I
O tio Paciência era
um pobre sapateiro remendão, o qual ganhava honradamente o pão de cada dia, mete
que mete a sovela e puxa que puxa o fio, em um portal de Madrid, e devia o apelido
por que era conhecido à resignação com que sempre tinha sofrido os muitos
trabalhos, que o Senhor lhe havia dado.
Ao tempo da
constituição de 1820, era já rapaz dos seus quinze ou dezesseis anos, mas tinha
a inocência de uma criança de oito, e como ouvisse a cada passo dizer que todos
os homens eram iguais, perguntou ao mestre se aquilo seria verdade.
— Não acredites nessas
cousas, lhe respondeu o mestre. Só no céu é que os homens são iguais.
Sentiu o rapaz que
não acontecesse outro tanto na terra, mas consolou-se com a idéia de que o eram
no céu, e quando algum freguês da loja convidava o mestre para beber uma pinga
na taberna próxima, dizia com os seus botões o pobre aprendiz:
— Pena é que não sejamos todos iguais na
terra, como sucede no céu, porque se assim fosse, por certo que o freguês me
não diferençaria do mestre, e, como ele, iria eu também agora à taberna beber a
minha pinga; mas, acabou-se... paciência... no céu seremos todos iguais.
Passados dois anos,
coube-lhe a sorte do recrutamento; então mais do que nunca teve ele motivo para
lamentar que os homens não fossem iguais na terra como no céu, por isso que na
sua companhia havia soldados distintos, e cabos, sargentos e oficiais, que
provavam ser verdade aquilo que o mestre lhe tinha dito acerca da igualdade humana;
porém consolava-se ainda o pobre rapaz, pensando que no céu se acabariam as distinções,
e todos seriam iguais.
Deixou de servir o
rei, e aproveitando-se do pouco que sabia do ofício de sapateiro,
estabeleceu-se num portal, e ali passou o resto dos seus dias, conformando-se
com as privações que sofria, na esperança de ir para o céu e gozar então dessa
igualdade, que não encontrara na terra.
No andar nobre da
casa, cujo portal ocupava, vivia um marquês, que por certo muito o houvera
magoado com o espetáculo da sua opulência, se não fora um excelente homem, e a
não ser tamanha a sua paciência, e sobre tudo tão arraigada no seu coração a
esperança de lhe poder dizer um dia no céu: “meu amiguinho, aqui todos nós
somos iguais.”
Não era porém só o
marquês que lhe fazia sentir, que não fossem todos os homens iguais na terra;
até os seus amigos mais íntimos queriam diferençar-se dele. Estes amigos eram o
tio Mamerto e o tio Macário, homens de tão boa conduta, que não podia o tio Paciência
viver sem a sua honrada companhia.
O tio Mamerto tinha
uma paixão desenfreada pelos touros, e passava por ser muito entendido em
matéria tauromáquica.
Quando, no reinado
de Fernando VII, se criou uma escola para ensinar esta ciência, esteve o bom do
homem quase a ser nomeado lente catedratico da faculdade, e
este precedente era o bastante para que ele se considerasse superior ao tio Paciência,
o qual, reconhecendo esta superioridade, se consolava pensando que, se o seu
querido amigo e ele não eram iguais na terra, o seriam por certo no céu.
O tio Macário era
muito feio, mas casou com uma mulher lindíssima, porém levadinha da breca.
Ao cabo de vinte anos
de um viver amargurado, morreu-lhe o demônio da mulher, e o pobre homem ficou
tão descansado que lhe parecia ter entrado no céu; passados tempos, enamorou-se
de outra rapariga, que não ficava a dever nada à primeira, e casou segunda vez,
apesar de todos os esforços que o seu amigo, o tio Paciência, fez para lhe
tirar isso da cabeça. Ora, como o tio Paciência nunca tinha conseguido que as
mulheres se agradassem dele, ao passo que do tio Macário se agradavam aos
pares, julgava este ter certa superioridade sobre o primeiro, que, da sua
parte, não deixava também de a reconhecer, e que deveras se teria afligido com
isso, se não fora a lembrança de que o seu bom amigo e ele seriam iguais no céu,
já que na terra o não podiam ser.
O tio Mamerto era
capaz de ir até ao fim do mundo para assistir a uma corrida de touros; tanto
assim, que até costumava dizer: “Parece-me que trocava de bom grado a glória
eterna por uma boa tourada”, ao que o tio Paciência replicava sempre, agastado:
“Homem, não digas heresias, que não vá Deus castigar-te.”
Um dia em que os pássaros
caiam das árvores, assados pelo sol, havia em Getafe uma corrida de garraios; o
tio Mamerto, foi vê-los, à pata, segundo o seu costume, e, de volta a
casa, acamou com uma febre, que o levou desta para melhor vida.
No mesmo dia estava
muito mal, na cama, o tio Macário, por causa de uma tremenda coça que a mulher
lhe tinha dado, porquanto se a primeira mulher lh'as dava grandes, a
segunda não lhe ficava atrás. A mulher, que nunca perdia a ocasião de lhe comunicar
uma boa notícia, deu-se pressa em lhe participar, que o tio Mamerto tinha esticado
a canela, e ouvindo isto, o pobre Macário, que já não estava para muitos
sustos, esticou também a sua.
Como eu já disse,
não podia o tio Paciência viver sem os seus dois amigos, porque lhes queria
muito. Estranhando que, em todo o dia, eles lhe não tivessem aparecido para
palestrar um pouco e fumar um cigarro na sua companhia, quando à noitinha
deixou o trabalho, foi procurá-los, e soube então que ambos tinham morrido.
Essa notícia causou-lhe um abalo enorme, e, naquela mesma noite, tomou atrás deles
o caminho do outro mundo, com a grande consolação de que ia finalmente para
onde todos os homens eram iguais.
Toda a vizinhança
sentiu muito a morte do tio Paciência, pois todos depositavam tamanha confiança
na sua honradez e no seu caráter dócil e serviçal, que, quando careciam de
trocar algumas notas do banco de Espanha, encarregavam disso o tio Paciência,
que era capaz de morrer arrebentado, para dar conta da incumbência.
Na manhã seguinte à
morte dos três amigos, o bruto do criado particular do marquês, quando entrou
no quarto, teve a imprudência de dizer a seu amo que o sapateiro do portal
morrera, ao saber que dois amigos seus tinham faltado quase de repente. E como
o marquês era um fidalgo muito apreensivo, e corriam uns certos rumores de
cólera em Madrid, assustou-se tanto com a saída de sendeiro do bruto do criado,
que, poucas horas depois, era cadáver, com grande desgosto da pobreza do
bairro. E por todas as partes se se ouvia dizer: “Estes homens, assim, nunca
deviam morrer.”
O tio Paciência
empreendeu a jornada do céu, muito contente com a esperança de gozar da glória
eterna, de viver em um mundo onde todos os homens eram iguais, e
finalmente de encontrar ali os seus queridos amigos Mamerto e Macário. Com
relação porém a este último pensamento não deixava ele de ter suas duvidas,
porque dizia lá para os seus botões:
— E se lhe não querem abrir as portas do céu?!
Eles foram sempre homens de bem às direitas; mas o demônio da paixão de Mamerto
pelos touros, e a tolice do Macário de casar segunda vez, tendo-se saído tão
mal da primeira, fazem-me recear que lhes dêem com a porta na cara.
Para sair um tanto
de duvida, perguntou a um viandante se tinha visto passar por ali dois sujeitos,
com estes e aqueles sinais; e como ele lhe respondesse afirmativamente, prosseguiu
o tio Paciência no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.
O caminho do céu era
escabroso e áspero, e essa era por certo a razão porque nele se não encontrava
senão gente pobre e habituada à fadiga.
Impressionado o tio
Paciência por não ver nenhum figurão, entre tantos caminhantes,
dizia, de si para si:
— Não admira que os
homens ricos não façam esta viagem, porque teriam de fazê-la no cavalinho de S.
Francisco. Se pudessem empreendê-la de carruagem, os diabos me levem, se não
víamos por aqui mais trens do que no Prado e na Fonte Castelhana.
O tio Paciência
interrompeu as suas reflexões ao ver aproximar-se, vindo do lado do céu, um
homem, que chorava como um bezerro, e dava mostras da maior desesperação. Era
nada mais nem nada menos do que o tio Mamerto.
O tio Paciência
sentiu uma pancada no coração, anunciando-lhe alguma desgraça, quando
reconheceu o seu amigo.
— O que tens tu, homem? perguntou ele ao tio
Mamerto.
— Que demônio hei de eu ter! Se eu não fosse
um bruto, como não há segundo, não me fechavam para sempre as portas do céu!
— Mas então como foi isso? explica-te com a breca,
que me tens o coração em
talas. Aposto que não foi senão por causa da maldita paixão
pelos touros.
— Parece-me que
concorreu.
— Vamos, por quem és, conta-me o que se
passou.
— Cheguei à portaria do céu, e encontrei ali uma
porção de gente, que estava à espera de vez para entregar os passaportes para o
outro mundo. O porteiro, que visava os papéis, com a sua grande calva à mostra,
e o seu molho de chaves na mão, levava a coisa com toda a pachorra, e moía-os com
perguntas, primeiro que permitisse a entrada. Eu, que, como é bem natural,
estava morto por me ver lá dentro, disse com os meus botões: — Este velho, com
os seus vagares, é capaz de me conservar aqui de fora até à noite. Pois deixa
estar, que se te pilho distraído, atiro comigo lá para dentro, ainda que depois
me cortes uma orelha, como fizeste ao pobre Malco. Estava eu a pensar neste
expediente, quando vejo o porteiro armar uma questão com um pobre diabo, a quem
não deixava entrar, com o pretexto de ter sido apaixonado de touros. Aí temos
nós os touros! disse eu, ao ver aquilo. O velhote é capaz de me fazer esperar
uma eternidade, e por fim, se chega a saber que também fui afeiçoado às
touradas, nega-me a entrada, como aconteceu com o outro. E que faço eu? Assim
que o porteiro deu uma volta: zás! raspo-me lá para dentro. Já
dava graças a Deus pela minha resolução, e vai senão quando o porteiro, dá-lhe
na cabeça contar quantos estavam na portaria, e conhece que lhe falta um.
— Falta-me aqui um!
grita enraivecido, e aposto uma orelha que não é senão o madrileno. Ou ele não
fosse de Madrid, o maroto, que se escoou lá para dentro como um gato: deixa
estar que já vamos ajustar contas!
— Ó meu senhor,
disse da banda um adulador, que tinha assim jeitos de cortesão, quer que eu
lh'o saque de lá para fora por uma orelha?
— Deixemos-nos de orelhas,
respondeu o velhote; e chamando uns músicos, a quem falava com muito agrado,
porque parece que lhe tinham sido recomendados por Santa Cecília: Toquem lá a
música da saída do touro!
Os músicos começam
de tocar, e eu (sempre sou muito bruto!) ao ouvir aquele toque, julgo que
há corrida de touros na portaria, e saio muito lépido a vê-la; de repente, o
porteiro fecha a porta e deixa-me ficar de fora, com uma cara de palmo e meio,
dizendo-me:
— Vá já para o
inferno, seu meliante, que uma paixão por touros como essa, não pode Deus
perdoá-la.
E aqui tens tu,
querido Paciência, como eu vou caminho do inferno por causa da minha maldita
mania pelas touradas!
O tio Paciência
prorrompeu em amargo pranto ao ver a infelicidade do seu velho amigo, e esteve quase
a pregar-lhe um sermão, mas não o fez por se lembrar de que era pregar no
deserto; ambos continuaram, por último, o seu caminho; o tio Paciência o do céu,
que era costa acima, e o tio Mamerto o do inferno, que era costa abaixo.
— Querem ver que também me acontece alguma na
portaria? O tal senhor porteiro tem um geniozinho endemoninhado!
Isto dizia o tio Paciência,
seguindo sempre o seu caminho, quando avistou outro homem, que vinha do lado do
céu. Este não se carpia, nem se arrepelava; trazia porém a cabeça baixa, e
denotava profunda tristeza.
— Esperem! disse o tio Paciência. Os diabos me
levem se aquele não é o tio Macário! Pois que? Não é senão ele!
Com efeito, o tio Macário
era o da cabeça baixa.
Os dois amigos
abraçaram-se comovidos.
— Tu por aqui, Paciência! disse o tio Macário.
Para onde vais, homem?
— Ora, para onde hei de eu ir? Vou para o céu.
— Duvido muito que lá entres.
— Então porque?
— Porque é dificílimo entrar lá.
— E em que consiste a dificuldade?
— Consiste em ser o porteiro o velho mais
caturra, que eu tenho visto. E para prova, basta o que se deu comigo.
— Conta depressa.
— Uma frioleira! Chegamos, eu e outro, à porta;
chamamos, e aparece-nos o porteiro, com a sua grande calva e o competente molho
de chaves na mão.
— Que é o que
querem? pergunta ele.
— Essa não está má!
o que havemos nós de querer senão entrar?
— Você é casado ou
solteiro? pergunta o velho ao meu camarada.
— Casado, responde
o tal sujeito.
— Nesse caso pode
entrar, que basta essa penitência para um homem ganhar o céu; e isto por
maiores que sejam os pecados, que haja cometido.
E o meu companheiro
entrou lá para dentro.
— Cáspite! disse eu
com os meus botões; se aquele ganhou o céu por se ter casado uma vez, com mais
razão o devo eu ter ganho por me haver casado duas. E larguei atrás do meu
companheiro.
— Onde vai o
senhor? perguntou o porteiro, detendo-me por uma orelha.
— Homem, o senhor
deve estar farto de o saber! Vou para o céu.
— É casado ou
solteiro?
— Casado duas vezes
à falta de uma.
— Duas vezes?!
— Sim, senhor, duas
vezes.
— Pois vá para as
profundas do inferno, que tolos desse lote não têm entrada no céu.
E aqui vou eu,
amigo Paciência, caminho do inferno! São coisas que só a mim acontecem!...
— É bem feito, disse o tio Paciência, entre
compadecido e indignado da parvoíce do seu amigo. Não te dizia eu que não podia
obter perdão de Deus quem duas vezes se casasse?
O tio Paciência já
não ia muito satisfeito e tranquilo, ao aproximar-se das portas do céu, porque
as notícias que recebera do geniozinho do tal porteiro, eram, na verdade, para
intimidar o mais pintado.
— Vamos, tio Paciência, dizia ele, é preciso
que não desmintas, nesta ocasião, o apelido que te puseram, porque, se consegues
catequizar o porteiro, colas-te lá dentro, e depois é que já ninguém te dá
volta. O velhote é esquisito de gênio, caturra e curioso como todos os
porteiros... Mas também, deve a gente lembrar-se de que o pobre do homem é tão
velho, que já não pode com os calções, e devemos ser indulgentes para com
os velhos como para com as crianças, porque os extremos tocam-se. Demais, a paciência
é uma virtude, que o próprio Jesus recomendava ao apostolo S. Pedro, como se vê
da seguinte cantiga:
Era S. Pedro na calva
perseguido do mosquito,
e o Mestre lhe dizia:
— Tem paciência, Periquito!
perseguido do mosquito,
e o Mestre lhe dizia:
— Tem paciência, Periquito!
Ao terminar estas reflexões, avistou o tio Paciência
as portas do céu, e estremeceu de alegria, lembrando-se de que estava já a meio
quilômetro de Distância do mundo onde todos os homens eram iguais.
Chegou finalmente à
portaria, e viu que não havia lá viva alma, o que deveras lhe agradou, porque
assim não se expunha a morrer arrebentado, como quando ia trocar notas ao banco
de Espanha.
Deu uma aldrabada
pequena na porta, e um velho, que não tinha um pelo na cabeça, abriu o postigo
e perguntou-lhe:
— O que quer você daqui?
— Ora, o Senhor lhe
dê muito boas noites, lhe tornou o tio Paciência, com a maior humildade,
tirando o chapéu. Como passou? Passou bem?
— Muito bem, muito obrigado. Mas o que queria
o senhor?
— E a senhora e os meninos estão de saúde?
— Homem, despache daí, diga o que quer.
— O senhor não tem senão desculpar... mas...
nada... eu... vinha ver se o senhor me deixaria entrar.
— Sente-se aí, nesse banco, e espere que venha
mais gente, que não se pode andar sempre a abrir e a fechar esse maldito
portão, que é mais pesado que um marido jogador.
— Está bem, senhor, essa é boa; faça favor de
perdoar.
— Não há de quê.
O velhote fechou o
postigo, e o tio Paciência, a quem as últimas palavras, que ouvira, deram alma
nova, sentou-se num banco, e começou o seguinte solilóquio, para passar o
tempo:
— O tal senhor
porteiro é realmente um grande caturra. Quem diabo podia supor que o homem se
esquentaria por eu o cumprimentar como Deus manda! Mas apesar de ter o gênio um
tanto assomado, bem se conhece que é um santo. Pois, senhor, esperemos aqui, no
banco da paciência.
Estava o tio Paciência
entretido a apertar um cigarro, quando, ouvindo uma tremenda aldabrada na
porta, que por pouco a fazia em hastilhas, ergueu a cabeça, e viu então que a
pessoa, que com tanta arrogância chamava, era nem mais, nem menos, que o seu
visinho marquês.
— É melhor bater com a cabeça! gritou de
dentro o porteiro, ao ouvir aquele barulho. Quem é o bruto que chama assim?
— O Excelentíssimo senhor marquês de Pelusilla,
grande de Espanha de primeira classe, cavaleiro de todas as ordens criadas e
por criar, senador do reino, etc., etc.
Mal isto ouviu, o
porteiro abriu de par em par a porta, quebrando pelo espinhaço com muitas reverências,
e exclamando:
— Perdoe v. exc.ª
se o fiz esperar algum tempo, mas... é que eu não supunha, que tivéssemos por
cá tamanha honra. Queira v. exc.ª entrar, que, pela balburdia que
lá vai por dentro, é de crer que já tenha corrido a notícia de que temos por
estes bairros o cavalheiro mais ilustre e mais rico de toda a Espanha.
Com efeito o céu estava
alvoroçado com a chegada do marquês, para o qual começava a improvisar-se uma
recepção esplendida. Repicavam os sinos, e os foguetes cortavam o ar em todas
as direções; já não havia uma varanda, nem uma janela de onde não pendesse um
cobertor de damasco, ou quando menos uma colcha de chita, modesta, mas vistosa.
As imprensas vomitavam versos (ih! que nojo!) em louvor do marquês; os garotos esganiçavam-se todos
a dar vivas a sua excelência; as virgens largavam a costura, e vestindo-se de
branco, e pondo na cabeça a sua grinalda de flores, lançavam mão da lira, e
tocavam e cantavam como desesperadas; desde as charangas das ruas até a
orquestra do teatro real, todas as músicas faziam ouvir as suas harmonias;
em suma, era tudo festa, jubilo e regozijo. Até o próprio porteiro, quando
voltou a fechar a porta, deu um pulo de contente, exclamando:
— Bravíssimo! Hoje é dia de atirar uma cana ao
ar!
— Sim, como não atires a cabeça!... rosnou por
entre os dentes o tio Paciência, indignado com o que estava presenciando.
Repetiam-se lá por
dentro as manifestações de alegria, e o estrondo dos festejos, e o tio Paciência,
que assistia àquele entusiasmo, continuava nestes termos o seu solilóquio:
— E esta!... Ainda
me custa a acreditar o que por aqui vai com a chegada do marquês! Com que,
passo toda a minha vida a sofrer com santa paciência os trabalhos e humilhações
da terra, imaginando que no céu todos os homens são iguais, e que, por
conseguinte, me verei aqui livre de todos os meus pesares e apoquentações, e no
fim de contas, chego às portas do céu e recebo logo a prova mais irritante de
desigualdade, que pode imaginar-se! Com que então, aqui, como na terra, a mim,
porque sou um pobre sapateiro, fazem-me estar, como um espantalho, à espera
na portaria, e ao marquês, só porque é marquês e rico, e por vir carregado de
cruzes e calvários, abrem-se-lhe, de par em par, as portas, e
recebem-no com repiques de sinos, com foguetes, músicas, versos, e colchas de
seda nas janelas!... Isto realmente é para fazer ferver o sangue nas veias a um
santo!... Porém, paciência, snr. Paciência!... Se consigo afinal entrar lá para
dentro, o que já me vai parecendo bem difícil, posso reputar-me feliz, porque ali
deve passar-se divinamente, a julgar pelo pouco que vi, quando o velho deu
passagem ao marquês, e pela baforada, que sai, quando abrem ou fecham a porta
ou o postigo.
O barulho que este
fez ao abrir-se, tirou o tio Paciência das suas meditações; fez-se ver a calva
do porteiro, o qual vinha examinar se já havia gente reunida, à espera, na
portaria.
— O que faz você aí? perguntou o porteiro,
reparando no tio Paciência.
— Senhor, respondeu humildemente o tio Paciência,
estava esperando...
— Se as lebres
esperassem tanto!...
— Como o senhor não aparecia...
— Tem razão, tem... são tantas as coisas em
que tenho que pensar, que de todo se me varreu da idéia... Eu vou já abrir,
amigo. Ora!... mas porque não chamou por mim, homem de Deus?!...
— O senhor bem vê que... como sou um pobre
sapateiro...
— Qual sapateiro, nem qual cabaça! aqui no céu
todos os homens são iguais.
— Deveras?! exclamou o tio Paciência, dando um
salto de alegria.
— Pois, então!... Não faltava mais nada senão
andarmos aqui com categorias! Isso é bom lá para a terra! Vamos, entre cá para
dentro.
O porteiro nem por
isso abriu toda a porta, como quando entrou o marquês, mas o suficiente para
que pudesse passar um homem. O tio Paciência acercou-se da cancela,
lançou um relancear d'olhos lá para dentro, e deteve-se ali, dolorosamente
surpreendido. As virgens não largavam a costura, nem os rapazes saiam da escola;
não havia uma triste sineta que tocasse; os foguetes não rasgavam as
nuvens; as músicas não deixavam ouvir as suas harmonias; nem sequer uma pobre
colcha de chita adornava as janelas, nem tampouco as imprensas vomitavam
versos!...
O porteiro, que não
tinha nada de tolo, adivinhou o doloroso espanto do tio Paciência, e acudiu a
desvanecê-lo, dizendo-lhe:
— Que quer isso dizer, homem? Então fica para
aí pasmado, em vez de entrar cá para dentro?.
— Não me disse o senhor, ainda há pouco, que
no céu todos os homens eram iguais?
— Disse, sim senhor, e daí?...
— Então... como é que ao marquês...
— Homem, você se não é tolo, parece-o! Pois
não leu na sagrada escritura, que é mais fácil entrar um camelo pelo buraco de
uma agulha do que um rico no céu?...
— Não, senhor, não sabia isso.
— Pois pode acreditar que é a pura verdade.
Sapateiros, ferreiros, lavradores, mendigos, gente, em suma, farta de trabalhar
e de padecer, chega aqui a todo o instante, e não temos que estranhar a
sua chegada. Já outro tanto não acontece com os ricos e os fidalgos; passam-se séculos
sem vermos o focinho a um figurão, como esse que veio hoje, de
modo que, quando algum nos aparece por cá, anda tudo numa poeira! Ora, venha,
ande lá para dentro, que já é tempo de descansar.
O tio Paciência
transpôs o limiar da porta, e não podendo com a alegria, que o dominava, caiu
de joelhos, e exclamou, erguendo as mãos para o Senhor, que saia ao seu
encontro:
— Senhor! Bendito sejais vós, que dais a bem-aventurança
eterna aos que padecem na terra!
Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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