos
fados que o herói sucumbisse. Armou-se a intriga maldita do amor da esposa com
a vingança do centauro e Ele foi vencido, o bom, o forte, o justiceiro, o sempre
vencedor - pela traição do Destino. Sofreu como deve sofrer o sol envolvido no
esplendor flamejante da própria glória e, como o sol, vestindo a túnica da sua
tortura, Hércules fez a jornada do dia, caminho do ocidente, atravessando o
teatro das grandes empresas, direito às nuvens sobre o monte, escuras como o
pressentimento dos amores de Iola, e foi pedir sossego à morte na fogueira do
Oeta, simultaneamente incendiada com a rebentação rubra do crepúsculo.
Cristo é a mitologia nova. Veio aperfeiçoar
o mosaísmo no sentido do coração e substituir o ideal fatigado das aras pagãs.
A fatalidade fluvial dos fatos reconquistara o primitivo andamento. Haviam
renascido os monstros do sangue derramado dos monstros. O egoísmo, filho da
Terra como Anteu, ressurgia da última derrota, válido e potente. Era preciso
ensaiar de novo a Redenção do Cáucaso. Nasceu, então, o filho de Maria, por
graça do Espírito Santo, como outrora o filho de Alcmene por obra de Júpiter.
Repetiu-se o sagrado mistério da encarnação do Ideal na humanidade: veio à luz
o inimigo da serpente do Gênesis, esmagada como as de Juno.
Mas estava transformado o mundo. Começava a
civilizar-se o mal, perdida a feição rudimentar de brutalidade da natureza
nascente, vegetando outro, sobre a geologia tranquila do planeta constituído;
entrava até a decair a grandeza romana. O novo campeão, em vez da hercúlea dava
teve o ânimo da propaganda e um ramo de oliveira. Paz entre os homens na terra,
como a beatitude dos anjos na altura. Guerra ao demônio apenas, com as armas da
fé e da graça. Crer e esperar. Guerra ao demônio sensualidade, guerra ao
demônio ambição - inimigos da ventura calma do bem. Abaixo os altares do terror
e do sangue! Façamos a eucaristia incruenta do amor.
Arranquemos a espada às mãos da velha Justiça,
em nome da Justiça nova do perdão. Contra as vaidades, desprezo; contra as
tiranias, paciência; contra as injúrias, silêncio: Jesus tacebat. Amor ao homem por amor do Ideal
divino.
E espalhou-se pelo universo a doutrina do
pregador Nazareno; ora, terrível de energia como no evangelho de ferro de São
Mateus, com o estribilho tenaz dos prantos e o estridor dos dentes e o nervoso
conselho: quem tiver ouvidos - ouça! ora, triunfal e radiante, como em São
João.
À semelhança do seu antecessor da Grécia
pré-histórica, Cristo acabou no suplício. Falharia, entretanto, a verdade do
poema humano dos séculos, se, vitimados os heróis, não fosse salva a apoteose
da Idéia. O Bem é imortal. Hércules ressurge:
Quem pater omnipotens inter cava
nubilaraptur Quadjugo curru radiantibus intulit astris.
Cristo ressurge: Ascendo ad Patrem meum, ad Patrem
vestrum. Cristo para a
Bem-aventurança eterna do Paraíso; Hércules para o consórcio de Hebe, a eterna
juventude.
D. Quixote é a decepção; é o retrospecto
cômico da cavalaria andante de todos os tempos. Diante do descalabro miserando
da angelitude prática, o livre exame fez a sátira do riso.
Colhei no ar a psicologia abstrata dos
antigos empreendimentos, o espírito desolado que chora talvez na noite
murmurosa dos salgueiros, no segredo dos pinhais dolentes, espectros de luar,
que falam de Yorick na sombra e vão sobre as alvas campas; inspirai, depois, o
sopro dessa vida às articulações crepitantes de um manequim de fragilidades;
carregai os heroísmos todos das lendas mortas ao lombo do Rocinante, magro como
a abstinência, fraco como os inocentes; dai-lhes por arma o lanção impossível,
por glorioso arrebique o elmo rútilo de Mambrino; animai essa criação com a
investidura galvânica do gênio de Cervantes. Agitai a virtude num cenário de
anacronismo e desastramento; ao lado, como uma tinta de realce: a figura obesa
de Sancho, chamando pela barriga, em contraposição à idealidade esgalgada do
enamorado senhor e amo. Pronto o poema moderno das vinditas e dos desagravos, a
epopéia atual da solidariedade.
Hércules é o ideal forte, animado pela
exuberância audaz da adolescência virgem, do espírito embriagado de sonho.
Hércules vence sempre, com a onipotência positiva do braço. Cristo é uma
concepção hesitante já, como salteada de suspeitas filosóficas. Cristo transige
com a ordem das cousas opressiva, e iníqua; fantasia de valor a fraqueza,
denominando-a paciência, a derrota faz vezes de triunfo com
o rótulo de sacrifício, humilhação chama-se humildade, impotência finge de superioridade;
o seu Reino não é deste mundo; os últimos serão os primeiros. D. Quixote
significa, em derradeira apuração, a crítica da bondade cristã e da bondade
hercúlea. Cervantes fez obra de maldição, contando talvez escrever um livro
desopilante de galhofa.
No âmago do caráter nenhuma divergência
entre os protagonistas do romance histórico da Moralidade.
Quixote quer a Redenção dos homens como o
Nazareno, como Hércules; por ela combate, por ela morre. Quer a consagração da
mulher, estímulo nobre do seu brio; seria capaz de salvar Hesione, como o herói
grego, se encontrasse O monstro da Frígia, e proporia a santificação do
matrimônio, como Cristo, se não achasse a cousa feita no seu século. Tal qual o
paladino mitológico, ele declara guerra aos gigantes; tal qual Cristo, prega e
exalta as doutrinas da perfeição. Estote
vos perfecti, reza o
Evangelho; Dichosa edad, suspira Quixote, y siglos dichosos aquellos a quien
los antiguos pusieran nombre de dorados... entonces los que en ella vivian
ignoraban estas dos palabras de tinyo e mio.
As próprias aventuras da vida se
assemelham. Há o prestigio feminino de Onfale, de Madalena; há o madrigal
castíssimo da Sin par
Dulcinéa. Se Hércules tem as
ovações da Traquina, se Cristo tem as palmas da Páscoa de Jerusalém, Quixote
tem a entrada em Barcelona. Um tem o retiro contemplativo da Lídia, outro os
quarenta dias do deserto; Quixote tem a penitência platônica da Sierra Morena.
Baixam aos infernos Hércules e Jesus Cristo; Quixote afronta a cueva de Montesinos.
O mesmo amor os absorve, do mesmo amor são
mártires. No critério moral, o mesmo erro os vitima. Pecam por anacronismo os
três. Ao anacronismo retrospectivo de D. Quixote, que perde a noção de
atualidade para entregar-se à imaginação das medievas cavalarias, corresponde o
anacronismo prospectivo dos cavaleiros andantes da Grécia e da Judéia,
desvairados até ao extremo pelo idealismo da corrigenda e do aperfeiçoamento.
Vai-lhes o coração através da existência real, como um fantasma, braços
abertos, olhos no céu, sorrindo aos astros...
O anacronismo prospectivo é sério, respeita
a gravidade dos heróis, deixa-lhes a pose de tragédia, aprumada e veneranda;
o retrospectivo entrega o herói às cambalhotas e aos desastres da loucura
patente.
O elemento real do humorismo de Cervantes é
a extemporaneidade da segunda espécie. O seu personagem contempla o sétimo céu
dos antigos sonhadores. O êxtase de Quixote anda de costas. Daí os trambolhões
e a triste figura.
Não se trata de um anacronismo superficial
de fardamento. Como encenação de ridículo isto já é uma utilidade eficaz.
Cristo, por exemplo, que nos entrasse agora pela cidade em figurino de cartilha
a evangelizar as massas de cima do burrico de Betphage, de dentro de uma
amostra das alfaiatarias da Galiléia. No batalhador manchego a caricatura é
mais odiosa e mais profunda. O escritor o concebe em alma e vestuário na idade
de ouro do cristianismo, ao tempo em que a espada era a força, mas o punho da
espada era a cruz. E toda a memória sagrada daquelas eras vive pungente nos
traços carregados do grotesco; e com as vaias de riso que envolvem o herói,
roda de mistura todo aquele sonho sublime de virtude ultrajado pela nossa
compaixão.
O livro é cruel. Não foi poupado ao pobre
louco nem o suplício final da desilusão: fitar do leito de morte a vacuidade da
sua existência de nulos combates e esforços vãos. Ele viu no terrível momento,
que vivera enganado e triunfara sonâmbulo; que as palmas de Barcelona valiam
antes o convulso alarido da populaça do Ecce
Homo. Só então morreu, sob as
lágrimas da sobrinha, sob o olhar sereno do cura, para reviver em espírito, da
vitalidade invencível do Ideal, na pátria azul altíssima dos que sonham.
D. Quixote é o símbolo moderno do Bem.
Todos os ideais vão passando. D. Quixote fica. Nesta idade de pessimismo e de
ironia, vive; porque D. Quixote é o Ideal-sarcasmo. Sua filosofia ri, como se
nascesse de Voltaire.
No fundo do cárcere a que o levara a
ingratidão dos homens e a calúnia, Cervantes quis forçar às alegrias o honesto
despeito de uma alma cruciada. Quis compor um poema de risos e produziu um
libelo de vingança. Não há resistir à lei de unidade lógica dos cérebros. Outra
não podia ser a resultante dos desesperos concentrados de uma vida inteira de
heroísmos esquecidos e sacrifícios, outra a explosão do seu espírito soberano,
gênio e bravura, acanhado nos melhores dias sob o favor de Mecenas que lhe
impunha a gratidão como uma libré de casa nobre. Vítima do egoísmo e da
prepotência, descrendo talvez, prelibara os desgostos de uma sociedade de um
século por vir, em que não fosse mais possível o recolhimento e o amparo de uma
instituição de caridade como ainda ele alcançou. O poema nasceu assim, saturado
de fel, o molho das agonias, tão grato ao paladar moderno dos espíritos.
D. Quixote é nosso contemporâneo. E o
simbolismo será tanto mais expressivo, tanto mais presente, quanto mais espessa
for a atmosfera moral dos desânimos, quanto mais longe forem os tempos da
vesânia generosa da humanidade.
No Vaticano, metrópole vastíssima e
brilhante da Crença, onde se encontra também por toda a parte estampada a visão
do Cristo na Cruz, vencido e agonizante, ou então feliz e transfigurado na
glorificação fácil do colorido, exibe-se a mais bela memória de Hércules que
nos deixou o passado. Lá está, respeitável ainda e temeroso, o Torso de
Apolonius, o torso mutilado do Herói, vergando num desespero de musculatura,
por arrancar-se à paralisia de pedra em que o esculpiram: sem pernas, sem
braços, como o despacharam para a posteridade - o Leão mitológico da Justiça
enjaulado na impotência da morte.
Triunfem as panacéias sociológicas, quando
em remoto futuro, lavrada a superfície do globo pelo ferro de muitas
civilizações, São Pedro e o Coliseu confundidos na fraternidade niveladora do
acabamento - curioso há de ser a melancolia do investigador, comparando no
Museu das Antiguidades, em meio dos destroços restos da velha Arte, o ideal de
um tempo em que a Bondade era Hércules, o Torso, e o extenuado simbolismo do
cavaleiro de Cervantes.
E a humanidade da época descerá, colhendo
as asas de anjo da regeneração, a estudar nesse paralelo um terrível capítulo
de história moral, e há de aprender quantas dores suaram os séculos para que
perpetuamente não fosses, oh! criatura! ao lado das imagens dolentes da Suprema
Bondade - a imprudência apaixonada de Dejanira, a vacilação covarde de Pilatos,
a gana esfaimada do Pausa, trincando ao espeto a gorda vitualha de Camacho.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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