domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Galé da Dor"

GALÉ DA DOR
Ao Dr. Fábio Luz

O Maurício, um belo rapaz, fino, inteligente, elegante, estava agora perdido para sempre. Aparecera-lhe inopinadamente a “moléstia maldita”, a cuja lembrança tanta vez a sua alma gemera e gelara, porque sentia rolar no seu sangue aquele vírus horrível, que desde os seus antepassados — havia um século decepava cruelmente os melhores varões da família.

Muito rubro, com todos os germens daquele “mal” hereditário, tinha um grande cuidado consigo; mas nesse dia de sol escaldante, em que uma viva combustão estival pairava nas camadas aéreas, entrara da rua fatigado e metera-se num banho frio.

Tigrou-se-lhe a pele de roxo, engrossaram-se-lhe os tecidos. O rosto, maculado, ingurgitou-se, tomando um aspecto duro, túrgido. As orelhas encorparam-se prodigiosamente, e o nariz, violáceo, intumesceu de maneira brutal, dilatando as narinas. As conchas das pálpebras espessaram-se, reviraram-se, numa tumidez enorme, conservando os olhos uma umidade mucosa, pelados de sobrancelhas. A boca tumefacta contorcera-se em tromba, de onde manava uma saliva chorosa, torpe, pútrida. A pele gretara-se, dessorando pus.

Tornara-se medonho, repelente; sentia vergonha de si próprio; não aparecia a ninguém. Só furtivamente, de um modo tímido, nos dias alegres, a cabeça envolta num plaid, deixando ver apenas os olhos sem cílios e debruados de vermelho, chegava à janela de um torreão da casa que deitava para o mar.

Era às vezes pela tarde. Seguia, então, horas e horas, as velas cruzando a larga superfície verde. Contemplava o casco dormente dos navios ancorados, o alto perfil das mastreações, as montanhas do continente, desenhando-se saudosamente sobre a tela esmaiada do firmamento, os belos ocasos de estio, acesos num alastramento de flamboyants em flor...

E enclausurado nessa vida de túmulo, contemplando a natureza como quem já não pertence ao mundo, abalado por uma plangência sem nome, abandonava a janela, nervoso, trêmulo, soluçando. A nostalgia enterrava-lhe no coração os seus bisturis.

E nesses instantes amargos, a imagem rútila da Amada, evocada intensamente pela imaginação, aparecia-lhe nimbada de luz, por uma aberta de nuvens, no céu sereno de seu espírito, como uma Nossa Senhora que acudisse piedosamente à súplica fervorosa de um místico, por entre os murmúrios de uma oração.

Amava, com todas as veemências febris da paixão com todo o ardor tropical da sua alma, de vinte anos, a uma virgem ideal, branca como uma estátua de mármore, pura como as estrelas, olhos azuis e castos como os miosótis, luminosos e lindos como as nossas manhãs. Era uma menina angelical, que fora a companheira querida de sua irmã, nos bons tempos do colégio, que costumava conversar com ele, outrora, nos dias felizes. E a não via, já lá iam dois anos. Que dor, que imensa saudade, saber que ela ali estava, defronte, naquele mesmo bairro pitoresco de litoral florido, e nem ao menos a poder contemplar um instante, temendo ser visto!...

Vinham-lhe, então, desesperações formidáveis, blasfêmias, gritos de desgraçado contra Deus, irritações de ateu, e, após tudo isso, um certo temor religioso, um remorso aflitivo, uma ideia muito viva da Providência, que fazia o seu pobre coração torturado cair de repente em contrita adoração, murmurando: “Eu creio em ti, ó Deus!...”

E quedava-se demoradamente numa imobilidade de magnetizado, enterrado numa cadeira de braços, perdido num cismar profundo, o rosto tombado sobre a mão, num arrepanhamento de feições que lhe torcia a boca, tornando-o horrível, com o olhar fisgado no chão, sem movimento, inerte. Permanecia assim até alta noite, até a madrugada, em insônias esmagadoras. E todos os dias a mesma vida, vazia, deserta, negra, tumular, até que caísse por fim na augusta pacificação do Nirvana...

Mas à maneira que a moléstia avançava, implacável, sentia crescer, deitar mais fundas raízes no seu peito, aquele amor indomável, desalentante e descorrespondido agora, que nunca o vencera e torturara tanto.

Um sábado, quando as sugestões do desespero e da dúvida, como um bando de lavras estranhas, surgiam-lhe no cérebro, a devorar-lhe os filões do discernimento — ruídos espalhafatosos de carros que se aproximavam, sublevando a costumada quietude do bairro e fazendo estremecer os prédios, trouxeram lhe de repente ao espírito uma lembrança terrível dela, da radiante criatura que o fazia viver ainda e por quem e para quem era perdido, perdido...

Então, arrastado por um pressentimento extraordinário, atirou-se audazmente à janela ante os olhares espantados de todos, e, aí, aparvalhado, trêmulo, estrangulado quase por um aperto de dor na garganta, viu-a passar, num cupê, ao lado de um belo rapaz — magnífica, a grinalda de flores de laranjeira cingindo-lhe a cabeça de virgem, o longo véu de tule caindo-lhe pelas costas, sobre as nuas espáduas brunidas, num tecido tênue de bruma.

Como um animal apunhalado de repente, em pleno coração, o Maurício teve um grito sinistro. Depois retirou-se mudo, tonto, tresvairado, indo cair de bruços sobre a cama, numa dor onipotente e sobre-humana, num traspassamento de mágoas  supremas e infinitas!...


Desterro — 1886


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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