quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: O abandono do moinho

O ABANDONO DO MOINHO

Á porta da azenha estava o macho intonso, preso pelo cabresto a uma argola da parede.
Enquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado, estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava o atalho.
De entre o ruído trêmulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas penas do rodízio, em baixo, ouvia-se gritar lá dentro:
 — Anda Daí, que são horas. Avia-te.
Depois, apareceu à porta o moleiro, com o chapéu enfarinhado caído para o ombro esquerdo, segurando no ombro direito o taleigo da fornada. Vinha ainda a gritar:
 — Despacha-te, rapariga. Mexe-te, filha.
E atirou com o fole para cima da besta. A moça veio depois, e carregou-a com um fole do outro lado. Atiraram-lhe em seguida a cilha para cima; e o moleiro com o joelho fincado na barriga do macho, principiou a apertar a carga, torneando o arrocho com esforço.
 — Pronto! Põe-te já a caminho, que eu não me delato, Terezinha.
Apenas se julgou fora do alcance da vista do pai, que se deixou ficar à porta, com uma perna cruzada sobre a outra, o chapéu braguês derrubado para os olhos, a vê-la subir a encosta, a rapariga saltou para cima do macho, ajeitou-se no meio dos taleigos, e continuou pelo atalho acima, a cantar:
Ao passar hoje no rio
Vi nas águas o teu rosto;
Cuidei que ias na levada…
Ai! coração que desgosto!
E ao ver o teu rosto ali
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrela
Tivesse caído ao fundo.
O moleiro voltou para dentro, a prover a moega de grão; enfiou depois a jaqueta de cotim axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha a um canto, fechou por fora a porta da azenha, arrecadou a chave, e abalou na piugada da filha.
Assim que chegou a meio do atalho, cortou à esquerda por uma quelha pedregosa, atravessou por um carreiro, que costeava uma bouça; e, fincando as mãos no muro tosco de rebos, saltou de um pulo para o meio da estrada.
Corriam os primeiros dias de março.
Como tinha descampado, havia pouco tempo, os caminhos estavam lamacentos, sulcados pelas rodas dos carros; e nas terras baixas viam-se ainda as águas da chuva empoçadas e cobertas de limo. O céu era de um azul cristalino, a atmosfera muito límpida; e, ao meio dia, quando o sol caia de alto nos prados, até parece que as roxas previncas, as flores amarelas do trevo e as margaridas, retraíam as corolas ao peso abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pessegueiros, que já floresciam, os melros assobiavam alegres, e no fundo azul do firmamento destacavam-se duas borboletas brancas que voavam dentre os silvados, subindo, subindo sempre, a tremer, num raio de sol doirado! Oh! era encantador!
O moleiro apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante, colocando a mão sobre os olhos, como uma pala, para ver se lobrigava a filha. A distância de trinta metros a estrada volteava para a direita. Uma copada deveza de sobreiros, ao fundo, não o deixava enxergar para além. Por isso, foi continuando por ali fora, apertando mais o passo, com os braços bamboleantes e a esbofar de calor.
De um lado e de outro, nos campos, fazia-se a lavoura. Duas juntas de bois castanhos, aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado, que ia levantando e revolvendo a leiva. Aquém e além, no declive do monte, dentre a verdura tenra da infesta, alvejavam as frontarias caiadas de alguns casalejos, batidos do sol do meio dia. Era um calor de rachar!
De um atalho, que ia dar à igreja, surgiu o sr. abade montado na sua égua, oh! uma boa égua de abade, gorda, pacífica e mansa que nem uma ovelha. Sua reverência vinha abrigado por um enorme guarda-sol de paninho azul, e o seu ventre redondo e farto oscilava pachorrentamente ao chouto pesado da cavalgadura.
 — Ó José moleiro, — chamou ele com voz de papo. — Eh! homem! Tu vais à cata dos franceses?
O moleiro descobriu-se respeitosamente, e, enxugando o suor da testa à manga da vestia, respondeu-lhe:
 — Vou ver se topo a minha Tereza, que foi levar a fornada da outra banda, a casa da morgada.
O abade, do alto da égua, continuou:
 — Vi-a ontem; e olha que está fera e bonita.
 — Escorreitinha é ela, graças a Deus, — disse o José, seguindo ao lado o passo da cavalgadura.
 — E é moça de tino, — prosseguiu o padre circunspectamente, — mas tem-me cuidado nela, que olha o demo, José, quando as arma, escolhe sempre do melhor, ouviste?
Mais adiante, ao passarem por um quinchoso, a cujo muro estava debruçada uma rapariga esguedelhada, com os braços pendentes para fora, perguntou-lhe o abade:
 — Que é de teu pai, ó cachopa?
 — Está a trabalhar nas obras do rio, sr. abade, — respondeu ela corando.
O abade esporeou a égua, e disse para si:
 — Ele é bem melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem duvida.
 — Pois quant'é! — concordou o moleiro, acenando afirmativamente a cabeça.
E continuaram ambos pela estrada, até a uma cangosta, por onde o abade meteu, deixando só o José moleiro.
O caminho agora descia, até ao rio, onde andavam as obras da ponte nova.
Já de longe se avistavam os trabalhadores.
Havia ali um grande movimento de gente. Por entre o tronco nu dos salgueiros, viam-se já as primeiras pedras do arco, subindo pelo simples de madeira, que se levantava de uma à outra margem.
Uma fileira de mulheres e crianças passavam constantemente da draga do areal com cestos carregados à cabeça. Antes de chegar ao rio, a estrada aparecia toda coberta de cascalho, que reluzia à luz intensa do meio-dia.
Como as águas tinham diminuído, uma barca com linguetas levadiças à proa e à popa, que servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava da outra banda, preza por amarras aos troncos de dois amieiros. As pessoas que tinham de atravessar o rio iam pelas alpondras desanegadas; mas quando acontecia aparecer uma cavalgadura, então era preciso que os trabalhadores lançassem sobre as pedras duas pranchas largas, que serviam de passadiço.
Quando a filha do moleiro chegou ao rio e ia a meter o macho na água, um dos homens, que ali estava, gritou-lhe:
 — Não metas o burro à água, rapariga; olha que te afogas e mais ele.
Espera que eu lá vou.
A rapariga sofreou o macho e esperou.
Ao aproximar-se o homem com a prancha de pinho levantada ao alto, o macho espantou-se, empinou as orelhas, recuou de súbito e, de um salto, atirou consigo e com a rapariga ao rio.
O trabalhador, que viu aquilo, principiou a gritar por socorro. Acudiram os outros; mas, quando chegaram, o macho tinha seguido para o meio, onde a corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A filha do moleiro caiu para o lado, estonteada do sobressalto e da sensação do frio; e os homens que lhe gritaram de terra viam-na seguir a cavalgadura com a mão preza na extremidade do cabresto.
Nesse momento, um homem que corria, muito aflito, pela vereda abaixo, logo que chegou à margem, atirou com o chapéu para a banda, e lançou-se de repente ao rio; mas apenas a água lhe bateu pelo tronco, estremeceu todo, bracejou um instante e apareceu estirado à flor da água, a boiar, com as faces roxas da congestão.
* * *
Quando ia ver as obras do rio — era esse o meu divertimento — façam ideia como eu fiquei!
Sobre uma escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos trabalhadores do rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro, com a boca entreaberta, os olhos vidrados e os lábios roxos.
Mais adiante, a dez passos, no meio da aglomeração curiosa de homens, de mulheres e de crianças, que comentavam e lamentavam o caso, descobri a desgraçada Terezinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de chita colada ao corpo pelo peso da água, deixando ver o contorno juvenil dos seus membros inteiriçados.
Ao lado, o macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos fitos no chão, estava naquele doloroso abatimento, em que deve precisamente ficar um homem, depois de se lhe ter disparado a espingarda contra o peito de um amigo!
E até parece que, diante daquele quadro fúnebre, os salgueiros do rio, debruçando-se melancólicos sobre as águas, entoavam, balouçados pela aragem, uma vaga lamentação de tristeza!
* * *
Ao passar, alta noite, pelo atalho da azenha, ouvia-se lá dentro o ruído trêmulo da mó, o marulho triste da levada; e, como fazia um luar de primavera, vi destacar-se claramente no fundo azul do céu, agachada sobre o esgalho nodoso de uma figueira, que ficava ao lado — em vez do alegre rouxinol, que ali cantava todas as noites — uma coruja muito grande, a piar, a piar…

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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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