quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: "O anacreonte de Candemil"


O ANACREONTE DE CANDEMIL

Ao declinar do dia, pela tortuosa vereda que ia dar à estrada, seguia vagarosamente o tio Ambrosio, que voltava dos campos, com a enxada ao ombro. Como àquela hora silenciosa estava o caminho deserto, ouvia-se-lhe de longe o bater compassado e sonoro dos tamancos nas pedras da calçada.
Logo adiante do carvalhal, e antes de chegar ao cruzeiro confinante ao adro, ficava a taberna. Eminente sobre a porta estava pendente o ramalho verde de loureiro, que a viração fresca da tarde agitava, raspando-o pelo cunhal da ombreira. Da frincha das portas mal cerradas saía para a penumbra crepuscular exterior uma réstia de luz amarela, que se estendia pela estrada até ao talude saibrento, que murava o caminho do outro lado.
O tio Ambrosio endireitou com a taberna, impeliu uma das portas, e entrou.
Dentro, abancados em torno da mesa, estavam já os parceiros da bisca. A taberneira, matrona de papeira, seio farto e braços arremangados, assistia à conversa, sentada a um canto, com os cotovelos fincados no balcão. Junto dela dormia pachorrentamente um gato maltês, zebrado, encolhido sobre as patas, como um novelo. à entrada de Ambrosio o gato ergueu repentinamente a cabeça e abriu os olhos espantados; mas, depois, como a visita lhe não fosse estranha, foi deixando, pouco a pouco, descair a cabeça, fechou os olhos, e permaneceu na mesma posição, a ressonar.
Ao lado de cada freguês havia um copo de vinho; e a luz da candeia, pendurada em cima, refrangendo-se na superfície do vidro, projetava, em torno de cada copo, um circulo sanguíneo.
* * *
O tio Ambrosio de Candemil levava a vida airada a cantar e a beber! Tinha já sessenta anos, cabelos brancos que nem uma estriga carada, voz trêmula, nariz rubro e verrugoso; mas que lhe saísse a desafio a cachopa mais palreira, que ele saltava logo:
Não sei que mal deu agora
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
E depois, com a jaqueta lançada ao ombro, o chapéu derrubado para a nuca, ainda o Ambrosio cantava e foliava, como um rapagão de vinte anos.
Em idade tenra e menos canseirosa, arraial em que ele não aparecesse, era como se faltasse o pregador em festa de romaria! Esperava-se por ele até ao fim. Espreitava um daqui, outro de acolá; e, quando na azinhaga aparecia o chapéu de sol de paninho escarlate, era logo uma gritaria:
 — Aí chega o tio Ambrosio.
 — Olha que tal ele vem!
E o guarda-sol oscilava de um e de outro lado, roçando pelos silvedos, como a vela de um navio que bordeja à toa, perdido o rumo!
* * *
O tio Ambrosio entrara silencioso na taberna, acendeu um cigarro ao pavio da candeia, e encostou-se a ver jogar. Um dos fregueses falou-lhe em sentar-se.
 — Hoje não — opôs ele peremptoriamente.
 — Só uma bisca, tio Ambrosio.
 — Já disse — insistia ele, chupando o cigarro. — Nada; que eu bem sei como o jogo é. Uma comparação: é como quando um homem trepa acima de uma cerejeira, que, em tirando por uma cereja, vem logo uma mão cheia delas.
Os outros, que já lhe sabiam a balda, calavam-se. O silêncio contrariava-o Precisava que insistissem, para assim desculpar a consciência. Ao cabo de dez minutos, atirava fora com a ponta do cigarro, e dizia:
 — Com'assim vá lá. Mas só três jogos, e arrumou.
Espevitava-se o morrão da candeia, cedia-se o lugar respectivo, e então é que era ver a partida.
O jogo corria silencioso até quase ao fim; mas, depois, o tio Ambrosio, com as cartas abertas em leque na mão esquerda, e com uma carta levantada na outra mão, olhava de soslaio o adversário da direita, e principiava:
 — Ora ponha-me aqui a bisca, ainda que lhe custe.
E batia com a carta sobre a mesa de um modo triunfante.
O do lado jogava uma carta de trunfo. E o tio Ambrosio a tremer, irritado, com o punho cerrado suspenso sobre as cartas, suplicava ao jogador, que tinha defronte:
 — Recorte, parceiro, recorte.
 — Recorte — repetia o outro por entre dentes, — recorte o quê? olhe.
E jogava a bisca.
O Ambrosio, então bebia de um trago meio copo de vinho, e exclamava desesperado:
 — As cartas tem o demo!
No fim perdia o jogo; e, como os adversários renovavam o vinho, e ele enchia o copo que lhe pertencia, perdia o juízo.
Havia já muito tempo que lhe era difícil topar na terra um parceiro amigo para a sueca.
 — Adeus! — diziam-lhe eles, encolhendo os ombros. — Quando você pega num baralho, até parece que lhe dá o trangulomangulo. Coisa assim!…
O vício da jogatina passou-lhe ao cabo destes repelões; mas, por desgraça, foi procurando no copo a distração que lhe faltava no baralho. Daí em diante, diga-se em abono da verdade, o tio Ambrosio só cantava e bebia.
Canta que logo bebes, diz o rifão.
Com o tio Ambrosio, porém, mudava o caso de figura. Bebia primeiro, bebia depois, bebia no fim; e desatava a cantar que nem um rouxinol.
Ora, depois disto, em que tenho a glória de ser o Plutarco deste herói, vejam se andei mal, chamando-lhe Anacreonte de Candemil.
A distância que vai de Ambrosio a Anacreonte mede-se pela que vai do tamanco transmontano à sandália grega, das cepas tortas de Amarante aos vinhais racimosos de Chios, das faldas agrestes do Marão às formosas marinhas da Jônia, província das violetas.
* * *
Pelos primeiros dias de maio, antes das festas do Espírito Santo, o céu estava sereno e azul, as árvores frondentes, e na ramaria dos bosques gorjeavam os melros. Havia flores nos prados, flores nas encostas, flores por toda a parte. A natureza enfeitava-se como noiva graciosa que se prepara alegre para o festim dos esponsais.
Pois, quando havia tanta luz, tanta vida, tanto amor, gorjeios pelos ninhos e rosas pelos silvados, era triste pensar que alguém estava para deixar a vida!
Logo de madrugada o sr. abade atravessou da residência para o adro, antes da primeira missa do dia. O sino principiou a dar o sinal do Senhor fora.
E Daí por alguns minutos, o Viático seguia por um atalho, ao canto plangente do Bendito, entoado em coro pelas mulheres, que caminhavam atrás, acompanhando o Sagrado.
O palio parou à porta da casa em que morava o tio Ambrosio de Candemil.
Dentro, sobre uma arca de castanho, revestida com toalha de linho, estava um crucifixo ladeado de duas tocheiras de chumbo. A um canto da sala, o velho Ambrosio agonizava reclinado no espaldar do leito. Não tinha na face a alegria expansiva dos últimos dias, em que cantarolava na taberna. Estava pálido, os olhos amortecidos, as faces descarnadas, a boca enviesada de paralitico.
Foi confessado e sacramentado.
O abade abeirou-se lentamente do enfermo, com o cibório nas mãos.
Preparou-o solenemente para o trespasse.
Quando lhe ungia os lábios com os santos óleos, murmurando as palavras do ritual: — Per istam unctiouem indulgent tibi Dominus quid quid delinquisti per gustum, o Ambrosio fincou os punhos na enxerga, ergueu-se com esforço e ânsia, volveu os olhos em torno do leito, como quem desperta de um sonho, e inclinando-se para o abade, perguntou-lhe com voz débil e convulsa:
 — É vinho?
E descaiu lentamente para trás, com um sorriso de bem-aventurado a radiar-lhe a fronte — como um justo que morre na esperança de encontrar na vida d'além-túmulo as adegas bem providas de Amarante!
Talis vita, finis ita.

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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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