sexta-feira, 29 de maio de 2015

Antônio de Trueba - "O madeiro da forca"

O MADEIRO DA FORCA


I
A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações de Biscaia, e a demarcação jurídica de Castela, era na idade média uma espécie de Tebaida, onde faziam vida penitente alguns anacoretas, aos quais se atribui a edificação do santuário que a coroa.
Sendo eu criança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das Encartações, paramos a descansar, ao descobrir o vale onde habitávamos.
Era por uma tarde aprazível de verão. O sol escondia-se por detrás dos montes, que recortavam o horizonte, e nas quebradas das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao vale; em baixo, na planície, saiam as raparigas das herdades, e pondo à cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, à fonte do Castanhal, para que seus pais e irmãos achassem em casa água fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao ombro as enxadas, e rezando as Ave-Marias, se encaminhassem para o lugar.
Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha mãe e eu estávamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso vale, em um de cujos extremos avistávamos, meia oculta por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuário de Colisa.
Entramos a falar daquela ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas tradições religiosas, que brotam e vivem à sombra dos santuários das montanhas, sem que possam os séculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a atenção, e comoveu-me deveras a alma contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.
Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça parte da sua existência entregue à adoração e glorificação de Deus, e o restante guiando e socorrendo os viajantes, que atravessavam aquelas montanhas; e isto pela razão de que, naquele tempo, como as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os vales, fugiam deles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do comercio dos homens.
Sempre que Cosme socorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na igreja de Valmaseda, que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, aparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao céu, deixando-o imerso em mística alegria.
Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saiu Cosme da miserável choça, onde vivia vida penitente, e pôs-se a divagar por aqueles bosques espessos e fragosos, a ver se encontrava alguns caminhantes, que neles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.
 — Porque vai preso esse infeliz? lhes perguntou ele.
 — Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condenou à morte, lhe responderam.
 — Quem as faz paga-as, disse o anacoreta, dando tréguas à sua compaixão.
Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, numa encruzilhada, pegaram num grande madeiro seco, que, havia muitos anos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades desse madeiro seco nos primeiros galhos de duas árvores paralelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-no daquela forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que ele tinha expirado.

II
Nesse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxílio, seriam devorados pelas feras, ou se teriam despenhado nos precipícios daqueles temerosos desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do nevoeiro.
Recolheu-se à sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para socorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento e solene, na longínqua torre da igreja de Valmaseda. — O anjo porém não lhe apareceu naquela noite!
O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria ofendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possível atinar com o agastamento do Senhor.
Aquela noite passou-a toda em continua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus perdão e misericórdia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de espessa névoa, saiu em auxílio dos caminhantes.
De repente achou-se na encruzilhada, e ao ver diante de si a forca, da qual pendia ainda o cadáver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de repugnância e movido de espanto; e levantando a vista acima do cadáver, que estava preso da corda, viu o anjo pousado no madeiro da forca.
O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com semblante severo e carregado.
Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos, sobressaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão e misericórdia.
— Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua proteção. Ontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente desta forca, escarneceste-o, e olhaste com indiferença para a sua tribulação. Desprende o seu cadáver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos ombros, leva-o pelo mundo, e seja ele o único travesseiro, em que descanses a cabeça.
 — E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento.
 — Sim, lhe tornou o anjo. Quando desse madeiro brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou.
Dito isto, subiu o anjo ao céu, cercado de músicas misteriosas e de brilhantes resplendores.
Cosme acercou-se animosamente do cadáver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos primeiros galhos de duas árvores fronteiras, foi com ele aos ombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.
Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao ombro, e toda a gente o escarnecia e fugia dele horrorizada.
Uma noite, tendo perdido a esperança de encontrar asilo entre os homens, penetrou num bosque, esperando encontrá-lo no meio das feras, e vendo uma luzinha através da espessura, encaminhou-se para ela, e deu consigo à porta de uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.
 — Santinha, disse ele à velha, com voz suplicante, deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite.
 — Não pode ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro de uma hora; se aqui o encontrassem, com certeza o matavam.
Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha sinais, que indicassem que estava para rebentar, de onde se depreendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir à velha que lhe desse pousada, no que ela, por último, conveio, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.
Estava Cosme exausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, pousou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre ele a cabeça.
Condoída a velha de o ver descansar em travesseiro tão duro, ofereceu-lhe um feixe de cheirosa erva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo: — ofendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam à forca: “quem as faz, paga-as”, e para que o Senhor me perdoe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o único descanso da minha cabeça, até que dele brote um ramo verde, que será o sinal de que o Senhor me perdoou.”
 — Ai! exclamou a velha, rompendo num choro inconsolável, se é tão difícil para quem se arrepende e unicamente pecou por palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, que, como os meus filhos, pecam todos os dias por palavras e obras, e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.
O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca.
Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-no, arrancaram dos punhais para o assassinar.
A mãe, porém, contou-lhes a história daquele ancião, e pediu-lhes de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como ele, das suas enormes culpas.
 — Pois bem, perdoe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo entrar os punhais na bainha, e acrescentaram, soltando uma gargalhada de escárnio:
 — Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo verde desse madeiro seco.
Principiaram os bandidos a cear. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro seco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas.
Ao som de tais vozes acordou Cosme, e ao ver que do madeiro seco tinha brotado uma vergôntea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a levá-la consigo para o céu.

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Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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