domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Tzar"

TZAR
Ao Dr. Gama Rosa

Ele era o inacessível, supremo. A sua vontade trazia trêmulos e angustiados noventa milhões de súditos. Os pensamentos destes homens morriam inexpressos, temerosos da onipotência fatal do gigante autocrata. Uma palavra, uma suspeita faziam voar em trens expressos para a Sibéria os delinquentes, num degredo tumular.

Nas grandes revistas de cem mil homens os estandartes da Nação, coroados pela águia de ouro, com o insígnias fracas, abatiam-se à sua presença real, num Te-Deum de aclamação. Quando passava nas ruas, augusto e refulgente, envolvido no estrépito, nos brilhos metálicos do seu séquito ostentoso e guerreiro, deixava, por sobre as multidões aglomeradas, o deslumbramento e o assombro que assinalam a passagem dum trovão.

Havia em torno deste homem como que uma atmosfera de força brutal, junto à sobrenaturalidade dum monstro fantástico, cuja proximidade dava morte. Mesmo no seio do seu palácio, os seus validos, a sua família, tornavam-se gélidos trêmulos à aproximação soberana, porque havia nele a ferocidade rija das máquinas, das engrenagens e a crueldade sutil e alucinante do cholera-morbus. Achava-se ali, no meio daquela imensa Nação, como um formidável animal pré-histórico. O monstro tinha a intuição do seu valor e da sua força: e nunca os seus lábios sorriam para ninguém, porque não considerava semelhante ninguém!

Nas solenidades babilônicas da grande corte do Neva, cercado do grupo dourado dos generais do Império, numa sala feérica de decorações e constelada pela beleza exuberante e olímpica das altas damas palacianas, colocadas ali às centenas, como os nobres dignitários da Nação, em presença dos embaixadores de todas as potências do mundo, o grande monarca, postado no meio das suntuosidades daquela quermesse oficial, no cachoeirar estridente das orquestrações guerreiras, alheado de tudo, prodigioso, sobre-humano — fugia para longe dessas glórias que detestava, e, de olhar amortecido, sem uma palavra, sem um gesto, transportava-se para além, para o ménage querido, onde estava a sua Amada, a deliciosa criatura pela qual se sentia menino, gostando de chorar no seu seio.

Imaginava-a deitada sobre a alvura flácida das peles de ursos brancos do polo, num pequeno divã, o corpo docemente premido no seu roupão de veludo negro bordado de filigranas, o pescoço e os pulsos envoltos na mornidão suavíssima dos arminhos da raposa azul, feliz, à espera dele com sorrisos adoráveis e umas carícias que lhe faziam tão bem!...

Sentia um enternecimento em pensar nela e aspirava por chegar ao ninho tépido e perfumado onde era tratado como um bebê, repreendido cristalinamente pelas suas faltas e castigado por aquela mão rósea e cetinosa, que sabia, muito justa, distribuir a pena e a recompensa. Queria inefavelmente mergulhar o seu rosto nos flocos de ouro daqueles cabelos eslavos, para fugir ao perigo da sua onipotência, num remanso carinhoso e sagrado. Dominava-o um desejo irresistível de humanizar-se, de perder-se nas suavidades do sentimento. E tanto gozava daquela criatura divina, que experimentava já a invasão deliciosa das ardentes meiguices de amor. Votava lhe tal adoração que se enternecia e sofria saudades nas horas que não passava a seu lado. E mudamente, em seu cérebro, durante a grande recepção, revolvia-se convulsamente esta exclamação torturante: “Ah! como as suas funções de monarca o privavam cruelmente daqueles sagrados encantos!...”

Então, ainda mais alheado de tudo, o seu espírito fugia, internando-se pelo lar, numa ânsia de afeições.

O mundo que o cercava, esse mundo ali prostrado a seus pés em contínuas oblações, desaparecia então por momentos, como sob o nevoeiro dum sonho, e ele via-se já, o grande Imperador, entre os gorjeios doces do ninho, cercado das crianças louras, os filhos do seu amor, sentindo-lhes as mãozinhas carnudas baterem-lhe o rosto, revolucionando-lhe a barba, sem brutalidade, sem cólera. Amava todas essas ternuras, enlevado e comovido, aconchegando ao peito e beijando os celestes querubins. Depois ia cair inebriado nos braços da sua Niwaia, que o enlaçava na sua eterna paixão...

Em pouco a solenidade terminaria e ele retomaria a sua feição humana, subindo, com o coração palpitante, a escadaria dourada do seu castelo de amor...

Mas, de repente, fez-se um palor no rosto do Tzar: seus olhos amorteceram, extinguiram-se, e ele viu ao longe, no horizonte imenso das estepes nevadas, uma multidão de homens vestidos de luto, que se aproximada com a rapidez de uma Visão, e sentiu que uma bomba enorme de dinamite, abatendo-se a seus pés, explodia, afogando-o em ondas de lava.


Desterro — 1884


---

Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

Nenhum comentário:

Postar um comentário