I
Não basta que os
contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo que deleitam, ensinem.
Este que vou contar
não sei se satisfará à primeira condição; a segunda porém, há de por certo
preenchê-la, por isso que o leitor, que o levar a cabo, ficará sabendo quem era
o Preste João das Índias, do qual todos falam, e pouquíssimos são os que o
conhecem, a não ser de nome.
Pois, senhores,
havia nas Índias um rei mui poderoso, cujo único sucessor direto era uma filha
de três ou quatro anos. Como o monarca se sentisse muito mal, chamou todos
os grandes do reino, e falou-lhes do seguinte modo:
— Ando tão adoentado, há tempos a esta parte,
que milagre será não esticar a canela antes de oito dias, e confesso que essa
partida tão repentina para o outro mundo, me penaliza em extremo, por quanto
desejava deixar casada a minha augusta filha; e no entanto S. A. não passa por
ora de um comecilho. Asseguro-vos que pouco me importa morrer,
porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz morrer hoje como
amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se casasse para aí qualquer
dia, em virtude de altas razões de estado, com um Príncipe, que não fosse muito
do seu agrado.
— Senhor, lhe tornou um dos homens políticos
mais importantes do reino, faz V. M. muito mal em estar a afligir-se com essas
coisas. Quando a Princesa chegar à idade de tomar estado, há de casar-se com o Príncipe,
que for mais do seu gosto; e se houver no reino quem se atreva a querer opor-se
à libérrima escolha de S. A., esteja V. M. certo de que tem que se haver
conosco.
— Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo
essas patranhas? replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade numa
estrepitosa gargalhada. Nem que eu não soubesse o que são os partidos
políticos! Aquele que então estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato,
e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais for do seu
gosto, mas sim com aquele que mais convier aos seus ministros, os quais, só por
satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a obrigar a
casar ainda que seja com o mouro Musa.
— Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que
este país é um país essencialmente monárquico...
— Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo,
todos os dias, homens políticos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito
divino, e que, se um belo dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a
negar o direito de pessoas decentes!
— De acordo, mas é que esses são
uns vilões que nunca deveram ter parte na luta dos partidos.
— Mas o grande caso é que a têm no gozo dos
direitos constitucionais.
— Em suma, ordene V. M. o que lhe aprouver, e
eu lhe assevero, que pode marchar tranquilo para o outro mundo, e sem o menor
receio de que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens.
— Pois bem, nesse caso escutai-me: quando
minha augusta filha estiver em idade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente
se conhece), deveis dar-lh'o a saber, tendo em vista todo aquele recato com que
se deve falar dessas coisas a uma donzela; em seguida fareis apregoar por todas
as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu casar-se, e dará a
sua mão ao Príncipe, que mais for do seu agrado.
— Até aí estamos bem; mas V. M. sabe que o
mundo se divide principalmente em três religiões, a saber: a religião cristã, a
maometana e a judaica. Devo portanto supor que V. M. terá já formado o seu juízo,
acerca da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro.
— Homem,
francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça.
— Ah! pois isso é coisa muito séria!
— Vai-te daí com esses teus escrúpulos de
freira! Vós todos sabeis que no meu reino não há religião alguma. A falar a
verdade, já por vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse,
porque há muito quem diga, que não pode haver sociedade sem o freio da
religião; porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os
meus botões: “deixar correr; quem me manda a mim meter a redentor? Que religião
pode haver num país tão desmoralizado como este, onde todos os dias se manda
gente à forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a religião cristã,
segundo a qual todos os homens são iguais: haviam de marchar bem as coisas,
desde o momento em que os escravos, que tiram os coches, soubessem que valem
tanto como os senhores, que vão dentro deles, mui repimpados!”
— Visto isso, entende V. M. que a melhor
religião... é não ter religião nenhuma, não é verdade?
— Não digo isso,
homem; nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O que eu te digo é que não tenho
querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em coisas tão delicadas. Que
escolha, minha augusta filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo que seja perro
judeu...
Assim terminou a
conferência do rei com os próceres da república, e avisado andou S. M. em não a
deixar para o dia seguinte, porque naquela mesma noite teve um ataque tão
forte, que esticou a canela, sem ter tempo sequer para dizer “Jesus”.
Como era natural,
apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha de uma regência, que
devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade de sua excelsa filha, e
então é que foram elas!
Sobre se a regência
devia ser de três, ou de um único estadista, e se este deveria ser Pedro
ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia tudo pelos ares. Por último
optaram pela regência una, e por então terminou a contenda; porém os
partidos políticos, para os quais ver os seus contrários no poleiro e ver o
diabo é tudo uma e a mesma coisa, começaram novamente a tecer os pauzinhos. Era
o regente um soldado destemido e honrado de uma vez; porém como homem de estado
não passava de um simplório, que entendia tanto de governo como eu
entendo de lagares de azeite; os seus inimigos, aproveitando-se da inépcia com
que ele dirigia a política, não descansaram em quanto lhe não deram um pontapé,
e o expulsaram do palácio.
Nomeou-se novo
regente. Este então era um pássaro que cantava na mão, porém ao mesmo tempo,
tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz de se meter cem braças pela
terra abaixo; daí resultava que cada dia havia um pronunciamento.
Por efeito de um desses
pronunciamentos, caiu o regente, e organizou-se então uma regência composta de
três magnatas.
Até ali era um só a
criar nichos para empregar os seus amigalhotes, um só a querer enriquecer à custa
da nação, um só a monopolizar os favores da jovem Princesa, e um só a governar
mal; multipliquem agora esse um por três, e imaginem a poeira, que se levantou
com a tal regência trina!
Conheceu finalmente
a Princesa que estava em idade de casar-se, e correu voz, por todas as nações,
de que ela punha a sua mão a concurso e a daria ao Príncipe,
que mais lhe agradasse.
Os primeiros, que
acudiram ao reclame, foram os judeus, os quais trajavam rica e vistosamente, e
tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro diante da Princesa, supondo
talvez, que o vil metal teria para ela tantos atrativos como
para eles; e, enquanto os que iam à mostra faziam sua corte à
Princesa, andavam os rabinos pelos cerros pedindo a Deus, que desse a algum dos
da sua casta aquela boa pequena, que tão belo partido era.
Chegaram em seguida
os maometanos, e era muito para se ver, tantos mouros montados em cavalos,
mais ligeiros que o vento, escaramuçando e jogando canas, a ver se, assim,
engodavam a Princesa.
Afinal apareceram
os cristãos, que, com suas justas e torneios, e o seu porte cheio de garbo e
gentileza, sabiam encantar o coração das donzelas.
— Então, em qual das três religiões escolhe V.
M. marido? perguntou o presidente do conselho de ministros à rainha.
— Homem, nem sei o que te diga, respondeu a
rainha. Bem se diz que quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te fale
verdade, gosto de todos.
— Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um.
— Asseguro-te que sinto realmente deveras não
poder decidir-me, sequer ao menos, por três. Olha, que entre os cristãos há alguns
rapazes bem guapos!... mas entre os judeus e os mouros... não te digo nada!...
— Em suma, disse o presidente do conselho,
isto não é sangria desatada; deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço de alguns
meses, e depois, então, poderá V. M. escolher, com perfeito conhecimento
de causa; isto de escolha de marido é, para as raparigas, operação muito
delicada...
O presidente do
conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu parecer, e cristãos,
maometanos e judeus, continuarem a fazer as suas zumbaias à real
moça, cuja mão ambicionavam.
Chegou notícia a
Roma do que se passava nas Índias, e o Padre Santo ordenou que se fizessem
preces, para que Deus inspirasse a rainha afim de que casasse com um cristão,
coisa que redundaria em glória e aumento da cristandade.
Havia naquele tempo
em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, conhecido pelo nome de Preste João,
o qual era a admiração de toda a gente, em razão do seu saber e virtudes, zelo
religioso e galhardia.
O Preste João
apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe:
— Santíssimo Padre, o que se está passando nas
Índias é, quanto a mim, coisa mais seria, do que parece, à primeira vista. Aquilo
é um país desgraçado, onde ninguém crê em Deus, nem em Santa Maria ; onde
todos são ímpios e ateus. Se a rainha se casa com algum perro judio, estamos
bem aviados; vai tudo para o diabo. Se porém a rainha der a mão de esposa a um cristão,
corto a cabeça, se todos os índios, dentro em poucos anos, não forem tão cristãos
como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa Santidade.
— Se for coisa que eu possa conceder-te...
— Que V. S. me deixe ir às Índias, para ver se
faço entrar aquela gente no bom caminho.
— Estás servido, filho; podes partir quando quiseres.
— Pois, nesse caso, vou imediatamente tirar
passaporte.
— Toma cuidado, filho; vê lá que esses infiéis
te não preguem alguma peça... particularmente os judeus...
— Isso não me mete medo, que por muito que
saibam, sempre hei de saber mais do que eles.
— Pois vai na graça de Deus, e leva contigo a
minha benção paternal.
— Graças, Santíssimo
Padre!
Foi dito e feito; o
Preste João, acompanhado de um luzidíssimo séquito de sacerdotes, em cujo número
se contavam os melhores cantores de Roma, e munido de riquíssimos paramentos e
decorações de igreja, inclusive um órgão, que era o melhor que, até então, se
tinha visto naquele gênero, tomou o caminho das Índias.
Felizmente os
ingleses não eram, naquela época, tão filantrópicos, como o são agora, do
contrário não teriam deixado de lhe armar alguma ratoeira, na idéia em que
estão, de que, para civilizar os cipaios, são mais eloquentes os seus canhões,
carregados de metralha, do que os hissopes dos missionários católicos,
ensopados em água benta.
Os judeus e os mouros
souberam que o Preste João se dirigia para as Índias, e estavam atrapalhados da
sua vida, porque havia muito tempo que a fama trombeteira lhes tinha
levado notícia do saber, da virtude, do zelo religioso, e da extremada
galhardia do Preste João.
Chegou este, afinal,
com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da graciosa dignidade, com que ele
a saudou, a ponto de não poder ter mão em si, que não dissesse, baixinho, ao
presidente do conselho:
— Olha que este cristão não é nenhuma
asneira!...
Vendo o Preste João
a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se de S. M., e disse-lhe:
— Senhora, vejo que V. M. vacila sobre se há de
casar-se com um cristão, com um mouro, ou com um judeu. Creia V. M. que a
religião de Cristo é a única verdadeira, grande e salvadora, e que as outras
são umas religiõesitas de três ao vintém, que nem com cem varas
chegariam ao céu, de onde procede, e onde apóia sua augusta fronte o
cristianismo. E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe digo é a pura
verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença, judeus,
maometanos, e cristãos, a fim de discutirmos qual das três religiões é a
melhor, e, sobre tudo, qual é aquela, que mais favorece as mulheres, pois essa
é a grande questão, nas circunstâncias atuais.
— Com muito gosto; não tenho a menor duvida em
aceder aos teus desejos, respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-eis todos
diante de mim, e veremos, então, quem é que leva a melhor.
Com efeito, no dia
seguinte, estava a rainha sentada no seu trono, e as três religiões,
representadas pelo Preste João, e pelos judeus e maometanos mais sábios,
dispostos a discutir na sua presença.
— Está aberta a sessão, disse a rainha. E como
era o Preste João quem tinha provocado aquele certame, devia considerar-se como
o primeiro, e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha acrescentou: “Tem
a palavra o Preste João.”
Os judeus e os mouros
começaram logo a murmurar, acusando de parcial a augusta presidente; esta porém
fê-los entrar na ordem, a poder de muitas razões, e toques de campainha.
— Senhores, disse o Preste João,
trata-se de orientar a S. M. acerca de um assunto mui grave, qual é a
escolha do homem a quem, de preferência, deve ligar o seu futuro. Ora, o que
mais interessa a S. M., é saber o que mais lhe convém, se um marido cristão, se
maometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para S. M., desde o
momento em que esta augusta senhora, ou para melhor dizer, senhorita,
souber qual é das três religiões aquela, que mais protege e favorece os fracos
em geral, e a mulher, em particular.
“Comecemos pela
religião judaica.
“A mulher, no povo
de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua companheira. Quase nas
primeiras páginas, nos testemunha isso o velho Testamento, pois nos diz que
Abrahão, marido de Sara, recebeu Agar por mulher, ainda em vida da primeira, e
logo adiante nos conta que Esaú casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananéias.
O Decálogo, revelado mais tarde a Moisés, no alto do Sinai, dizia: “não
desejarás a mulher do teu próximo”; mas não dizia: “terás uma única mulher”, e
Salomão, que era o protótipo da sabedoria hebraica, teve milhares de
concubinas. Pergunto eu agora a S. M. se está disposta a sofrer que o seu
futuro marido lhe dê uma, ou mais substitutas?!
— Substitutas! a mim!... exclamou a rainha
indignada. Tenho bom gênio para isso! Mais fácil seria enterrarem-me viva!
— Pois eu continuo....
Aqui interrompem os
judeus o orador, descontentes do caminho que leva a sua causa; a rainha porém fá-los
entrar na ordem, à custa de repetidos toques de campainha, e com ameaça de os
fazer expulsar do salão.
O orador continua:
— Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quais,
em verdade, me causam dó, ainda que não seja senão por os ver condenados a
esperar o Messias, até à consumação dos séculos; com isso já não estão mal
castigados por haverem crucificado a Cristo, porque lá diz o rifão: “quem
espera, desespera”. Passemos agora aos maometanos. Quem era o tal Mafoma?
— O profeta de Deus! exclamam
os maometanos, pondo a mão no peito, e dobrando-se reverentemente.
— Qual profeta, nem qual cabaça!...
Aqui é que foram elas!
Dizer isto o Preste João, e arrancarem os mouraços dos chanfalhos,
rugindo de cólera, foi tudo obra de um momento; a rainha porém sacudiu a
campainha, mandou entrar o piquete da guarda, e graças a esta energia da
presidência, acomodaram-se os perturbadores da ordem, e o orador pôde, afinal,
continuar:
— Mafoma era um sujeito que
passava por sábio e grande, entre os seus compatriotas, pela razão muito
simples de que na terra dos cegos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse ele
com os seus botões: Como hei de eu arranjar a dominar estes barbaças,
que não tratam senão de se divertir com as moças?... como?... esperem lá... já
sei. Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e meto-lhes
na cabeça, que ela me foi revelada por um anjo.” E dito e feito: arranjou o tal
alcorão, segundo o qual, a mulher e o cavalo vem a ser, para o homem,
uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez
acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de
encontrar moças às dúzias, e obra desenganada.
— E é que as havemos de encontrar! gritam
furiosos os maometanos.
— Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês
encontrar?! Só se forem alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns bárbaros
como vocês, que atravessam séculos e séculos, sem dar um passo na senda do
progresso! Vamos porém agora a ver o que é a mulher, segundo a religião
estúpida de Mafoma.
— Lancem-se essas palavras na ata! gritam,
afogados em cólera, os maometanos.
— Não é da minha real vontade! responde a
rainha. Prossiga o orador no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o
uso da palavra.
— Pois bem, eu continuo: É para cortar o
coração, e fazer cair a alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos
muçulmanos. Não se contentam estes senhores com ter duas ou três mulheres;
possuem centos delas, encerradas em cárceres, a que dão o nome de
serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e
não encontra uma mulher sequer para um remédio; e isto porque esses bárbaros
até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a natureza
concede à criatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem à mulher, esse formoso
ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos dado o dulcíssimo nome de mãe,
o ar e o sol, que não negam aos mais imundos irracionais! Maldição sobre essa
lei ímpia, sobre o falso profeta, que a ditou, e sobre o povo bárbaro e
fanático, que a segue!
— Ah! perro cristão!... gritam, a um tempo,
todos os muçulmanos, ao ouvir a enérgica apostrofe do Preste João; e, rugindo
de raiva, mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanjes,
com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou
entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os meteu na ordem, a
poder de muita coronhada de armas.
Apaziguada que foi
aquela rusga, continuou o Preste João o seu discurso:
— Que diferença entre o que a mulher deve à religião
cristã, e o que deve a qualquer das duas religiões, maometana e hebraica!
Maria, em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no céu, ao lado do
Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcíssimo e santo
nome de mãe. A religião cristã glorifica a mulher, destinando-a a esmagar a
cabeça da serpente do pecado, e Jesus proclama a igualdade de todas as criaturas
humanas, e diz aos meninos que se acerquem dele, igualando, por tal forma, a
mulher ao homem, e exaltando os fracos em cujo número se conta a mulher. É pois
a religião cristã a única que favorece a mulher; é aquela que a emancipa da
escravidão e do opróbrio, a que a condenam as religiões judaica e maometana.
Tenho dito; veremos agora se há aí alguém, que seja capaz de me contradizer.
— Tem a palavra os judeus, disse a augusta
presidente.
— A religião de Moisés, replicou
um rabino, já completamente desanimado, não carece de entrar em
discussões, para provar a sua superioridade sobre todas as outras.
— Ficamos inteirados! disse a
rainha, e acrescentou: Tem a palavra os doutores muçulmanos.
— Nós cá, os verdadeiros crentes,
exclamou um turco, não discutimos senão de alfanje em punho.
— Quer isso dizer, à bruta! exclamou a rainha
indignada; e erguendo-se da cadeira, acrescentou: estando já a hora mui
adiantada, e não havendo mais assuntos a tratar, está levantada a sessão.
Ficou a rainha quase
resolvida a casar com um cristão; porém, receosa de que houvessem murmurações e
comentários que lhe fossem desagradáveis, lembrando-se de que alguém poderia
dizer que ela obrara levianamente, determinou-se a tentar uma outra prova.
Consistia essa prova em fazer com que os apóstolos das três religiões
celebrassem, na sua presença, uma das cerimônias mais importantes dos ritos que
professavam.
Cristãos,
muçulmanos e judeus, todos, com muito gosto, aceitaram a proposta de S. M., que
logo fixou o dia para as cerimônias, que deviam verificar-se no mesmo salão,
onde se tinha discutido qual era das três religiões aquela a que mais devia a
mulher.
Os primeiros que saíram
a terreiro foram os maometanos, os quais anunciaram que iam executar a Zala.
Tinha a rainha
grande curiosidade de presenciar esta cerimônia, que julgava ser magnífica, e
que muito a divertiria; quando porém viu que a tal Zala consistia
tão somente em cruzarem aqueles ratões as mãos no peito, e
fazerem reverências e mais reverências, ficou mais fria que o próprio gelo.
— Muito engraçados são os tais moirinhos!
disse S. M., com riso desfrutador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo
os judeus, a ver que tal se portavam.
O grande rabino,
com o seu barrete enterrado até às orelhas, como usam os seus
correligionários, sacou de um livro, e imediatamente apareceram todos os judeus
com os seus ripanços nas mãos. Ora, os tais livros seriam muito edificantes,
mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes poderia pegar. O rabino
principiou a entoar um salmo, e todos os judeus o acompanharam; cantavam porém
tão desentoadamente, e davam tão insofríveis berros, que a pobre da rainha não
teve outro remédio senão tapar os ouvidos, e mandar a toda a pressa que
cessasse tamanha algaravia.
Cessou com efeito,
e os cristãos dispuseram-se, por último, a celebrar o santo sacrifício da
missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente ordenado.
Colocaram no salão
um magnífico altar, acenderam uma grande quantidade de tochas, que faziam belíssima
vista; puseram o órgão num sítio, que tinha excelentes condições acústicas,
tossiram e aguçaram o pigarro os cantores que haviam de oficiar
a missa, e que, como em princípio dissemos, eram os melhores de Roma; e,
em seguida, subiu o Preste João ao altar, magnificamente revestido, bem
como os dois acólitos, que o acompanhavam. A missa foi soleníssima, e tanto os
celebrantes, como os cantores e o organista fizeram prodígios, que deixaram de
boca aberta a rainha e a sua corte.
Os maometanos e os
judeus olharam uns para os outros, e disseram por entre os dentes:
— Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes
perros cristãos!
E na verdade não se
enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o Preste João, e disse-lhe:
— Decididamente caso com um cristão.
— Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste
João, cheio de santa alegria. Agora só falta que V. M. escolha o cristão, que
deve ter a ventura de ocupar o tálamo de tão formosa Princesa.
— Já está escolhido, disse a rainha das Índias,
fazendo-se corada como uma romã.
— E quem é esse feliz mortal?
— Tu.
— Eu!... V. M. não
está em seu juízo!
— Então! faz-te agora de manto de seda!...
— Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu
sou padre, e que os padres católicos não podem casar?...
— Que me dizes, homem?
— Digo-lhe isto, real senhora!
— Pois, amigo; partiste-me o coração!
— Então, porque?
— Porque estou apaixonada por ti, e se não
casar contigo, não caso com ninguém.
— Mas, senhora, entre os meus correligionários
há moços mais bem parecidos do que eu.
— Asseguro-te que nenhum me pode agradar tanto
como tu.
— Sinto isso bem; mas eu é que não posso
casar.
— Visto isso, não terei outro remédio, senão
dar a mão de esposa a algum desses mouros... que... diga-se a verdade, entre eles
há rapazes bem tirados das canelas, e o que me não agrada neles é
apenas a religião, que professam...
Quando o Preste
João ouviu estas palavras, tremeu dos pés à cabeça, pensando, e com razão,
que, pelo fato de a rainha casar com um maometano, todas as Índias, povoadas de
milhões e milhões de habitantes, abraçariam a seita detestável de Mafoma, ao
passo que, se casasse com um cristão, toda aquela gente seguiria a religião de Cristo.
— Senhora, disse ele, por fim, à rainha, pode
ser que consigamos harmonizar tudo. O Papa, que é o Vigário de Cristo na terra,
é o único que pode autorizar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, pelo
correio de hoje, pedindo-lhe a competente licença.
— Oh! que feliz idéia! exclamou a rainha; e
riam-se-lhe os olhos, de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos
recursos!
O Preste João pôs
logo mãos à obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, muito pelo miúdo, o que se
passava, e, na volta do correio, recebeu de Sua Santidade a
dispensa para casar com a rainha das Índias.
Celebraram-se,
pouco tempo depois, as vodas, com grandes festas e muito regozijo (bem
entendido, depois da rainha se ter feito cristã) e, passados anos, recebiam o
batismo todos esses milhões de milhões de índios, que os ingleses, nos nossos
dias, se fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade.
Eis-aí a história
do Preste João das Índias. Outros a contarão com mais graça do que eu, porém
com melhor intenção por certo que ninguém a conta.
Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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