domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Painel Medieval"

PAINEL MEDIEVAL
  
De pé, junto às pedras das ameias, num recanto isolado do velho castelo gaulês, erguido sobre a ponta penhascosa de uma enseada da Armórica cheia tradições e legendas, uma dessas princesas venetas, vaporosas e albentes, que eram o encanto dos Bardos e dos Cavaleiros, fixava longamente, com os olhos úmidos de saudade, as águas mansas de Quiberon, desdobrando-se para além, cobertas de frisos de ouro sob a iluminação do poente.

A pequenina cabeça alourada, de um contorno rafaelesco, estava inclinada sobre a planura azulada do golpo como ao peso dos seus sonhos ou da sua cabeleira, premida artisticamente sob a alta touca frouxelada de rendas, de onde jorravam para a testa, por cima das sobrancelhas escuras, leves madeixas cor de feno. E seu rosto formosíssimo, de um rosado penugento, apoiava-se a uma das mãos firmada numa aberta das ameias, enquanto a outra, suspensa no ar, agitava um lenço claro, que ondulava ao vento.

A dois passos, para trás, aprumado e elegante nas suas vestes estreitas, a listras escarlates e pretas, o espadim de prata pendendo ao talim de seda, o belo Pajem favorito, segurando às mãos, numa atitude de respeito, a longa cauda opulenta do seu vestido de veludo azul, guarnecido de barras de arminhos e bordaduras de ouro reluzentes. Olhava também o mar, mas o seu olhar amoroso, de um brilho meigo, sorria como numa vaga alegria, em que a sua alma exultava intimamente incendida num clarão de esperança que lhe inflava o forte peito, sempre abatido e opresso, no seu amor obscuro, pelo alto desdém da Princesa.

E agora, que o Duque partia na cruzada aventureira para as batalhas da Religião em terras remotas do Oriente, surgia-lhe a vaga esperança de que ela viesse, um dia, movida de compaixão ou afeto, suavizar, com um sorriso de graça, as amarguras da sua existência. E sentia-se que o seu grande desejo, nesse supremo momento, era que a frota aventureira, ali singrando lentamente, desaparecesse, de uma vez e para sempre, arrastada pelas ondas, no seio da bruma argêntea...

Mas a loura castelã, na dor desse apartamento, indiferente e chorosa, nem sequer observava de leve o júbilo do jovem Pajem, imersa como estava na contemplação dolorosa das velas queridas que fugiam para além.

A galé do Duque panejava ainda entre pontas, em meio às águas dormentes. A alta popa vogadora, toda coberta de incrustações e ornatos onde corriam grossos verdugos de prata sobre largos quadrados de marfim e pérola, destacando no coral do poente, fazia como o relevo risonho dessas ilhas encantadas que apareciam e desapareciam, outrora, tentadoramente, pelos ocasos ou madrugadas do norte, na limpidez sonhadora das lendas. E as outras naves menores, com as suas asas de lona diminuídas  à distância, deslizavam para o sul, como um bando de alcíones albentes.

A formosa princesa, nesse momento de mágoas, esquecia-se, a olhar as fugidias velas boiantes, evocando tristemente a sua vida de outrora, desde o dia glorioso em que o amado Paladino germânio chegara ao seu castelo bretão. Fora ao tempo dessas batalhas memoráveis da Escócia, em que Wallace, à frente dos seus altivos highlands, batia-se leoninamente contra as hostes de Eduardo I. Os ruídos da derrota final desses celtas insubmissos mas desventurosos tinham chegado à Bretanha com os primeiros nevoeiros de inverno. Dezembro, com os seus furores e os seus ventos glaciais, fustigava toda a costa, sublevada numa tempestade tremenda. Uma noite, em que o noroeste parecia querer arrancar os carvalhos nas florestas e despedaçar as cabanas nas landes e montanhas brumosas, a sentinela do Farol das Rochas dera para o castelo o sinal de um naufrágio sobre os altos cabeços. E logo a guarnição despertara ao estrídulo clangor das buzinas, rompendo dentre as ameias. A Princesa acordara também, na sua câmara vermelha, iluminada nebulosamente pelo clarão da veilleuse; e, envolta no seu manto de peles, correra através das salas silenciosas até ao Torreão do Ocidente, para ver o que ocorria sob a borrasca inclemente. Das janelas ogivais pôde divisar vagamente, como na alucinação de um pesadelo, a cena agitada de uma nave ao longe, despedaçando-se por sobre os penedos. Acometeu-a uma emoção e seus olhos marcaram-se de lágrimas, quando as rajadas tumultuosas do vento lhe trouxeram aos ouvidos gritos roucos e aflitivos de náufragos morrendo. Sentia-se inquieta e queria descer aos pavimentos térreos para dar ordens aos marinheiros. Mas sossegara logo, porque descobrira à claridade dos fuzis, que abriam por vezes através da noite densa, a sua brava gente marítima já às voltas com o barco, nas rochas ou sobre os vagalhões desfeitos. Não parara, porém, toda a noite, e ao outro dia, erguendo-se muito cedo, dirigia-se para o Salão dos Troféus, quando o Pajem surgira, narrando-lhe tudo minuciosamente. “A nau se desfizera totalmente, perecendo a tripulação, e só se salvando um homem que parecia o almirante, um príncipe talvez, pelas suas vestes e o seu nobre aspecto guerreiro. Fora recolhido sem sentidos, com a fronte ferida e as vestes despedaçadas; e assim se achava ainda fora das muralhas, no alpendre das galés e das redes...”

Ela ouvira a narração num desassossego e numa palidez, e dera ordem para que acomodassem o náufrago no Torreão do Oriente. À noite, fora ela própria velar o enfermo, que repousava sobre um vasto leito de acaju, todo esmaltado de chaparias de prata e finas ramagens em relevo. A luz de uma lâmpada fosca, feita de vidro verde, suspensa do alto teto de carvalho entalhado por delgadas correntes de bronze saindo de um fofo de seda e oscilando brandamente, se destacava, sobre o veludo amarelo dos grossos travesseiros, o seu rosto belo e forte, aureolado por leve barba loura e longas madeixas à nazarena. Tinha o encanto marcial de um herói e a enformatura máscula de um deus. Por isso ela se lhe rendera logo, tomada de uma forte paixão de gaulesa. Mas, só alguns dias depois, já convalescente, é que ele pode bem observá-la, encantar-se também pela sua feitura soberba. E, numa mesma fascinação e magia, ficaram-se amando loucamente.

Ele disse-lhe então o seu nome, a sua vida, o seu reino. Era Ludovico, da Germânia. Possuía terras, castelos e inúmeras legiões guerreiras. Reinava sozinho, e respeitado pelas outras nações, sobre um povo poderoso e valente, para quem ele era a suprema felicidade e o supremo bem. Mas um emissário da Escócia chegara um dia. E logo abandonara as suas terras, o seu trono, e atravessara o mar com o melhor dos seus guerreiros... Batera-se pelos escoceses, tivera vitórias, fora cantado nos hinos caledônios pelos bardos cavaleiros. De uma feita, porém, num encontro terrível em que houvera traição, perdera-se a batalha, ao mesmo tempo que outros revezes sucediam em todo o campo, coroando as armas inglesas. A Escócia submetera-se; Wallace, ferido, fora feito prisioneiro.  E como ele, Ludovico, escapasse ao desastre com um grupo de guerreiros, resolvera partir, tornar às suas terras do Reno. Após alguns dias de viagem, uma tempestade caiu de repente: a frota então dispersara, sob a ira dos ventos; e a sua galé, desmantelada e perdida, rolara para o sul, sem governo. Depois fora o naufrágio sobre aqueles cabeços.

Ela, ainda mais apaixonada e impressionada por aquela história aventurosa e heroica, decidira imediatamente esposá-lo, encantada e num deslumbramento. E foi por uma noite luarenta da Armórica, cheia de cânticos druídicos e da espiritualidade das lendas, que os esponsais se celebraram, no castelo em festa, cujas janelas flamantes iluminavam fantasticamente as planícies e as águas, despertando a sonolência das landes e agitando as velhas almas sagradas que rondam à noite, os menhirs... Por fim, vieram os dias gloriosos da tumultuosa jornada ao Sequana: o inimigo submetido, em meio aos vivas guerreiros, riquezas adquiridas, troféus conquistados, e alargadas as terras do castelo em novos e poderosos domínios. E agora? O apartamento tristíssimo, a saudade dolorosa e atroz. E ainda aquela jornada sobre o mar infinito... Voltaria? Quando?... Ah! sorte enigmática, insondável e misterioso destino!..

E junto às pedras das ameias, recortadas em silhueta de coroa, a Princesa cismava, e de seus olhos transparentes e azuis as lágrimas corriam, enquanto ao lado, ocultamente, o Pagem exultava e a galé velejante do Duque desaparecia além, sob o poente dourado, numa esteira sinuosa de espuma...

Rio  —  1894


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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