O ANACREONTE
DE CANDEMIL
Ao declinar
do dia, pela tortuosa vereda que ia dar à estrada, seguia vagarosamente o tio
Ambrosio, que voltava dos campos, com a enxada ao ombro. Como àquela hora
silenciosa estava o caminho deserto, ouvia-se-lhe de longe o bater compassado e
sonoro dos tamancos nas pedras da calçada.
Logo adiante
do carvalhal, e antes de chegar ao cruzeiro confinante ao adro, ficava a
taberna. Eminente sobre a porta estava pendente o ramalho verde de loureiro,
que a viração fresca da tarde agitava, raspando-o pelo cunhal da ombreira. Da
frincha das portas mal cerradas saía para a penumbra crepuscular exterior uma
réstia de luz amarela, que se estendia pela estrada até ao talude saibrento,
que murava o caminho do outro lado.
O tio
Ambrosio endireitou com a taberna, impeliu uma das portas, e entrou.
Dentro,
abancados em torno da mesa, estavam já os parceiros da bisca. A taberneira,
matrona de papeira, seio farto e braços arremangados, assistia à conversa,
sentada a um canto, com os cotovelos fincados no balcão. Junto dela dormia
pachorrentamente um gato maltês, zebrado, encolhido sobre as patas, como um
novelo. à entrada de Ambrosio o gato ergueu repentinamente a cabeça e abriu os
olhos espantados; mas, depois, como a visita lhe não fosse estranha, foi
deixando, pouco a pouco, descair a cabeça, fechou os olhos, e permaneceu na
mesma posição, a ressonar.
Ao lado de
cada freguês havia um copo de vinho; e a luz da candeia, pendurada em cima,
refrangendo-se na superfície do vidro, projetava, em torno de cada copo, um
circulo sanguíneo.
*
* *
O tio
Ambrosio de Candemil levava a vida airada a cantar e a beber! Tinha já sessenta
anos, cabelos brancos que nem uma estriga carada, voz trêmula, nariz rubro e
verrugoso; mas que lhe saísse a desafio a cachopa mais palreira, que ele
saltava logo:
Não sei que mal deu agora
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
E depois,
com a jaqueta lançada ao ombro, o chapéu derrubado para a nuca, ainda o
Ambrosio cantava e foliava, como um rapagão de vinte anos.
Em idade
tenra e menos canseirosa, arraial em que ele não aparecesse, era como se
faltasse o pregador em festa de romaria! Esperava-se por ele até ao fim.
Espreitava um daqui, outro de acolá; e, quando na azinhaga aparecia o chapéu de
sol de paninho escarlate, era logo uma gritaria:
— Aí chega o tio Ambrosio.
— Olha que tal ele vem!
E o
guarda-sol oscilava de um e de outro lado, roçando pelos silvedos, como a vela
de um navio que bordeja à toa, perdido o rumo!
*
* *
O tio
Ambrosio entrara silencioso na taberna, acendeu um cigarro ao pavio da candeia,
e encostou-se a ver jogar. Um dos fregueses falou-lhe em sentar-se.
— Hoje não — opôs ele peremptoriamente.
— Só uma bisca, tio Ambrosio.
— Já disse — insistia ele, chupando o cigarro.
— Nada; que eu bem sei como o jogo é. Uma comparação: é como quando um homem
trepa acima de uma cerejeira, que, em tirando por uma cereja, vem logo uma mão
cheia delas.
Os outros,
que já lhe sabiam a balda, calavam-se. O silêncio contrariava-o Precisava que
insistissem, para assim desculpar a consciência. Ao cabo de dez minutos,
atirava fora com a ponta do cigarro, e dizia:
— Com'assim vá lá. Mas só três jogos, e
arrumou.
Espevitava-se
o morrão da candeia, cedia-se o lugar respectivo, e então é que era ver a
partida.
O jogo
corria silencioso até quase ao fim; mas, depois, o tio Ambrosio, com as cartas
abertas em leque na mão esquerda, e com uma carta levantada na outra mão,
olhava de soslaio o adversário da direita, e principiava:
— Ora ponha-me aqui a bisca, ainda que lhe
custe.
E batia com
a carta sobre a mesa de um modo triunfante.
O do lado
jogava uma carta de trunfo. E o tio Ambrosio a tremer, irritado, com o punho
cerrado suspenso sobre as cartas, suplicava ao jogador, que tinha defronte:
— Recorte, parceiro, recorte.
— Recorte — repetia o outro por entre dentes,
— recorte o quê? olhe.
E jogava a
bisca.
O Ambrosio,
então bebia de um trago meio copo de vinho, e exclamava desesperado:
— As cartas tem o demo!
No fim
perdia o jogo; e, como os adversários renovavam o vinho, e ele enchia o copo
que lhe pertencia, perdia o juízo.
Havia já muito
tempo que lhe era difícil topar na terra um parceiro amigo para a sueca.
— Adeus! — diziam-lhe eles, encolhendo os
ombros. — Quando você pega num baralho, até parece que lhe dá o
trangulomangulo. Coisa assim!…
O vício da
jogatina passou-lhe ao cabo destes repelões; mas, por desgraça, foi procurando
no copo a distração que lhe faltava no baralho. Daí em diante, diga-se em abono
da verdade, o tio Ambrosio só cantava e bebia.
Canta que
logo bebes, diz o rifão.
Com o tio
Ambrosio, porém, mudava o caso de figura. Bebia primeiro, bebia depois, bebia
no fim; e desatava a cantar que nem um rouxinol.
Ora, depois
disto, em que tenho a glória de ser o Plutarco deste herói, vejam se andei mal,
chamando-lhe Anacreonte de Candemil.
A distância
que vai de Ambrosio a Anacreonte mede-se pela que vai do tamanco transmontano à
sandália grega, das cepas tortas de Amarante aos vinhais racimosos de Chios,
das faldas agrestes do Marão às formosas marinhas da Jônia, província das
violetas.
*
* *
Pelos
primeiros dias de maio, antes das festas do Espírito Santo, o céu estava sereno
e azul, as árvores frondentes, e na ramaria dos bosques gorjeavam os melros.
Havia flores nos prados, flores nas encostas, flores por toda a parte. A
natureza enfeitava-se como noiva graciosa que se prepara alegre para o festim
dos esponsais.
Pois, quando
havia tanta luz, tanta vida, tanto amor, gorjeios pelos ninhos e rosas pelos
silvados, era triste pensar que alguém estava para deixar a vida!
Logo de
madrugada o sr. abade atravessou da residência para o adro, antes da primeira
missa do dia. O sino principiou a dar o sinal do Senhor fora.
E Daí por
alguns minutos, o Viático seguia por um atalho, ao canto plangente do Bendito,
entoado em coro pelas mulheres, que caminhavam atrás, acompanhando o Sagrado.
O palio
parou à porta da casa em que morava o tio Ambrosio de Candemil.
Dentro,
sobre uma arca de castanho, revestida com toalha de linho, estava um crucifixo
ladeado de duas tocheiras de chumbo. A um canto da sala, o velho Ambrosio
agonizava reclinado no espaldar do leito. Não tinha na face a alegria expansiva
dos últimos dias, em que cantarolava na taberna. Estava pálido, os olhos
amortecidos, as faces descarnadas, a boca enviesada de paralitico.
Foi
confessado e sacramentado.
O abade
abeirou-se lentamente do enfermo, com o cibório nas mãos.
Preparou-o
solenemente para o trespasse.
Quando lhe
ungia os lábios com os santos óleos, murmurando as palavras do ritual: — Per
istam unctiouem indulgent tibi Dominus quid quid delinquisti per gustum, o
Ambrosio fincou os punhos na enxerga, ergueu-se com esforço e ânsia, volveu os
olhos em torno do leito, como quem desperta de um sonho, e inclinando-se para o
abade, perguntou-lhe com voz débil e convulsa:
— É vinho?
E descaiu
lentamente para trás, com um sorriso de bem-aventurado a radiar-lhe a fronte —
como um justo que morre na esperança de encontrar na vida d'além-túmulo as
adegas bem providas de Amarante!
Talis vita,
finis ita.
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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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