
CARICATURAS REAIS
UM VIZINHO ORIGINAL
UM VIZINHO ORIGINAL
Eu tive um vizinho original.
Era magro, comprido, poeta e tísico, tudo
em grande dose. Poeta da velha idolatria das brisas, tísico do terceiro grau.
Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando para
baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e
interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a
frente, com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos
fúlgidos arregalados, quem o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de
justiça, por causa do olhar extraordinário, e ver-se-ia reduzido a não formar
opinião sobre aquele estranho transeunte, malvestido, delgado, célere, como se
tivesse medo de chamar atenção, fugitivo, quase fantástico.
O nosso poeta tinha uma filha moça, digna
filha! Alta como o pai, como ele magra, alvíssima, talvez tuberculosa,
provavelmente poetisa. Representava os restos de uns amores do poeta que deram
em casamento, de um casamento que dera em droga.
Vivia das esperanças fugazes de uma cadeira
de professora pública que lhe prometiam, havia anos, e que lhe não davam nunca.
Além disso, tocava piano.
Tocava piano não exprime bem. A donzela, repetia,
várias vezes ao dia, repisava, remola, uma certa e determinada música,
invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada, medonha!
O piano era um memorável tacho, de não sei
que fabricante, diabólico. Produzia sons novos, inauditos, fenomenais, que
davam idéia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução, harmonias
assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio,
parece que a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de
jurar que aquele piano estava tísico, tão perfeitamente ético como o magro
vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas escarradas... Ninguém imagina!
Deste monte de horrores, o pianista tinha a
habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e desesperadora.
Era um prodígio desafinado de doçuras,
enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de fá sobre pieguices requebradas e
sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na
música da filha, o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra
sentimentalidade dos vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a
enjoar de doçura.
O poeta adorava essa música. Alimentava o
seu estro na beterraba e na cana daquele açúcar. Fecundada por essa inspiração
de confeitaria, o referido estro dava à luz estrofes idiliais, onde o leite e o
mel corriam pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar
alinhados como na Serra dos Órgãos.
Estas obras-primas de lirismo lacrimejante
e apaixonado apareciam, como sonâmbulas, a bracejar desvairadas, pelas colunas
ineditoriais das folhas.
Não se calcula o sacrifício que se impunha
o trovador para exalar em público, por glória de seu nome, os suspiros de sua
alma a seis vinténs a linha.
Um belo dia o piano calou-se. Mau agouro! E
o poeta não saía à rua...
Quando já a vizinhança se dava parabéns,
pelo feliz desaparecimento do tal piano e da tal música, eis que de novo
ressurge a melodia!
Desta vez, custava-se a ouvir. As janelas
fechadas da casinha do poeta cobriam a música com o abafador de uma espessa
surdina.
Nunca me pareceram tão profundamente
irritantes aqueles sons. Possuíam, então, uma ternura estranha, pungente,
revoltante! As notas não cantavam mais nem suspiravam - estertoravam. Era como
uma série arquejante de derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e
interminável.
Fazia raiva aquilo! Terrível conspiração
daquela pianista com aquele piano, daquela música com aquelas vidraças
descidas... para me darem cabo dos nervos naquele dia!
Felizmente, a agonia acabou. A música
subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de chofre, como se lhe
houvessem faltado as cordas do piano.
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No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida.
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No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida.
E adormecera o grande sono, ninado por
aquela música, a dulçurosa irmã do seu estro.
Lirismo e tísica, escreveu o médico na
certidão de óbito.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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