I
Mães que tendes
filhos e que fundais a sua felicidade e a vossa em mandá-los para Madrid ou
para a America; lede este conto, que para vós o escrevo.
Não penseis que é
invenção minha o que vou narrar-vos; começa esta história no dia 10 de novembro
de 1836, época em que
Madrid era, pior e melhor do
que hoje. Quem não entender o que deixo dito lembre-se do que sucede com a
baixela de prata, que, quanto mais a esfregam, mais brilha e menos pesa.
Havia em Madrid um
frio intensíssimo: nevara na véspera, e antes que a neve tivesse tido tempo de
derreter nas ruas, sobreviera uma geada fortíssima, o que junto ao vento
de Madrid, que mata um homem e não apaga um candil, dava à temperatura
daquela heróica cidade o caráter e a temperatura da Sibéria.
D. João Quijano,
rico banqueiro que morava na rua de Toledo, estava no seu escritório, situado
nos baixos da casa, com seu sobrinho D. Lucas, e numa sala contigua trabalhavam
em silêncio, sentados às suas carteiras, dois caixeiros encarregados da
contabilidade e da correspondência. O gabinete do banqueiro tinha um postigo
com vidraça que dava para o escritório geral, e pelo qual o tio e o sobrinho
espreitavam amiudadas vezes, no intuito de se certificarem se os caixeiros
cumpriam as suas obrigações; frase de que D. Lucas se servia para os fazer
trabalhar, quando os ouvia falar em cousas alheias aos assuntos comerciais da
casa.
D. João era homem
de cinquenta anos, pouco mais ou menos, corado, robusto, de nariz grande e cabeleira
tão bem arranjada e composta, que os próprios caixeiros não teriam dado por ela,
se não fora o gênio de sua mulher D. Joana, que, nos seus acessos de
cólera, lh'o lançava em rosto, chamando-lhe “tio cabeleira”.
D. Lucas devia ter
os seus vinte oito a trinta anos; era pouco mais alto que um cão sentado, e nem
a sua fisionomia, nem as suas palavras revelavam talento ou bondade de coração.
Não obstante isso tolerava-lhe o tio os defeitos, e até sentia estima por ele,
não só por ser empregado antigo da casa, mas também porque podia dizer-se que
era D. Lucas quem carregava com todo o peso do estabelecimento.
— Veja lá, tio, disse D. Lucas a D. João,
levantando os olhos para um relógio, que estava colocado na parede, em frente
da escrivaninha do banqueiro, — se tem de ir à Bolsa, não se descuide que são quase
duas horas.
— Parece-me que não vou lá hoje, respondeu D.
João; quem há de sair de casa por um tempo destes? A vida é curta, e se eu morrer...
tocam os sinos a defunto, e está tudo acabado... Demais deve estar por aí a
chegar o pequeno e tenho desejos de o ver. Recebi pelo correio uma
carta de meu irmão Martinho, na qual este me diz que o rapaz saiu de lá no
primeiro do mês, na carroça de Chomin, e segundo o meu cálculo, temo-lo por aí hoje.
Talvez não fosse mau mandar o Turíbio à estalagem.
— Não sei para que; quando ele chegar, cá virá
ter.
— O pobre pequeno deve vir tolhido de frio.
— Não lhe dê isso cuidado; não inspira
compaixão quem vem como ele para Madrid, comer bom pão e boa carne, em vez de
comer broa e batatas numa aldeia da Biscaia.
— Pois apesar disso estou bem certo de que
preferiria encontrar hoje, ao apear-se da carroça, a cozinha de seus pães, com
a sua preguiceira e um bom fogo de rama de pinheiro, a entrar nesta habitação
ricamente mobilhada e com chaminé à francesa.
— Parece-lhe que o empreguemos em compras e
recados?
— Não foi essa por certo a ideia de seus pais
quando resolveram mandá-lo para Madrid. É preciso colocá-lo no escritório a
fim de que, pouco a pouco, se vá instruindo e orientando no negócio.
— Pouco a pouco! Verá como antes de um mês o
faço saber mais do que Merlin. A letra com sangue entra...
— Não concordo contigo, Lucas. Toma conta, não
lhe ponhas sequer a mão; não quero que aconteça com este o que aconteceu com
outros, que à força de maus tratos, os entonteceste, e tive que os mandar para
a terra...
Dispunha-se D.
Lucas a tomar a defesa do seu bárbaro sistema de educação, quando tocou a
campainha; — calaram-se de súbito, tio e sobrinho, aplicando o ouvido na direção
do portal.
— Ele aí está! exclamaram ambos a um tempo, ao
ouvirem no patamar a voz do pequeno que saudava o criado que fora abrir-lhe a
porta.
— Senhor, disse este com sorriso de escárnio,
aparecendo à entrada do escritório, está aqui Chomin com o recém-chegado.
D. João franziu as
sobrancelhas como descontente de que o criado se atrevesse a proferir o
estúpido equívoco que vai escrito em itálico, ao passo que o sobrinho
soltou uma estrondosa gargalhada em honra da graça de Turíbio, que era um
asturiano tonto com pretensões a faceto:
— Que entrem, respondeu D. João.
Com efeito Chomin,
que era um dos recoveiros das províncias Vascongadas, entrou no escritório,
acompanhado de um menino de doze a treze anos.
Não se tinha
enganado D. João, supondo que a pobre criança chegaria gelada.
Ângelo (era assim
que se chamava o novo caixeiro dos snrs. Quijano e Sobrinho) estava a tiritar
com frio; tinha as mãos e a cara lívidas e os seus olhos indicavam que, na
noite antecedente, em vez de se terem fechado para o sono, se tinham aberto
para o pranto. O pobre rapazinho parou à porta do escritório, com o chapéu
na mão, de cabeça baixa, e mal pôde articular um cumprimento.
— Ora aqui o tem, disse Chomin, depois das
saudações do estilo. Desde que saímos da aldeia, ainda não cessou de chorar com
saudades das suas vacas e das suas cabras.
— Pobre pequeno! exclamou D. João, afagando Ângelo.
— Deixe lá, atalhou o almocreve, que o pão
trigo de Madrid faz esquecer de pronto a broa de Biscaia. Bem diz o provérbio
que “de Madrid só para o céu”.
D. João acercou-se
de Ângelo, e disse-lhe, correndo-lhe a mão pela cabeça:
— Vamos, homem, então, que tal achas Madrid?
Parece-te melhor que a tua aldeia?
— Não, senhor, respondeu o pequeno com os
olhos arrasados de lágrimas.
— Dizes bem, dizes! exclamou D. João, pondo-se
a rir e fazendo uma nova caricia ao rapazinho. Devem ser assim os homens; a
melhor terra é sempre aquela que nos viu nascer.
— Sim, sim, ria-se
tio, disse D. Lucas, fazendo um gesto de enfado; ria-se da sandice desse bruto.
Não há duvida, o rapaz promete! Mas deixa estar que caíste em mãos de quem te
sabe ensinar!
— Não se aflija, snr. D. Lucas; o rapazelho põe-se
fino com um bom par de açoites todos os dias.
— Isso fica por minha conta, respondeu D.
Lucas.
— Valha-me Deus; não sejam assim, replicou o
banqueiro; que admira que o pequeno tenha saudades de seus pais, se nunca se
separou deles? E acrescentou, dirigindo-se a Ângelo: deves trazer vontade de
comer?
— Não, senhor, respondeu o menino, lavado em lágrimas.
— Não chores, disse D. João; chega-te para o
lume e aquece-te, enquanto não chamam para o jantar, e logo tomarás conta do
teu serviço e verás como antes de um ano te tornas um verdadeiro negociante.
O pequeno aproximou-se
da chaminé com o chapéu na mão; mas como o cegavam as lágrimas, tropeçou numa
cadeira e lançou por terra uns papéis que estavam sobre ela.
— Desastrado! não vês por onde andas? exclamou
D. Lucas, agarrando-lhe num braço e sacudindo-o com violência.
De repente efetuou-se
no ânimo do menino uma reação inesperada. Ele que, um momento antes, mal se
atrevia a levantar os olhos, ou a pronunciar uma palavra, ergueu a fronte com
altivez, e virando-se para D. Lucas, disse-lhe:
— Expulse-se-me de sua casa, mas não me
maltrate. Aqui maltratam-me, enquanto na minha aldeia me choram. Como quer
então o senhor que eu goste mais desta terra do que da minha?! E acrescentou,
dirigindo-se ao almocreve:
— Já não quero aqui ficar; volto consigo para
a Biscaia.
Estas palavras, bem
longe de comoverem D. Lucas e o almocreve, fizeram rir este e encolerizar aquele,
que murmurou, levantando o punho fechado sobre a cabeça da criança:
— Se fosses meu filho abria-te a cabeça com um
murro!
D. João, porém, saiu
em defesa do pobre rapaz, arredando dele com violência seu sobrinho, e
exclamando:
— Lucas, já te disse que não consinto que lhe
ponhas a mão. Se o achas rude e acanhado, se está comovido e saudoso,
recorda-te de como eras também, e do modo como te apresentaste quanto vieste
para Madrid. E Vm.ce, snr. carroceiro, fique sabendo que não se
tratam os racionais como as mulas.
— Não faça caso, snr. D. João; isto em mim não
passa de um gracejo, e senão ele que diga a maneira como eu o tratei pelo
caminho.
— Carregando-me de lenços de contrabando! O
que me valeu foi não me revistarem à entrada das portas; do contrário estaria a
estas horas na cadeia!
— Não está mau modo de cuidar da inocente criança,
que foi confiada à sua guarda! exclamou D. João, olhando com indignação para o
almocreve. Retire-se já da minha presença, que me estão dando tentações de dar
uma parte de si à policia.
— Ora, snr. D.
João!... Então o senhor faz caso do que dizem crianças?
— Já lhe disse que se retire da minha
presença.
— Está bem, snr. D. João; mas...
— Não há aqui mas, nem meio mas. Tenho dito,
ponha-se no andar da rua.
O carroceiro não se
atreveu a replicar e retirou-se murmurando não sei que insolência.
D. João arrastou
uma cadeira para junto do fogão, e sentou-se ao lado de Ângelo que tinha
cessado de chorar. O pobre pequeno estava já um tanto mais satisfeito por ver
que nem todos naquela casa o tratavam com aspereza, e que se havia ali quem o
maltratasse, também tinha quem o defendesse e lhe proporcionasse consolações e
afagos, que lhe faziam lembrar os que deixara no lar domestico.
D. Lucas despeitado
por ver que o tio tomava as dores pelo recém-chegado, a ponto de o repreender a
ele pela sua falta de humanidade, tinha-se retirado para o escritório, e por
conseguinte ficaram sós, Ângelo e D. João.
Era este natural da
aldeia do pequeno, e posto tivesse ido para a corte de tenra idade, e
absorvessem de ordinário todos os seus pensamentos e ações os assuntos comerciais,
nem por isso havia renegado o país natal, nem esquecido os seus parentes.
— Vamos, Ângelo, disse ele ao rapazinho com
modo carinhoso, dando-lhe uma palmada no ombro; conversemos um bocado acerca da
nossa aldeia; venham de lá algumas notícias frescas daquela boa gente. Então de
quem te despediste tu antes de partir?
— Despedi-me de todos os meus parentes e
vizinhos.
— Muito bem! Nesse caso havias de ver meu
irmão, não é verdade?
— Sim, senhor, recomendou-me que lhe desse
muitas lembranças, e bem assim à senhora D. Joana, e a D. Lucas... mas a este é
que eu as não dou.
— Não sei porque não, filho.
— Porque me trata muito mal.
— Não faças caso, homem. Com que então
deram-te lembranças para mim?
— Sim, senhor, e
especialmente o snr. abade.
— Deve estar muito velho, o bom do padre!
coitado!
— Não, senhor; se o visse andar por aqueles
montes ficava admirado. Ninguém dirá que tem mais de quarenta anos. Como não
ha, lá na aldeia, quem não reze a Deus todos os dias para que lhe dê saúde, não
tem nem uma dor de cabeça.
O colóquio de D.
João e Ângelo, interessantíssimo para ambos eles, foi interrompido logo em
começo pela entrada do asturiano, que tinha chamado ao menino rocim-chegado.
— Senhor, disse o criado, manda dizer a
senhora que está a mesa na sopa.
O banqueiro riu-se desta
troca de palavras e encaminhou-se para o primeiro andar.
Não estava a mesa
na sopa, mas estava a sopa na mesa, e D. Joana, a esposa de Quijano, aguardava
com impaciência a chegada do marido, não porque tivesse o estômago vazio, mas
sim porque o seu caráter irascível e dominador não suportava que a fizessem
esperar.
D. Joana, que entrara
como criada e acabara por ser ama em casa de D. João Quijano, tinha o relógio atrasado,
pois assegurava ter trinta anos, ao passo que a sua fisionomia, e o que ainda é
mais, a certidão do batismo, lhe davam quarenta.
Deter-me-ei pouco
na descrição dos seus dotes físicos; direi apenas que as criadas, que despedia
todas as semanas, a mimoseavam, ao descerem pela última vez as escadas, com os
epítetos de: dentes de cavalo, estafermo, e olhos
de gato.
Quanto ao moral era
D. Joana a personificação da antítese; alternavam-se nela a vaidade e a modéstia,
a avareza e a liberalidade, a crueldade e a compaixão, a elegância e a falta de
gosto no vestir.
Se um dia fazia
gala, em uma reunião de pessoas distintas, de não ter gasto até a idade de
quatorze anos, outro calçado que não fosse o do seu próprio couro,
despedia, no dia seguinte, uma criada por a pobre rapariga pedir, na sua inocência,
ao carteiro, que lhe lesse uma carta do seu noivo, por isso que sua ama não
sabia ler; agora despedia um mendigo com a seguinte blasfêmia: “Vá pedir a S.
Bernardino”, que na boca dos que podem e não querem dar, substitui a súplica
— ”queira perdoar, irmãozinho, não pode ser agora” — que costumam usar os que
querem e não podem; e logo, sabendo que qualquer vizinho estava doente e
precisado de meios, era muito capaz de lhe mandar uma boa esmola. Pela manhã
dava uma tareia ao cão por este ter mordido o gato, e de tarde
dava outra ao gato por ter arranhado o cão; na quarta feira ia passear ao
Prado, de vestido de veludo, e na quinta apresentava-se no mesmo sítio de
vestido de chita.
Se sou tão
minucioso e até prolixo, é porque não quero que alguém critique e censure no pintor
as inconsequências do original.
D. Joana dominava
por tal arte o marido, que a vontade dele estava sempre subordinada à sua. D.
João tremia diante de um gesto ameaçador da mulher, e por mais de uma vez teve
ela um acesso medonho de cólera só porque o honrado banqueiro entrou em casa às
dez horas em vez de se recolher às nove.
— Ora, com efeito, disse D. Joana, quando D.
João entrou na sala do jantar, já julgava que seria preciso meter-lhe empenhos,
e dirigir-lhe algum requerimento para que o senhor se resolvesse a vir jantar.
Se se persuade que eu estou para aturar as suas grosserias, está muito
enganado.
— Sempre tens muito mau gênio, Joaninha! disse
o banqueiro, esfregando as mãos e com um sorriso afável nos lábios.
Sentou-se D. João à
mesa, encheu um prato de sopa e passou-o a sua mulher; esta porém empurrou-o
com tal violência, que todo o seu conteúdo se entornou na toalha.
— Também tenho mãos para me servir.
— Como gostares mais, Joaninha, disse D. João
humildemente.
Principiaram a
jantar, e por mais que o banqueiro dirigisse a palavra a sua mulher, em tom agradável
e risonho, não foi possível quebrar-lhe o silêncio.
Por fim resolveu-se
D. Joana a falar, perguntando ao marido:
— Então que negócios tão importantes foram
esses que o obrigaram a deixar-me esperar por si meia hora?
— Meia hora! Não sei como não disseste uma,
filha!
— Faça o favor de me não contradizer! exclamou
D. Joana, com um gesto terrível. Eu falo mais verdade do que você e toda a sua
geração.
— Então! Não vale a pena alterares-te por tão
pouco! A dizer a verdade, nem por isso eram lá muito grandes os negócios que me
prendiam; — estava conversando com o pequeno.
— Com que pequeno?
— Com Ângelo.
— Pois ele já chegou?
— Chegou, sim. Ainda o não sabias?
— Não, senhor, ninguém me disse nada. Nesta
casa sou eu sempre a última palavra do credo... Pois não devia ser
assim, e de hoje para o futuro, eu lhe protesto que não tornará a acontecer uma
coisa destas, porque, no fim de contas, eu é que sou a dona desta casa; entende
o senhor?
E dizendo isto, D.
Joana atirou o trinchador com tal fúria, que fez um prato em pedaços.
— Oh! menina!... por quem és, Joaninha.
— Deixe-me... não me diga uma palavra, quando
não...
O banqueiro fez um
movimento para traz, porque a mulher tinha pegado numa faca e agitava-a
convulsivamente.
Afinal o silêncio e
a humildade do marido desarmaram aquela megera.
— Então, quando veio o pequeno? perguntou ela.
— Haviam de ser duas horas, filhinha; eu supunha
que o criado to teria dito.
— Não me disse
nada. Aquele Turíbio é um bruto, que há de ir hoje mesmo para o meio da rua. E
que me diz também ao mono do rapaz, que não soube subir para me vir
cumprimentar?!
— Bem vês que ele, coitado, não sabe...
— Pois tem obrigação de saber que sou eu a
dona desta casa.
— Em primeiro lugar o pobre pequeno chegou
meio morto de frio, e depois aquele excomungado de Lucas começou a embirrar com
ele, de modo que a criança ficou logo sem saber de que freguesia era.
— Eu me encarrego de o pôr fino com umas
correias que ali tenho.
— Não digas isso, Joaninha; para o pôr fino,
como tu dizes, requerem-se carinhos e não correias. Já disse a Lucas, que
comigo tem de se haver, se lhe puser a mão. A ti não é preciso repetir a mesma
coisa, porque tens melhor coração do que o meu sobrinho, e estou até convencido
de que hás de ser para Ângelo uma segunda mãe. Afianço-te que está morto por te
ver; a primeira coisa que fez, quando chegou, foi perguntar por ti.
Esta mentira do
banqueiro foi o bastante para reconciliar Ângelo com D. Joana, que disse:
— Mas o que faz essa criatura no escritório?
Porque o não mandaste subir, logo que chegou, para tomar alguma coisa?
Provavelmente está ainda em jejum, molhado, cheio de frio...
— Nada, não, ele disse-me que não tinha
vontade de comer; e quanto a aquecer-se, está no meu gabinete, sentado ao
fogão.
— E porque foi, então, que Lucas o tratou mal?
— Que queres? coisas dele! Por ter dito que
gostava mais da sua terra do que de Madrid.
— Santo Deus! Pois isso era motivo para ralhar
com a criança? Aqui estou eu a quem, graças a Deus, não falta nada, e no
entanto, morro pela minha aldeia... — Turíbio! acrescentou D. Joana, chamando
pelo criado dos trocadilhos, dize ao rapazinho, que está no gabinete do senhor,
que suba.
— Quem, o rocim-chegado? perguntou
o asturiano com um sorriso malicioso.
— Atrevido!
exclamaram, a um tempo, D. Joana e o banqueiro; se tornares a divertir-te à custa
de Ângelo, vais imediatamente para o andar da rua.
O asturiano baixou
a cabeça, pouco satisfeito com o êxito do seu gracejo, e um instante depois
subia com o pequeno.
Ângelo saudou D.
Joana com bastante desembaraço, e depois que ela lhe chegou um prato de bolos,
acabou de perder todo o seu acanhamento, e respondeu com vivacidade às mil
perguntas que por largo espaço de tempo lhe dirigiram os dois esposos.
— Tens muitas saudades de tua mãe? lhe
perguntou D. Joana.
— Muitíssimas, respondeu o pequeno.
— Pois, se fores bom rapaz, hei de estimar-te
e cuidar tanto de ti, como se fora ela própria.
— Muito obrigado, minha senhora!... disse o
menino; e arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas... lágrimas de alegria e de
agradecimento.
O banqueiro e sua
mulher levantaram-se da mesa.
— Deixa-te estar
aqui, filho, disse D. Joana a Ângelo; espera que vais tu agora também comer e
os teus companheiros.
Pouco depois
entraram na sala do jantar D. Lucas e os caixeiros e sentaram-se à mesa. Ângelo
porém conservou-se num canto, de cabeça baixa, receoso, e sem se atrever a
levantar os olhos para D. Lucas.
— Chega-te para a mesa, selvagem, disse-lhe o
sobrinho de Quijano. Parece-me que seria melhor ires outra vez guardar cabras
lá para a tua terra.
Alegrou-se o menino
e sentiu-se ao mesmo tempo ferido no coração, ao ouvir estas palavras; regozijou-o
a lembrança de voltar para a sua aldeia e enlutou-se-lhe a alma com o novo
insulto que acabava de lhe ser dirigido.
Aproximou-se
timidamente da mesa, mas não se chegou tanto, como devia, segundo a opinião de
D. Lucas; este dando-lhe um murro nas costas exclamou:
— Chega-te mais, bruto! A culpa tem quem não
deixa ficar estes animais a pastar no campo, ou os não faz comer, quando muito,
numa manjedoura em lugar de mesa!
Todos os caixeiros
do banqueiro desataram a rir em honra do chiste de D. Lucas.
O pobre Ângelo
derramava entretanto uma torrente de lágrimas, e comparava as caricias da sua família
com aquelas ofensas bárbaras e grosseiras.
— Então, comes ou não comes? perguntou D.
Lucas.
— Não tenho vontade, respondeu Ângelo.
— Tanto melhor; desse modo não corres perigo
de agarrar alguma indigestão, e hão de abater essas bochechas de frade
Bernardo.
Por única resposta
continuou Ângelo a chorar e a suspirar pelos pais, pelos irmãos, pelos seus
companheiros de infância e pelas queridas montanhas de Biscaia, onde até
ali tinha vivido tão livre, tão estimado de todos e tão feliz!
E os caixeiros de
Quijano a escarnecerem-no, a rirem-se dele, sem a mais leve sombra de
compaixão, como se a pobre criança fosse um corpo sem alma, como se a
considerassem sem coração para sentir!
É na verdade uma
coisa que indigna e irrita as pessoas sensíveis, e que até revolta o ânimo, a
falta de humanidade com que são, de ordinário, tratados nos grandes centros, e
particularmente em Madrid, os rapazes que para ali são mandados das aldeias!
Chega uma pobre criança,
que nunca saiu do seio da sua família, onde, se a não cercavam riquezas e comodidades,
lhe sobravam carinhos e ternos cuidados; chega ordinariamente cheia de frio,
extenuada de fadiga, muitas vezes até com fome, e sempre saudosa e triste, e em
lugar de a confortarem e de lhe proporcionarem carinhos, de que necessita então
mais do que nunca, todos a escarnecem, todos zombam da sua inocência e da sua
humildade, das suas lágrimas e da sua linguagem.
Ai! não acuseis o
autor deste livro de se entregar a falsas declamações; a justificação dessas
palavras conserva-a ele impressa na sua memória propensa a recordar, e no
intimo do seu coração sempre disposto a perdoar, para nunca mais sair dali.
Durante a primeira
tarde, que passou em casa de D. João Quijano, foi Ângelo vítima da selvageria,
que estou condenando. Abusaram indignamente da sua natural simplicidade e prudência,
obrigando-o a praticar um certo número de coisas, que repugna enumerar; por último
fizeram-no persuadir de que todas as pessoas que entravam pela primeira vez em
Madrid, careciam de ser pesadas a fim de pagarem uns certos direitos proporcionais
ao peso que tivessem.
Puseram-no em cima de
uma balança, e ali o conservaram por tanto tempo, que a pobre criança já tinha
o corpo quase desconjuntado; quando terminou aquela experiência de martírio,
que faz lembrar os tormentos inventados por Diocleciano e Torquemada, teve ele
de sofrer outro talvez mais doloroso ainda, qual o das mofas e zombarias
dos seus verdugos, que desapiedadamente lhe retalhavam o coração!
E os caixeiros do
banqueiro, homens barbados, que, como tais, estavam constituídos na obrigação
de proteger o fraco e de consolar o triste; que eram chamados a desempenhar
graves e sagrados deveres na sociedade, mostravam-se contentes com a sua obra,
e imaginavam-se, talvez, cheios de talento e de graça por haverem iludido e
martirizado uma criança, que, pela primeira vez na sua vida, vertia lágrimas de
desespero, longe de seus pais que a idolatravam, e das queridas montanhas da
sua pátria!
Tudo sofreu a pobre
criatura em silêncio; nem sequer lhe restou o lenitivo de se queixar a D. João
dos bárbaros tratos de que foi vítima; proibiram-lho os seus verdugos com
ameaças que lhe infundiram novo terror e novo desalento.
Dormia toda a família
de Quijano no andar nobre da casa, à exceção do caixeiro mais moderno e dos
cães, que se acomodavam no pavimento térreo, destinado quase exclusivamente ao escritório
e suas dependências.
Os dois cães, Mouro
e Pomba, dormiam no gabinete do banqueiro, que estava ricamente mobilhado, ao
passo que o caixeiro se alojava num quarto pequeno e úmido, alumiado apenas por
uma espécie de fresta ou gateira aberta na parede, situado num patamar
constantemente varrido pelo vento que entrava da rua e pelo que vinha de um
pátio que havia nas traseiras da casa; a mobília desse mesquinho aposento
consistia toda em um leito de pinho com colchão, dois lençóis, um cobertor, um
travesseiro e um lanceiro ou cabide tosco para pendurar o fato e... grandes
cortinados de teias de aranha pendentes do teto.
Em tempo dormia o
caixeiro mais moderno (rapaz de tempo) num quarto excelente do andar nobre; D.
Lucas porém havia disposto as coisas por outra forma, muito antes da época a
que me refiro; tinha lá umas idéias suas de higiene, em
virtude das quais dizia que muitas vezes os caixeiros adoeciam por passarem
repentinamente de uma vida incomoda para uma vida cômoda, de um colchão duro
para um colchão mole, de um quarto mau para um quarto bom.
Quis o tio opor-se
àquela estúpida inovação, ponderando que o que fazia adoecer os rapazes que
entravam para sua casa não era senão o péssimo tratamento que recebiam de D.
Lucas; este porém, tais argumentos empregou em defesa da sua teoria, que, para
se livrar de polemicas, teve o pacífico banqueiro de concordar com ele. Os rapazes
continuaram a adoecer, mas D. Lucas afirmava ao tio que tudo aquilo era
fingimento e impostura para que os deixassem dormir no andar de cima, e o bom
do banqueiro, que já não tinha pequena cruz nas teimas e ralhações de sua
mulher, não quis continuar em divergência com o sobrinho, e acabou por admitir
o seu bárbaro sistema penitenciário.
Patrões e caixeiros
ceavam quase simultaneamente, sendo as sobras da mesa dos primeiros servidas
aos segundos. D. Lucas comia de ordinário com estes, exceto porém nos dias santificados
e à noite, que fazia companhia aos tios. Não podia o sobrinho do banqueiro
tolerar que os caixeiros fumassem, e não obstante tinha uma paixão desmedida
pelo tabaco; mas diante do tio não era capaz de fumar, e isto explica-se facilmente.
D. Lucas começou a fumar quando, pela sua pouca idade, carecia para o fazer de
ocultar-se do banqueiro; e mais tarde, quando já eram escusadas essas precauções,
continuou a matar o vício às ocultas, talvez por hábito, e talvez também por
não dar o seu braço a torcer, por isso que em tempo tinha jurado e tornado a
jurar ao tio que bastava o cheiro do tabaco para o transtornar completamente.
Erguia-se da mesa,
ainda com o bocado na boca, e entrando na cozinha, onde comiam os
caixeiros, apertando o seu cigarro, que se não atrevia a acender, com medo de
que na sala se pressentisse o cheiro, pegava num castiçal e dava a voz de deitar ao rapaz
de tempo. Achava-se este ainda em meio da ceia, por isso que os outros lhe
levavam sempre um prato de vantagem, mas D. Lucas estava desesperado por fumar,
de maneira que o pobre rapaz não tinha outro remédio senão levantar-se da mesa,
dar as boas noites a toda a família, começando pelos caixeiros, e seguir a D.
Lucas, que já pelas escadas abaixo tirava cada fumaça que valia bem um dobrão.
Em quanto o pequeno
se deitava, alumiado pela vela colocada no corredor, em frente da porta do
quarto, acabava D. Lucas de fumar o seu cigarro, pegava no castiçal, fazia
quatro festas aos cães, deitados num colchãozinho muito fofo, e em seguida
subia as escadas a fim de passar um bocado da noite na companhia dos donos da
casa.
Se D. João tivesse
um hóspede e este lhe perguntasse a razão porque o sobrinho descia ao escritório,
ainda bem não tinha acabado de cear, seria esta a resposta do banqueiro:
— Vai deitar os cães e o pequeno, dar uma
vista d'olhos lá por baixo, ver se está tudo bem fechado, e demora-se até poder
trazer para cima a luz, porque aqui em Madrid é preciso muito cuidado com os fogos.
Como estes rapazes são em geral muito dorminhocos e Lucas
entende que por nós gostarmos de palestrar o nosso bocado, não se segue que o
pequeno esteja para aí a turrar com sono, dá-se pressa em o levar para a cama.
Sucedeu a Ângelo
nem mais nem menos do que aos seus antecessores, com a diferença, porém, de que
à pobre criança lhe foi dobradamente mais custoso deitar-se a meia ração, por
isso que todo o dia estivera fazendo cruzes na boca, e quando o chamaram para a
ceia tinha fome canina.
Uma pessoa adulta,
opressa pelo peso de tão profundo desgosto como era o dele, teria olhado para a
comida com repugnância, ainda que estivesse a cair de fraqueza; mas é que
uma pobre criança, se acontece perder o apetite por espaço de algumas horas, pronto
o recupera, por mais acerbos e cruciantes que sejam os seus desgostos.
Ângelo deitou-se e
Dom Lucas despediu-se dele do seguinte modo:
— Ora queira Deus que pela manhã não haja
preguiça! Aqui não se trata só de comer e dormir. às seis horas varrer bem
o escritório.
Dom Lucas, como
temos visto, usava muito dessa espécie de linguagem impessoal inventada pelos
lacaios com o fim de se esquivarem a dar tratamento.
Ângelo, com a
solidão do seu aposento, deu-se por compensado da parte da ceia de que a
maldade de D. Lucas o privara. Ali podia sequer chorar desafogadamente, podia
rogar a Deus que o restituísse às suas montanhas, invocar o nome de seus pais,
e execrar até os seus algozes, sem que uma gargalhada de desprezo, um dito
humilhante ou uma pancada fossem perturbá-lo nas suas cogitações.
Ai! muito chorou a
pobre criança, naquela noite!
— Como é triste viver em Madrid! pensava ele.
E dizerem na minha terra que — de Madrid só para o céu! — As pessoas que
dizem isso de certo nunca estiveram aqui! As ruas e as praças estão convertidas
em lodaçais imundos; a gente anda toda aos encontrões; as carruagens e os cavalos
atropelam e cobrem de lama os transeuntes; as goteiras alagam os indivíduos que
seguem pelos passeios; e o vento que sopra das portas faz rebentar o sangue nas
mãos e na cara!
É bem diferente disto
o meu querido país, os campos amenos da Biscaia!
Lá alveja a neve
lisa e pura por sobre a relva e as penhas, nas árvores e nos telhados, e quando
o sol ou a chuva a derretem não é em lodo que se converte, mas sim em cristalinos
arroios; lá não se apinhoa, confunde e atropela a gente, o gado e os
carros, que a todos Deus concedeu campo e largueza por onde se espalhem à vontade;
e se também ali sopra o ar frio do inverno, é ar que dá saúde em vez de tirá-la.
Ai! quão diferente
teria corrido para mim o dia, se o passasse na minha aldeia! Se lá estivesse,
andaria no campo a patinhar no gelo; teria feito grandes bolas de neve no alto
da montanha, para as ver despenhar-se no vale; em seguida voltaria a casa, e
depois de ter almoçado junto do lume, subiria à trapeira para apanhar os
pássaros, que ali vão abrigar-se do mau tempo e procurar o sustento que não
encontram nos campos cobertos de neve; e à noite, em quanto minha mãe estivesse
preparando a ceia, contar-me-ia meu avô as suas façanhas da guerra da
independência. No fim da ceia iria para a cama acompanhado por minha mãe, que
depois de me cobrir e agasalhar cuidadosamente, se despediria de mim, como de
costume, com um doce beijo. Ai! que diferença! assim não estaria, como agora
estou, acordado e a chorar, mas dormiria tranquilo e sossegado até que,
com outro beijo, fosse despertar-me pela manhã!
Entregue a tão
saudosos pensamentos passou Ângelo em claro quase toda a noite. Já se ouviam na
rua os pregões dos vendilhões e fornecedores da cidade, o barulho dos carros e
os passos dos transeuntes, quando, vencido pela vigília, e tomado do cansaço do
corpo e do espírito, caiu num benéfico sono.
Adormeceu
profundamente; rosaram-se-lhe as faces, e a posição em que ficara e a sua
respiração serena e plácida, revelavam uma dulcíssima tranquilidade de espírito;
entreabria-lhe os lábios aprazível sorriso, e, de vez em quando, soltava deles
os nomes de pai, mãe, e outros como estes saudosos e
gratos ao coração da desventurada criança.
Agora sonhava que
se achava na aldeia, cercado da sua família ou brincando com os seus
companheiros de infância; depois, que trepava ao cimo das árvores em busca de
um ninho de rola, ou de pombo torcaz; derribava às pedradas as maçãs e as
nozes; corria ao bosque a fazer assobios da casca do castanheiro, ou ao
ribeiro para construir moinhos de junco; logo subia ao alto da montanha,
coroada por uma ermida, em roda da qual andava o tambor chamando para a
romaria. Por último sonhava que era noite de S. João, que todo o vale estava iluminado
pelas fogueiras acesas nos outeiros, e o inundavam de alegria o repique dos
sinos, os morteiros, as cantigas e os gritos de jubilo, que acompanham sempre
aquela festa clássica e essencialmente infantil!
Embalado nestes
sonhos deliciosos, que lhe representavam todos os encantos do seu país natal,
sonhos que melhor do que ninguém pode adivinhar o autor deste livro, porque também
chorou e sonhou como Ângelo, não ouviu o pobre menino as sete horas que bateram
compassadas no relógio do escritório.
Manoel e Mariano
(eram estes os nomes dos dois caixeiros do banqueiro) desceram as escadas, e
vendo que Ângelo se não tinha ainda levantado, dirigiram-se para o seu
aposento.
— É melhor acordá-lo, dizia Manoel, porque se
chega D. Lucas e o encontra a dormir não deixa de lhe fazer a operação do
costume.
— E que tem lá isso? replicou Mariano, para
nós é até um divertimento. A pena que me resta é não haver aqui à mão um bom
molho de urtigas.
— Não tenhas mau coração. Já não sofreu pouco ontem
o pobre pequeno, principalmente com a história da balança.
— E que tem que sofresse?! Também nós sofríamos
quando éramos como ele.
— Pois por isso mesmo que a nós nos trataram
mal é que eu entendo, que devemos tratar agora bem os que se acham em idênticas
circunstâncias.
E dizendo isto, aproximou-se
da cama de Ângelo, e principiou a abaná-lo e a chamar por ele; mas o menino
estava tão ferrado no sono, que continuava a dormir profundamente.
— Que é lá isso, perguntou D. Lucas, aparecendo
à porta do quarto. Então esse estúpido ainda está na cama?!
— Está, sim, senhor, respondeu Mariano.
D. Lucas proferiu
uma praga e acrescentou, dirigindo-se a Mariano:
— Vais ver como esperta num instante. Traz-me
lá de cima, da talha, uma bilha d'água para se lhe aplicar o remédio.
Mariano, que
parecia feito à semelhança de D. Lucas, obedeceu de pronto, e largou pelas
escadas acima, esfregando as mãos de contente. No primeiro andar, e debruçado numa
varanda de ferro que dava para o pátio interior da casa, coberto por um tolde,
estava Turíbio, escutando o que se passava em baixo, pois dali se ouvia tudo
perfeitamente.
— Que temos, snr. D. Mariano, perguntou ele ao
caixeiro.
— Vou buscar uma
bilha d'água para fazermos a operação.
— Ao rocim-chegado?
— Nem mais nem menos; vem daí, se te queres
rir.
— Isso já a mim me palpitava, que se lhe havia
de fazer o remédio. Mas a água não deve ser da talha; essa está
pouco fria por causa da proximidade do fogão. Temos aqui um bom jarro dela,
que, de propósito, deixei ficar de noite sobre o alpendre.
— És um rapaz de talento, Turíbio! exclamou,
rindo, Mariano, em quanto o bruto do criado pegava no jarro da água.
— Deve estar excelente! acrescentou, vendo-a
coberta de uma espessa crusta de gelo, que foi quebrando com os nós dos dedos,
à maneira que descia os degraus da escada.
Turíbio não quis
privar-se do bárbaro gozo de assistir ao martírio que ia sofrer a pobre criança,
e correu, todo alvoroçado, atrás de Mariano.
Dom Lucas pegou no
jarro, e afastando para o lado a roupa que cobria o menino até ao pescoço,
despejou-lhe de golpe toda a água por sobre o peito, com grande satisfação
de Mariano e Turíbio. Manoel, esse, coitado, estava compungido da sorte do
rapazinho. Ângelo soltou um grito e ergueu-se de súbito, ao sentir no corpo a água
gelada.
— Isto é para ver se acordas! disse D. Lucas,
e completou a frase com uma nova praga.
O menino não
replicou, nem tratou sequer de desculpar-se. Atirou imediatamente consigo da
cama abaixo, e vestiu-se sem proferir uma palavra. Os seus olhos não derramavam
lágrimas, mas derramava sangue o seu coração! Tinha à cabeceira da cama uma
estampa, já enegrecida pelo tempo, representando Jesus crucificado. Ergueu os
olhos para a divina imagem e exclamou no intimo de sua alma aflita:
— Senhor, levai-me já para o céu ou para as
minhas montanhas!
Do seio daquela
nuvem de tristeza que o cercava, luziu para o pobre Ângelo um raio de
esperança. Pelas conversas que ouviu, de D. Lucas e dos seus companheiros, veio
no conhecimento de que os caixeiros do banqueiro tinham licença de sair nos
dias santificados e para logo concebeu a esperança de gozar também desse
prazer, libertando-se da tristeza e da opressão de toda a semana, naquele dia
de folga e de liberdade.
De quantas
necessidades experimentava era por certo a maior a de respirar por algum tempo
livremente, vendo o céu e o sol, as árvores e os campos.
Manoel era o único
que dirigia a palavra a Ângelo sem aquela aspereza e zombaria com que sempre
lhe falavam D. Lucas e Mariano. Por isso, depois de dois dias de hesitação,
abalançou-se o menino a perguntar-lhe se também lhe dariam, a ele, licença para
sair ao domingo para o campo..
— De certo, isso
nem se pergunta, respondeu Manoel.
Esta resposta, que
a outro qualquer pareceria em extremo lacônica, fez verter lágrimas de
agradecimento e de alegria a Ângelo; de agradecimento porque encerrava em si um
tesouro de indulgência, comparada com as que todos os dias recebia naquela
casa, e de alegria por lhe vir confirmar as fagueiras esperanças que nutrira.
As palavras de D.
Lucas já não pareciam à inocente criança secas e desabridas, nem tão pouco se
lhe afiguravam cruéis os motejos de Mariano e de Turíbio; já não julgava insuportável
o trabalho a que o submetiam desde pela manhã até altas horas da noite, e até o
quarto em que dormia, úmido e frio, triste e isolado, lhe parecia confortável e
alegre desde que nele sonhava com os prazeres do domingo, embalado nas risonhas
esperanças de desfrutar, ao menos um dia na semana, gozos semelhantes àqueles,
que diariamente o deleitavam nos campos do seu país natal.
— Se os bosques e os prados da minha terra são
tão formosos, pensava ele, como não hão de ser encantadores os daqui, se
até por eles passeiam os reis e a sua corte? E quando as caçadas, lá nos meus
sítios, são tão divertidas, o que não acontecerá em Madrid, onde tudo deve
participar da grandeza da capital?
E os aprestes de
caça de D. Lucas! Como são ricos! a espingarda e o polvorinho marchetados de
prata, e as polainas e os correões bordados a seda! Muito me hei de divertir!
Parece-me que já estou a atravessar espessos bosques de carvalhos e
castanheiros seculares, a passar regatos cristalinos, e torrentes espumosas, e
a ver, a meu salvo, do alto de uma fraga, do cimo de uma colina ou da copa de
uma árvore, o javali e o veado perseguidos pelos cães. Por fim, ao cair da
tarde, quando tivermos reunido uma boa porção de formosas rezes, iremos descansar
debaixo das ramadas ou das nogueiras que fazem sombra aos casais, onde não
deixarão de nos oferecer excelente leite e fruta saborosa. E quando entrarmos
na cidade! Com que orgulho, com que alegria não atravessaremos nós essas ruas,
com grandes enfiadas de perdizes às costas, e trazendo à arreata uns poucos de
burros carregados de javalis e lebres!
Chegou finalmente o
domingo tão desejado. O céu apareceu límpido e puro; despontou o sol mais
formoso que nunca, e um vento forte, que soprara toda a noite, tinha secado
completamente o solo. Tudo contribuía para aformosear e revestir de galas o dia
destinado a compensar Ângelo dos desgostos e maus tratos que sofrera até ali.
Na véspera à noite
tinha dito D. Lucas aos caixeiros, em presença dos donos da casa, que eram fiéis
observadores dos preceitos religiosos:
— Amanhã levantar cedo para
ouvir missa antes de partir para o campo.
Os caixeiros, e bem
assim D. Lucas, levantaram-se efetivamente muito cedo, mas não foi para ouvir
missa.
Bem se importava D.
Lucas com a missa, quando se tratava de caça que era o seu divertimento
favorito!
O sobrinho de
Quijano marcou tarefa a cada um dos rapazes. Ângelo foi encarregado de fazer
varetas de junco, Manoel de encher de pólvora os polvorinhos e de chumbo
as bolsas dos correões, e Mariano de fazer provisão de fulminantes.
Soou finalmente a
hora da partida; D. Lucas, Manoel e Mariano calçaram botins muito grossos,
afivelaram vistosas polainas bordadas a seda de diferentes cores, lançaram às costas
grandes sacos de caça e armaram-se não só de espingardas de dois canos, como também
de facas de mato; por último tiveram o cuidado de meter para os bolsos um bom
punhado de balas.
Ângelo olhava para aqueles
preparativos com indizível satisfação, e dizia com os seus botões:
— Estas polainas, estes enormes sacos de caça,
estas facas de mato e estas balas indicam que vamos correr montes espessos e
escabrosos, que a caça deve ser abundante e que de certo nos temos de haver com
javalis ferozes, e talvez até com ursos e lobos.
O que porém dava
que entender a Ângelo era ver que D. Lucas se dispunha a levar consigo os dois
cãesitos de casa do banqueiro, que não podiam ter forças para arrostar com
os perigos e fadigas de uma caçada como a que ele fantasiava na sua infantil
imaginação.
Saíram afinal, e
tomaram pela rua abaixo; “muito barata há de estar amanhã a caça!” diziam
algumas pessoas ao verem-nos passar.
E Ângelo, que não
compreendia a ironia que se continha nestas palavras, cada vez se confirmava
mais na ideia que tinha formado da caçada.
Quando avistaram a
porta de Toledo, ficou Ângelo a pular de contente; mais alguns passos apenas e
estavam no campo, onde ia recriar a vista na contemplação de uma perspectiva
encantadora; era esse o juízo que formava, e que tinha como certo.
Se tanto o
deleitavam as ridentes paisagens do seu país, com mais razão entendia a pobre criança
que o haviam de Cativar as dos arredores de Madrid, a capital da Espanha
onde tudo devia ser magnífico e admirável.
Lá, na frente,
pensava ele, hão de avistar-se talvez grandes montanhas cobertas de frondoso
arvoredo; a um lado elevar-se-á uma verde colina coroada pelas ruínas de um
castelo misterioso e sombrio; do lado oposto erguer-se-ão às nuvens penhas
alcantiladas, por entre as quais se despenharão com rouco bramido impetuosas
torrentes, e pelas faldas dos montes há de estender-se por certo uma veiga
deliciosa, semeada de casinhas brancas, e regada por um rio caudaloso, em cujas
ribas estarão colocados, destacando no horizonte, inúmeros moinhos, completando
a paisagem com os seus tetos elegantes e pitorescos...
É este o espetáculo
grandioso, que vai, num momento, oferecer-se aos meus olhos!
E vendo que estavam
quase a chegar à porta, desceu Ângelo a vista com o propósito firme de a não
levantar, em quanto não sentisse debaixo dos pés a erva do campo, para assim
poder abranger a um tempo e de repente, o formoso panorama, que se lhe
desenhava na mente.
A areia e a brisa
subtil do Guadarrama, e não esse tapete de mimosa relva, que sonhara, lhe fizeram
conhecer que já se achava fora de Madrid.
Ergueu de súbito os
olhos e abarcou ansioso com a vista a paisagem, que tinha diante de si.
Ai! que diferença
entre o panorama, que se lhe apresentava e aquele que fantasiara na sua pueril
imaginação!
Em frente limitavam
o horizonte os cerros escalvados e agrestes de Santo Isidro, coroados não de árvores
formosas e de castelos misteriosos, mas sim de telhados denegridos pelo fumo e
de lúgubres cemitérios, circundados de muros de terra. Do lado esquerdo uma
planície estéril e monótona, da qual os acidentes mais belos são o cerro dos
Anjos e o cerro Negro. à direita as vendas ou retiros miseráveis e as áridas
encostas, que dominam a ponte de Segóvia; e em baixo, na planície, o triste
Manzanares, arrastando-se penosamente por entre muladares e lavadouros!...
Um cruel desalento
e uma profunda melancolia se apoderaram para logo de Ângelo; contudo não perdeu
de todo a esperança de deparar com o paraíso dos seus sonhos.
— Quem sabe? pensava ele, talvez que ao
transpor aquelas iminências se descubra uma paisagem menos árida e triste do
que esta que daqui se observa. E seguindo os seus companheiros, atravessou o
Manzanares pela ponte de Santo Isidro. De repente D. Lucas parou, recomendando,
por sinais, aos outros que não fizessem bulha. Todos obedeceram, e ele então
adiantou-se, nas pontas dos pés, agachando-se cautelosamente, e com os perros
da espingarda levantados.
Ângelo supôs que D.
Lucas teria avistado alguma lebre, ou pelo menos um bando de perdizes. Por fim
o grande caçador de Madrid disparou a arma, e exclamou cheio de alegria:
— Lá caiu, lá caiu! Àquele já ninguém lhe
vale!
E desapareceu por
entre os choupos da margem do rio. Alguns momentos depois tornou a aparecer,
mostrando triunfante um pássaro ribeirinho que acabava de
matar!
As ilusões de Ângelo
sofreram um novo golpe. Que caçada era aquela em que os caçadores se
alvoroçavam tanto com a morte de um passarito? Para que serviam então tantas
balas, tantas facas de mato e tantos sacos e correões de caça?!
Os caçadores
treparam aos cerros de Santo Isidro, e Ângelo dirigiu a vista para o novo horizonte.
Ali, como na porta de Toledo, não via para todos os lados para onde olhava,
senão áridas serranias, colinas escalvadas, umas poucas de árvores raquíticas,
e alguns silvados e espinhais, contornando o regato de Luche.
D. Lucas não
desanimava como Ângelo. Atravessando campos semeados, atrás de um pardal ou de
uma cotovia, foi-se afastando, poupo e pouco, seguido pelos seus companheiros. Ângelo
já se sentia fatigado, e outro tanto acontecia aos dois improvisados cães
de caça. Sentou-se por fim numa pedra, e os cãesitos, vencidos igualmente de
cansaço, deitaram-se num rego do campo; D. Lucas, porém, vendo isto, deu um
empurrão à pobre criança, e afagando os cães, obrigou-a a carregar com eles. —
“Tu que não podes leva-me às costas.”
Como D. Lucas
seguisse a margem do ribeiro de Luche, saltou-lhe um coelho de entre os pés. D.
Lucas disparou-lhe um tiro a corta-mato, porém o coelho prosseguiu no seu
caminho sem ter sofrido o mais leve incomodo.
O caçador soltou
uma praga e afirmou aos seus companheiros, que o coelho ia ferido, e que se não
tinha morrido logo ali, a culpa não era sua, mas sim da pólvora, que não prestava
para nada. E o pobre Ângelo que já não podia com o corpo, e menos ainda com a
alma, continuava a segui-los, carregado com os cães.
Com estas e outras
proezas foi passando o tempo, e os caçadores tomaram por último o caminho de
Madrid, levando nos correões meia dúzia de passaritos.
De vez em quando Ângelo
ficava para traz, e o sobrinho do banqueiro ajudava-o então a andar,
proferindo uma praga, ou dando-lhe um pontapé.
Junto à porta de
Toledo, encontraram um caçador, que levava quatro coelhos.
— Olá, tio Lobo! disse D. Lucas; pelo que vejo
não lhe correu mal, hein?
— Assim, assim, snr. D. Lucas; e o senhor, que
tal?
— Ora deixe-me, homem, estou desesperado com
esta maldita pólvora.
— Então que tem? está úmida, talvez?
— Nada, úmida não está; mas não sei o que tem,
que não presta para nada; dei hoje mais de vinte tiros, e vi fugir todas as
peças de caça feridas.
— Pois a mim é que isso não acontece; a caça
que me fugir preguem-m'a na testa. Tenho uma pólvora de contrabando, que não
quero que haja melhor.
— Homem, vende-me vocemecê uns poucos de arráteis?
— Com muito gosto, snr. D. Lucas; qualquer dia
destes lá lhos levo a casa.
— Muito bem. Vamos agora a ver esses bicharocos.
— Pode ver à vontade,
que são quatro peças de caça asseadas.
— Isso vejo eu. Provavelmente são para vender
na praça?...
— Está bem de ver, nem a gente vive de outra
coisa.
— Pois, nesse caso, fico eu com os coelhos.
— Estão às suas ordens, snr. D. Lucas.
— E quanto lhe hei de dar por eles?
— Dá-me aquilo que o senhor quiser.
— Está bom, aí tem um duro, serve?
— Muito obrigado, snr. D. Lucas. O que eu
desejo é que os senhores os comam com saúde. Até outra vez, se Deus quiser.
— Adeus, tio Lobo.
O verdadeiro caçador
tomou a dianteira aos caixeiros de Quijano. D. Lucas tratou logo de enfeitar o
seu correão com os quatro coelhos, e pouco depois entrava em Madrid, tão
inchado que não cabia na rua de Toledo, e causando inveja àqueles que ainda
pela manhã tinham zombado dele.
Dois ou três dias
depois da famosa caçada, estavam no gabinete de D. João Quijano, palestreando
junto do fogão, o banqueiro, seu sobrinho D. Lucas e quatro ou cinco amigos
íntimos da casa.
Fora, no escritório,
trabalhavam em silêncio os caixeiros e com eles Ângelo, cujas cores rosadas iam
pouco e pouco desaparecendo, e cuja tristeza era cada vez mais profunda.
— Como vamos nós de caça, D. Lucas? perguntou
um dos amigos.
— às mil maravilhas, respondeu D. Lucas.
— Meu sobrinho, acudiu o banqueiro, está sendo
o rei dos caçadores! Pois não sabem que, domingo, teve a habilidade de se
apresentar aqui com quatro coelhos, que pareciam quatro bezerros?!
— Que nos diz, homem?
— Nem mais nem menos, é como lhes conto.
Aprendam como ele a matar coelhos onde ninguém os costuma matar, nos subúrbios
de Madrid.
— Sempre queria saber como isso foi, disse um
dos interlocutores.
— Tem pouco que saber, disse D. Lucas. Matei
domingo quatro coelhos, junto ao ribeiro do Luche. Aquilo foi num abrir e
fechar d'olhos, e é preciso advertir que a pólvora não prestava para nada.
— Não sei como isso se faz; eu cá, por mais
voltas que dou, não sou capaz de levantar um coelho por estas vizinhanças.
— É porque os senhores são caçadores das
dúzias! Eu por mim, nem sequer preciso de cão; havendo coelho, está pronto;
faço-o saltar, e depois de lhe atirar, nem todos os santos lhe valem, porque
onde eu puser a vista ponho o tiro. Pum! coelho a terra!... Os quatro de
domingo foi um momento em quanto caíram.
— Pois, senhor, não tem que ver, é um bom
caçador!
Disso está ele
convencido. A caçada de domingo há de ser apregoada por toda a cidade; não
fala de outra cousa a quantas pessoas aqui entram!
Estava ainda o
sobrinho do banqueiro narrando, com toda a miudeza, como matara os quatro
coelhos, quando entrou no escritório o tio Lobo, que ia levar a D. Lucas os
dois arráteis de pólvora de contrabando, que este lhe encomendara.
— Esta aí o snr. D. Lucas? perguntou o caçador
aos caixeiros.
— Sim, senhor, respondeu Ângelo.
— Pois faça favor de lhe dizer que está aqui fora
o tio Lobo, que o procura.
O pequeno entrou no
gabinete.
D. Lucas, que ainda
não tinha acabado de contar como matara os quatro coelhos, ficou logo furioso
por lhe interromperem a história, e antes que o pequeno tivesse tido tempo de
falar, perguntou-lhe, com aquela amabilidade que lhe era própria:
— Que queres tu daqui, borrego?
— É que está ali fora o Lobo, respondeu Ângelo.
Desataram todos a
rir, vendo a relação casual, que havia entre a pergunta e a resposta.
Não era para
admirar que Ângelo omitisse a denominação de tio, que costumava
preceder o nome do caçador, porque esse tratamento, que é tão vulgar em quase
toda a Espanha, não se usava nem se usa, na sua província, senão quando o
justificam os laços de consanguinidade. Julgando por tanto que se riam por não
se haver explicado bem, ficou corrido de vergonha, e tratou de se fazer compreender
melhor.
— Parece-me que é assim que tenho ouvido
chamar-lhe; e acrescentou, “é aquele caçador a quem o senhor comprou domingo os
quatro coelhos junto à porta de Toledo.”
Estas palavras de Ângelo
foram acolhidas com uma gargalhada ainda mais ruidosa do que a anterior, porém
menos inofensiva; uma gargalhada de mofa, insultante, sangrenta, e isto porque
os caçadores têm dois grandes defeitos; são geralmente embusteiros e invejosos,
e assim como não perdem a ocasião de mentir, também não perdem nunca o ensejo
de humilhar os que caçam, ou supõem caçar mais do que eles.
D. Lucas ficou por
espaço de um segundo imóvel, envergonhado e corrido; porém, de repente, injetaram-se-lhe
os olhos de sangue, ingurgitaram-se-lhe as veias, e tornou-se completamente
lívido e desfigurado.
Arremessou-se como
um tigre sobre a pobre criança, vociferando e praguejando como possesso, e
lançando-lhe as mãos ao pescoço, levou-a de encontro à parede e começou a
descarregar-lhe furiosas patadas no estômago, antes que D. João e as outras
pessoas, que se achavam presentes, tivessem tido tempo para se interpor entre
aquela fera e o inocente cordeiro, que, por única defesa, invocava o nome de
sua mãe.
Oh! tu, Fernán
Caballero, nobre e generoso cantor do nosso bom povo espanhol, amigo dos pobres
de espírito e dos ricos de coração, que tens cabeça de homem para pensar e alma
de mulher para sentir; tu que és o amigo por excelência dos meninos e das mães,
dos fracos e dos atribulados; tu que buscas e encontras as dores e as aflições
do próximo, onde as almas vulgares as não descobrem, e que, com
tanto sentimento e caridade, as pranteias, dize-me, meu bom Fernando, não
achas que os sábios legisladores da humanidade tem sido extremamente cruéis e
ignorantes, pondo os meninos debaixo da salvaguarda do código, que protege os
homens, em vez de os acobertar com a égide celeste do código que protege os
anjos?!
Alguns meses haviam
já decorrido depois do dia em que Ângelo escapou, por milagre, de morrer às mãos
de D. Lucas.
Era por uma
aprazível manhã de primavera. A sala de jantar de D. João Quijano tinha uma
janela, que olhava para o norte. Em quanto o banqueiro e sua mulher tomavam
chocolate na sala, Ângelo fora para a varanda, e ali se conservava, com a vista
imóvel e fixa na direção do seu país.
O pobre pequeno
estava mais alto do que quando chegara das montanhas de Biscaia, porém
tinha emagrecido consideravelmente. Cobria-lhe o rosto uma palidez mortal, e
nos seus belos olhos, tão meigos e simpáticos, retratava-se-lhe a profundíssima
tristeza que lhe ia n'alma.
— O que fazes tu aí, Ângelo? perguntou
carinhosamente D. Joana.
O menino não
respondeu.
— Oh! meu Deus! O que terá esta criança?! acrescentou
a mulher do banqueiro, com verdadeira aflição.
— Não sei o que ele tem, Joana, mas ninguém me
tira da cabeça que está doente desde que Lucas lhe bateu, apesar do médico
dizer, passados quinze dias, que o considerava completamente restabelecido.
— Queira Deus que Lucas lhe não tornasse a pôr
a mão.
— Não, filha; por isso fico eu. Mas vejo-o tão
abatido e melancólico, que receio muito pela sua existência.
— Ai! Nossa Senhora permita que te enganes. Ângelo
se chama e foi ele na verdade um anjo que trouxe a paz e a harmonia à nossa
casa; porque, desde que para aqui veio esse menino, nós que sempre
andávamos de rixa, estamos inteiramente mudados, e tenho fé em que ele há de
acabar por abrandar e adoçar por uma vez este meu maldito gênio.
— Assim é, Joaninha, exclamou o banqueiro comovido;
sempre esperei que quando tivesses um filho, se operaria em ti uma grande
mudança. Não quis Deus conceder-nos essa ventura, mas enviou-te em compensação
essa criança, a quem queres hoje quase tanto como se foras sua mãe.
— Quem sabe se o que tem o pequeno é um desejo
ardente de voltar para a sua aldeia... suspirava tanto por isso, a princípio...
— Também me não parece que seja essa a causa
do seu sofrimento. Desde que os pais lhe disseram numa carta, que era ele o único
amparo com que contavam para a velhice, e que, se voltasse para a terra, nada
poderia fazer em benefício deles, não cessa de dizer que está satisfeito em
Madrid, e até quando alguma vez se encontra de bom humor, costuma repetir o
provérbio “de Madrid só para o céu”.
— Pois é preciso
mandar chamar o médico, porque se não cuidarmos dele vai cada dia a pior. Ângelo,
acrescentou D. Joana, chamando novamente pelo menino.
Este deixou como
assustado a imobilidade em que estava, olhou novamente com inefável languidez
para o norte, e entrou na sala.
— Que tens tu, meu filho? perguntou-lhe com
ternura D. Joana, correndo-lhe a mão pela cara.
— Não tenho nada, respondeu Ângelo.
— O que fazias na varanda?
— Nada; estava a ver o sol.
— Vamos, senta-te aqui, e toma chocolate conosco.
— Não me apetece.
— Mas o que é isso? O que te falta? Não te
quero eu como se fora tua mãe?
O menino não
respondeu; arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas, e os de D. Joana também.
— Olha, acrescentou esta, não vás outra vez
para a varanda que te faz mal o sol; vai antes um bocado até ao escritório, não
para trabalhar, mas para ver se te distrais com os teus companheiros.
Ângelo saiu da
sala, e desceu a escada.
Ás três horas,
subiram para jantar D. Lucas, e os dois caixeiros Manoel e Mariano.
— Onde ficou Ângelo? perguntou D. Joana.
— Não veio cá para cima.
— Virgem santíssima! Onde estará então a pobre
criança?!
— Talvez se fosse deitar.
— D. Joana correu pressurosa ao quarto de Ângelo,
e foi encontrá-lo na cama.
— O que quer isso dizer, filho? O que tens?..
Estás doente?
— Sim, minha senhora, respondeu Ângelo com voz
sumida.
— Então o que te dói?
— Não me dói nada, mas sinto-me doente.
— Turíbio! Turíbio! vai, corre chamar o médico,
que está o menino doente, gritou da escada D. Joana.
Pouco depois chegou
o médico. Tomou o pulso a Ângelo, e fez um gesto de mau agouro.
— É coisa grave? perguntaram a um tempo, e com
ansiedade, D. Joana e o banqueiro.
— Gravíssima, respondeu o médico... e
observando-o novamente, acrescentou, em voz baixa, dirigindo-se ao dono da casa;
— está quase a morrer.
Ângelo abriu por um
momento os seus meigos olhos, cujo brilho estava já empanado pelo sopro da
morte, volveu-os para a imagem do Senhor crucificado, como querendo
expressar-lhe profunda gratidão, e fechou-os logo, para nunca mais os tornar a
abrir.
Todos prorromperam
em amargo pranto, à exceção de D. Lucas.
— E de que morreu? perguntou este ao médico,
que tinha antecipadamente interrogado a família acerca dos padecimentos de Ângelo.
— Morreu, lhe tornou o médico, de uma afecção moral,
para cujo desenvolvimento contribuíram por certo padecimentos físicos. Os
meninos são homens no sentimento, e crianças no vigor; por isso Deus amaldiçoa
os seus opressores. Este menino morreu da mais santa de todas as enfermidades;
morreu de Nostalgia.
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Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Fonte:
Antônio de Trueba: Contos Escolhidos. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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