O HÓSPEDE
Ele aí está, que o diga o Oliveira, aquele rapagão de bigode louro e olhar azul, que viajou como caixeiro de cobranças, "cometa", e hoje é repórter. Por sinal que foi a última viagem de cobrança que fez, e de tão horrorizado mudou de vida e profissão. Foi ele mesmo quem me referiu o caso. Aqui o dou pelo custo, sem nada meu.
***
Ao cair de
uma tarde chuvosa de março, chegava o cobrador, extenuado e faminto, a uma
vendola à beira da estrada, da longa estrada fastidiosa, pelos campos, que vai
de Alfenas ao Machado, no sul de Minas.
Junto à
venda havia a casa de morada, pequena, tosca e suja, dum velho casal português,
que ali se fixara e vendia os produtos da pequena lavoura, cultivada nas suas
terrinhas, e os furtos trazidos à noite pelos escravos da vizinhança.
Pousada, não
era costume dar-se ali; Alfenas ficava a uma légua, e os donos da casa diziam
despachadamente que aquilo não era hospedaria. Mas, com o Oliveira, o caso era
especial: trazia já as suas oito léguas bem puxadas e uma fome de carrapato, e
depois, com tanta carga d’água, não havia meio de continuar viagem. Pediu
pousada e ceia, pagando eu - acrescentou.
- Ceia,
arranja-se-lhe - disse o Zé Manuel, o taverneiro velho; lá a cama é que está
mais difícil, que não recebemos hóspedes para dormir.
E com o
olhar consultava a mulher, a mulheraça, anafada e pachorrenta, aboborada para
dentro do balcão.
- Não, por
isso não seja - opinou ela; dá-se-lhe o quarto do Jequim...
- Bem
lembrado - concordou o vendeiro; - temos ali assim um quarto agora desocupado,
que é o de nosso rapaz, que anda por fora; lá para o Carmo do Rio Claro; tem
cama e colchão, que é o preciso para dormir... Se lhe serve...
- Serve,
serve - aceitou logo o Oliveira. - E deem-me alguma coisa que se coma; estou
morto de fome!
Enquanto se
punha a janta, desarretou a besta, guardou os arreios no quarto que lhe
destinaram, contíguo à saleta da frente e com janela para a estrada; levou o
animal ao pasto, um pastinho fechado, muito perto; e voltou para cuidar de si.
Antes,
porém, de sentar-se à mesa, onde já fumegava o feijão com couves e a
canjiquinha, pediu que lhe trouxessem uma peneira.
- Uma
peneira! ora essa!
- É cá para
uma precisão!
Trouxeram-lha,
e ele então sacou do bolso das calças um maço de dinheiro em papel, uma bolada
de notas úmidas da chuva que apanhara, e estendeu pelo crivo da taquara as
cédulas grandes, de duzentos, de cem, de cinqüenta mil réis, uma boa meia dúzia
de contos. Passou a peneira para a ponta da mesa a que não chegava a toalha, e
entrou a servir-se da ceia no prato de louça azul, com a colher de ferro.
Ao levar à
boca uma colherada, surpreendeu à porta da saleta o olhar aceso com que lhe
comiam o estendal das notas, a velha portuguesa, que o servia, e o marido, que
entrava com uma garrafa de vinho.
Tão cobiçoso
era o olhar de ambos, que coou na alma do rapaz um frio de medo e um clarão de
pressentimento. Logo, ali mesmo, resolveu acautelar-se, arrependido da
imprudência de ter mostrado tanto dinheiro.
Acabando de
cear, declarou que muito cedo, ao romper do dia, seguia para Alfenas, e por
isso deixava paga a hospedagem; deram-lhe a boa-noite e recolheu, com uma vela
de sebo, ao quarto do Joaquim.
Mal se viu
só, tratou de ajuntar as notas que espalhara na peneira, tornou a enfiá-las no
bolso, e apenas a casa sossegou em silêncio, ali por volta da meia-noite,
saltou pela janela com os arreios e a mala à cabeça, foi ao pastinho fechado,
selou a besta e tocou para a cidade, ao belo clarão da lua que despontava.
***
Nem bem se
perdera ao longe o estrupido da besta que levava o cobrador, quando novo tropel
de animal soou no terreiro da venda; era outro cavaleiro, que saltou do
lombilho abaixo e em três tempos desarreou o cavalo em que veio e com um chupão
nos beiços apinhados tocou-o para o campo.
- Diacho!
minha janela aberta! - murmurou consigo. - Melhor! entro sem precisar bater e
acordar os velhos a esta hora.
E,
agarrando-se com o braço direito ao peitoril da janela, saltou para dentro,
levando na outra o lombilho, o baixeiro e o freio, e logo tornou a fechar a
janela, que o frio não era graça.
***
À alta
madrugada, quando começava a amiudar o canto dos galos, dois vultos,
cautelosos, sorrateiros, surdiram do interior da saleta da frente; um deles, o
mais alto impeliu de manso a porta, apenas cerrada, e penetrou no quarto.
Da cama, ao
fundo, ouvia-se a respiração compassada e forte de um bom sono ferrado.
Aproximou-se o vulto, guiado pelo resfolegar do que dormia e pela tênue
claridade que vinha da saleta, onde o outro vulto, agachado e trêmulo,
sustentava e velava com a mão encarquilhada um candeeiro de azeite.
Súbito, no
silêncio da habitação, soaram, soturnas, repetidas, machadadas rápidas, uma,
duas, três, muitas, regulares a princípio depois desatinadas.
- Anda! traze
a luz! - estertorou uma voz estrangulada.
Entrou no
quarto o outro vulto, a velha gorda, com a candeia acesa.
Apenas a luz
bateu na cama, numa horrível massa de roupas e carnes ensangüentadas, dois
gritos sufocados misturaram o seu horror:
- O Jequim!!!
- O filho!!
O meu rapaz!!
***
Fora, na
estrada deserta, voejavam os bacuraus, como almas penadas.
---
Nota:
Lúcio de Mendonça: "Horas do Bom Tempo" (1901)
---
Nota:
Lúcio de Mendonça: "Horas do Bom Tempo" (1901)
Nenhum comentário:
Postar um comentário