A GRANDE
ESTRÉIA!
Autor!
Ele era
autor, finalmente!
Ali estava a
sua obra.
- O meu
livro! - dizia ele dentro em si, com o coração boiando em uma onda de júbilo.
Aí
terminaram, por fim, as torturas inenarráveis do ineditismo; terminaram as
lutas, os labores, as angústias inominadas de autor in partibus: o cérebro
atulhado de livros imortais... e nenhum na rua!
Vencera!
Só ele, o
autor, ele somente sabia o valor dessa vitória, porque mais ninguém soubera,
suspeitara sequer, que soma de esforços e desesperos lhe custara.
Um ano, dois
anos a incubar, a fecundar a idéia: período da gestação, íntimo e ignorado,
cheio dos júbilos da concepção e dos receios, dos sobressaltos inexplicáveis
ante o futuro:
- Se eu
publicasse um livro?
Depois - a
resolução: fase nova, em que a idéia vai-se transmudando em fato:
- Está dito:
publico o livro.
É
dispensável dizer de que gênero é o livro com que estréia este jovem, pois é o
mesmo com que toda a gente estréia - aqui, em Portugal, em França, em toda
parte do mundo.
Dizê-lo
seria ocioso, tão ocioso como perguntar a qualquer homem de letras se existe no
seu pretérito esse pecado universal, que se redime sempre: - versos.
Quando a um
mancebo lembra a idéia de fazer um livro, o livro já está feito, e nem ele
perde tempo a debater o gênero da obra.
É que a
poesia é como a puberdade.
Um belo dia
a criança deixa-se ficar na cama, adormecida ao lado dos tambores rotos e dos
polichinelos estripados, e acorda o homem: um indivíduo novo, recém-nascido, desconhecido
para todos, e ainda mais para si próprio.
Entre os
muitos fenômenos novos que desse dia em diante vão nele aparecendo,
espontaneamente, por vontade do velho legislador - Natureza, - há um de que
também não se apercebe o jovem. Deliciosa inebriez sonambuliza-lhe os atos e o
pensamento...
Mas um dia,
por acaso, detém-se em caminho para dar "bom-dia" ao sol, ou a uma
"doce virgem" que passa, e, volvendo o olhar atrás... - surpresa! ó
encanto! - o caminho, o curto caminho andado está todo semeado, todo florido -
de versos!
- Sou poeta!
exclama nesse instante, como ainda há pouco exclamara:
- Sou homem!
É nesse
momento único, o mais puramente feliz de toda a existência, que lhe vem a idéia
da Glória, do Futuro, do livro, enfim.
Depois, o
trabalho é apenas de retroceder, e, colhendo as mais belas e cheirosas flores,
fazer um ramalhete.
Mas de
improviso surge um óbice, uma dificuldade feia e repentina, como esses
fantoches que saltam súbitos das bocetas de confeitos ao nariz das crianças:
- E a fita
para enlaçar o bouquet?
Ah! o título
para o livro!
Que
Adamastor!
Que assunto
para epopéias!
Quando terás
também o teu Camões, ó monstro?
Neste ponto,
o azul enubla-se, abismos abrem-se famélicos, montanhas pulam diabólicas ante
os passos do poeta.
O desânimo
invade-o, arrastando consigo para dentro do mísero - a dúvida, o medo, o
desespero.
E o grosso
caderno do manuscrito dorme poento ao fundo da gaveta, como um pobre diabo que,
na gare de uma linha férrea, adormeceu à espera do sinal de partir.
O título!
Aqui, há
tempos, assisti a uma luta horrível, interessantíssima, a única que possa
fornecer um pálido simile da de um futuro autor com os títulos: - a luta com as
gravatas.
Foi assim:
Entrou em
uma loja, em que eu por acaso me achava, um elegante; e, dirigindo-se ao
caixeiro, disse-lhe com voz trêmula:
- Desejo uma
gravata.
- Pois não,
senhor; em escancarando-lhe a vasta vitrine, acrescentou o caixeiro:
- Faça o
favor de escolher.
Escolher!
Aí o
busílis.
O janota
ficara-se imóvel. Estava pasmo: as mãos sem gestos, os olhos deslumbrados.
Elas eram
trezentas, seguramente.
Eram
trezentas gravatas: - pretas, verdes, roxas, brancas, douradas, prateadas,
azuis, amarelas, havanas, opalinas, granada, esmeralda, safira, cor-de-café,
cor-de-rosa, cor-de-garrafa, cor-de-gema-de-ovo, cor-de-azeitona,
cor-de-manteiga, cor-de-leite, cor-de-chocolate, cor-de-creme,
cor-de-carne-crua, cor-de-carne-assada, cor-de-vinho — cor de tudo!
Pintadas,
sarapintadas, chamalotadas, de listras, de pingos, de flores, de estrelas, de
bichos!
Ah! E as
formas?
Quedradas,
redondas, oblongas; em laço, em pasta, em fita, em triângulo, em losango, em
quadrilátero, em octágono; plastrons, mantas, lenços; de cetim, de gaze, de
seda, de crepe, de linho, de chita, de lã...
Vendo-as,
inúmeras, horríveis e formosas, esquisitas, de mil cores e de mil formas, a
rir, a dançar, a vir sobre o janota extático, atordoado, trêmulo de gozo, de
assombro e de indecisão, lembrou-me a marcha dos deuses-monstros por diante de
Antônio, o santo eremita da Tebaída, caído em delíquio - no livro imortal de
Flaubert.
E o caixeiro
repetia:
- Faça o
favor de escolher.
Depois de
longa e penosa hesitação, decidiu-se o janota por uma gravata meio-plastron,
estofada de veludo bleu foncé.
Pô-la ao
pescoço, viu-se com ela ao espelho, e logo arrependeu-se.
Tomou então
de uma outra, de seda creme, pontilhada de pequenos botões de rosa escarlates..
- Prefiro
esta disse. Faça o favor de embrulhá-la.
E enquanto o
empregado assim o fazia, continuou extático ante a vitrine, a ver uma, a ver outra,
a desejá-las todas. De repente, estremeceu de súbita alegria e exclamou:
- Olhe,
tire-me aquela acolá. Não, a outra: granada e ouro. Essa; essa mesma.
Agora sim:
estava satisfeito. O caixeiro substituiu a gravata no embrulho.
O janota
deu-lhe a paga, tomou do volumezinho, e foi saindo vagarosamente. Posto cá
fora, na rua, deteve-se ante a larga montre, opulenta de gravatarias
rutilantes, espalhafatosas, e sentiu-se logo profundamente arrependido da
espiga que se havia deixado impingir.
- É tão
lindo aquele laço de cetim creme! Diabo! Se eu trocasse...
E, num
enleio desgostoso, esteve por pouco a entrar de novo na loja, para fazer a
troca. Mas envergonhou-se a tempo, e lá se foi com a sua gravata nova, cheio de
raivas biliosas contra ela - por ser tão estupidamente feia, e contra si
próprio - por ter um gosto tão reles, tão desgraçado...
Assim,
exatamente assim nos sucede com a escolha de título, a todos que de tão
perigosa coisa carecemos.
Ao princípio
fica-se perplexo: são tantos! e todos tão lindos! Qual escolher? Aquele, aquele
belo título vermelho, flamante como um carbúnculo. Pois será ele. E, sem
demora, ata-se o título escolhido ao pescoço da obra e mira-se o efeito. Que
desilusão! A cor da gravata não diz com a roupa.
O livro é
todo azul claro e brancuras de neve: toalete risonha e fresca, toalete para
passeio nos jardins de Armida; e o título é de um rubro tão vivo, inopinado e
gritão!
A que lhe
vai a matar é esta de escomilha branca, tirando a azul nas dobras, de um tom
delicioso de leite puro.
Bravos!
Perfeitamente!
E o autor,
satisfeitíssimo, ata a nova gravata ao seu dandy e sai com ele a passeio.
Mas as
decepções não tardam. Uns amigos acham que ela devia ser cor-de-rosa, curta,
sem pregas.
Aquela é
trivial, inexpressiva, tão sem graça e sem expressão que, embora com a gravata
ao pescoço, parece o janota tê-la esquecido em casa...
Outros
amigos, porém, (ó La Fontaine!) assobiam o pobre poeta, atiram-lhe remoques
como pedriscos:
- Que!
Melhor fora então pôr-lhe por título: Vendavais, Cataratas ou Labaredas! Esse
não presta: é por demais pantafaçudo.
E, corrido
do seu mau gosto, o poeta arranca ao livro a gravata e recomeça a correria das
lojas.
Tais
angústias que as conte o pobre Eugênio Lopes, o "esperançoso e jovem
poeta" que hoje estréia.
Foram dias,
mais: - foram meses de luta e de insônia.
Dez vezes
achou a gravata da sua escolha, o non plus ultra das gravatas, a bela por
excelência, a deliciosa, a única.
Vinte vezes
se arrepelou furioso, bezuntando-se de impropérios, e pensando sinceramente,
como quem se resolve ao suicídio: - O melhor é pôr-lhe por título - Sem título!
O pobre!
Safiras,
Flores singelas, Borboletas, Magnólias, Harpejos, Serenatas, Suspiros d’alma,
ai! tudo! tudo! - até nem mesmo faltou o venerando, o nunca assás surrado título
- Peregrinas! - tudo ocorreu àquele infeliz que andou atrás de um títutlo, como
Telêmaco à cata do perdido pai.
Urgia,
porém, decidir.
A Glória
instava.
E a
continuar daquele modo perderia a Posteridade, envelhecendo à espera de um
título - como de um bilhete de viagem para ir lá ter.
Decidiu-se,
enfim.
Arroubos: -
foi a gravata que escolheu.
Arrependeu-se
mil vezes da eleição; chegou mesmo a tentar anulá-la em favor de um candidato
novo; mas era tarde: - parte do livro já estava impressa, e ao alto de cada
página o título dado.
Ficou
triste, desanimado.
Arroubos!...
Dava lugar a esta pilhéria: Roubos!
Uma pilhéria
grave!
Enfim...
Agora, na
tipografia - diante da longa banca da cartonagem, cercada de operários em
camisa, dobrando, cortando, cosendo, colando folhas de livros - um gozo
intenso, profundo, atordoador, engasga solenemente o poeta Eugênio Lopes.
O meu livro!
O meu livro! - é o estribilho íntimo da muda canção de júbilo que o seu
espírito canta...
Cora e
sorri; e ante os seus olhos úmidos, dilatados no espasmo daquele
deslumbramento, as oito letras do título - Arroubos - impressas a carmim, em
elzevir, sobre a capa de papel-granito do seu livro, passam gravemente,
marchando a um de fundo, para os campos da Glória. Os RR erguem as pernas à
frente, em um passo de marcha larga, majestosa: as grandes pernas de
fuzileiros, vestidas das rubras calças de grande gala.
E, em cima,
ao alto, por sobre um filete de fantasia o nome do autor: - Eugênio Lopes!
E, imóvel,
como adormecido de olhos abertos sobre o livro fechado ainda, - sem se dar
conta dos risinhos irônicos que entre a fumarada dos cigarros lhe mandam os
operários, - quantos planos gloriosos, quantas quimeras, quantos delírios mudos
assaltam nesse momento o poeta!
Seu nome,
seu pobre nome, tão singelo e humilde, o nome de filho de um modesto molhadista
por atacado; seu nome desde este dia vai partir veloz sobre os quinhentos
volumes da edição; vai voar nas asas palpitantes da imprensa periódica!
Vai ser
conhecido, procurado, citado e recitado, querido, talvez famoso!
"Eugênio
Lopes, o mimoso poeta dos Arroubos."
Assim se
previa designado em breve por toda a imprensa. Nas livrarias, entre Musset e V.
Hugo, cercado pelos mais célebres poetas do mundo, está um poeta novo, chegado
naquele instante das regiões do anonimato, cheirando ainda a papel molhado e a
tinta de impressão.
Quem é? É
ele: - Eugênio Lopes.
E, todo
embebido desse luar invisível e magnetizante da cisma, com um sorriso vago a
lhe pairar na boca, o poeta voltou a capa do livro, a primeira página, e ia a
voltar a segunda; mas deteve-se, contemplando-a... Era a dedicatória. Dizia
assim:
A ...
"Anjo,
valquíria, deusa, a quem a vida
E o futuro,
sorrindo, dediquei,
Aceita os
versos meus, mulher querida,
E nunca mais
perguntes se te amei!"
Como vai ela
ficar contente e cheia de orgulho!
Mas que
dirão seus pais? que dirão os velhos?
A velha,
santa mulher que o adora, vai certamente chorar de júbilo ao saber que seu
filho - o seu Eugênio "anda nas folhas e nos livros", todo enfeitado
de adjetivos elogiosos... Quanto ao velho...
E
ensombrou-se-lhe a fronte. Ah! é o destino de todos nós... pensava o poeta,
enrolando um cigarro em silêncio.
Balzac,
Baudelaire, Henri Conscience, Casimiro de Abreu - quantos e quantos! - encheram
de mágoa e de vergonha seus velhos pais, porque se deram à glória, porque foram
poetas e pensadores, em vez de agiotas e negociantes.
Paciência!
Tudo sofreria resignado. Era o seu destino: havia de cumpri-lo!
Mas os
críticos?... Que dirão os críticos?...
Que dirá dos
Arroubos o Jornal, esse velho inimigo de sonhadores, tão severo, tão duro, tão
parco de elogios? Que dirá o Jornal? Naturalmente o que sói dizer semore: -
Recebemos do Sr. Fulano o seu livro de versos, intitulado Isto ou aquilo. E
mais nada.
Ó sequidão
antipoética!
Ah! se o
Jornal dissesse ao menos: - bonitos versos, ou esperançoso, inspirado poeta...
Como para o velho o Jornal é a palavra de Deus escrita na terra... do Brasil,
lendo aquilo, talvez o velho embrandecesse...
E a Gazeta?
que dirá a Gazeta, tão benévola para os que principiam, tão delicada na
censura... mas também às vezes tão trocista?... Que dirá ela? Bem ou mal?
E, por uma
súbita ligação de idéias, lembraram-lhe uns versos frouxos, outros - ásperos,
que só agora reconhecia como tais...
Ah! estava
perdido: - era horrível o seu livro!
Mas aquela
poesia Flores mortas? Era bem feita e bonita: havia de agradar...
Logo na
primeira estrofe, último verso, exatamente um dos que antes julgava melhores,
encontrou formidável asneira...
Atirou o
livro, empalidecendo.
No dia
seguinte, muito cedo, comprou todas as folhas da manhã, - tremendo como um réu,
a quem se vai ler a sua sentença - e, percorrendo-as...
- Basta,
porém.
Nem mais uma
palavra sobre esse poema trágico, de que havemos sido todos, mais ou menos,
heróis.
Talvez que
um dia o poeta dos Arroubos nos dê as suas Memórias, e então, se ele as houver
escrito de todo o coração, não haverá quem se não comova e sorria, lendo esse
capítulo, escrito com o próprio sangue, capítulo negro e rutilante, cheio de
lágrimas e estrelado de sorrisos, que só se escreve uma vez na vida: - A grande
estréia!
---
Nota:
Valentim Magalhães: "Vinte Contos" (1886)
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