RABICHO
As guaricangas
tremiam, sussurrando soluços,
porque um vento
bravo passara pelo
brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas
tremer assim e os sacis bater as
asas cheias de
riscas, fazendo tal
e qual como
quem está presa
de susto ou
dor, a gente – se fosse crendeira – diria que a
tristeza andava passeando aquela tarde pelo país do rio verdinho.
Na verdade,
isso não podia
continuar. A madrugada
rasgara-se acompanhada de
ventania: o sol apareceu, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as
primeiras fusquinhas do crepúsculo no
ocidente, a ventania ainda se tornara mais irada.
Vem a hora de passar o
bando dos patos, a hora em que os piris e as taboas palpitam no
cimo d’água, saudando-os.
A terra inteira
pareceu recolher-se para
receber no âmago
o derradeiro espasmo do sol:
assim que ele imergiu no fundo das montanhas, ela agitou-se por instantes numa convulsão demorada, e
cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até aí virginalmente brancas.
Mais tempo, menos tempo,
saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado do rio verdinho, o Renato da Mantiqueira,
montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a
capricho, levando-o primeiro,
raspando-lhe o pêlo
depois; selara-o com
um socado de
sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que
tiniam. Teso e cheio de não-me-toques,
ganhou a estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna,
ergueu ao ar o chicote de bonito lavor,
desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com vontade.
Seu coração
batia forte, acompanhando
quase o viajeiro
da cavalgadura: chegou
a pensar umas coisas esquisitas,
que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho do
coração, perguntando a si mesmo
o que seria
que andava mais
ligeiro – o
coração ou cavalo?
Encontrou gente
como formiga. Aborreceu-se
um nada. Queria-se
não visto e
só, abrindo e fechando porteiras,
namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no circo imenso
do firmamento; queria-se
invisível entre os
andaaçus marginais da
estrada real: amaldiçoou,
no íntimo, aquelas pessoas
que o observavam
com tal insistência,
que se diria
estarem resolvendo interrogá-lo
a cada sombra
mais densa de
gurrupiazeiro, onde luzia
em triunfo a prataria dos bocais
do mouro.
Deu-lhe na gana gritar que
ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a redondeza, a rapariga que ao andar tanto e
tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia pensar-se numa colina de geléia
deliciosíssima. Ia, pois vê-la: que importava isso aos bocós, agora?
Teve desejos de
livrar o peito
da jeriza que
o oprimia. Quis
mandar os importunos
cavaleiros e viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito; mas
continuou sem dizer nada, mas continuou
a assobiar a música da araúna.
O engraçado
foi que no
alto de um
morrinho, por sinal
que um morrinho
todo florescido de
maravilhas, um nambu
mineiro estava piando
com delícias. Havia
já pedaço, principiara
uma série de
pios, e não
conseguira chegar ao
fim, pois um
outro lhe volvera
pronta resposta, escondido
numa touceira de
maçambará. O Renato
passou e, como
recomeçasse a predileta
canção, o sonso
do nambu tomou
vôo contra ele,
cuidando-o por certo algum rival que requestava a mais que
desejada nambu.
O Renato
levantou o chicote,
varejou-o, empuxando-o contra
o chão. E
reparando nele, que se estorcia
nas vascas da morte, murmurou:
− Se até os passarinhos já
têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de amores pela Anica!
Aquela idéia
atravessou-lhe o espírito,
como um morcego
o silêncio de
uma igreja. Sobre ela acumularam-se outras, não menos
ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar.
Lembrou-lhe um fato, o de lhe haverem contado
que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às
janelas do terreiro.
Isso já era demais. Virava
de zanga em ameaço. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas razões. Mas ameaços, não os fizesse, que um
peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça
de jeito nenhum!
Quem pagou tudo, foi o
mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as paletas.
Murros – até
murros! – adormeceram-lhe as
fibras de sob
as crinas. Pés
nervosos, descalços, correram-lhe
as virilhas, por feição que o deixaram mais do que triste. Um animal de estimação, como ele, apanhado à semelhança
de burro chucro, já se viu só?
A noite,
que era de
lua, veio com
todo o vagar.
Suindaras gemiam perdidas
numa lonjura incalculável
e um beija-flor
sem juízo trinava,
apesar de vinda
a noite, no
ramo cimeiro de uma arvoreta. O
Renato sentiu-se tomado de súbita melancolia; puxou as rédeas, parou,
dirigiu ao pássaro
a mágoa de
que percebia inundados
os próprios olhos,
e ouviu-o cantar. A estrela do pastor já fulgia no céu
e ele pensou entre si:
− Pode que o louquinho do
beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!
E depois acrescentou:
− Mas é mesmo um louquinho
o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu, que gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta
de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!
Em seguida, abstraiu-se,
com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do luar, e murmurou:
− Homem, quem sabe?
Estalaram chicotadas. O
mouro disparou num galopão. Por quê? Porque o Renato precisava conhecer o amor que a Anica possuía no
coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa se dava ele em desvendá-la.
Para logo romperam do lago
de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de vegetação densa e altaneira. Eram três jatobás que
assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto deles, o rapaz achou-se perto do peito dela.
.
Ai! Que julgava já vê-la,
num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez alguma pomba esquecida do ninho, enrufando as penas,
pousou ali e contemplava a serenidade do espaço: quem sabe se uma travessa marrequinha, das
alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de tornar à quentura do ninho? Não, não era a
moça!
Não era, mas então o que
seria?
Foi-se aproximando. O vulto
deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo, que, afinal, o Renato reconheceu nele a Anica.
As madressilvas de uma
cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas e, noivas perfumosas, enchiam o ar de piras
emanações: de vez em vez uma viração mais apressada mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em
torno uma atmosfera de inocência e de sonho.
O Renato achou-se envolvido
na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete céus da felicidade.
A prova é que falou, numa
voz que se diria de êxtase:
− Anica, está deveras
distraída!
Ela respondeu numa voz que
era mais branda que um arrulho:
− Tenho motivos para
distração.
− Para alegria?
− Antes fosse. Para
distração que termina em sofrimento.
− Pois, Anica, uma coisa
lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos, se eles ficassem presos numa idéia.
− Qual idéia, Renato?
− A da nossa dita.
− Aí está um impossível!
− Impossível, se você quer
que seja impossível.
− Não, eu não quero.
− Então, você tem estima
por mim?
− Não sei.
Às vezes o não sei é dito de
tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se, e teve os olhos úmidos
de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os olhos, saindo-lhe trêmula:
− Já vê que nós havemos de
ser ditosos.
− Não, atalhou Anica: não,
porque papai não admite nem que se toque nesse assunto.
− Que me importa?
− Mas você bem sabe que eu
sou de menor idade.
Nesse momento, reboou na
calma da noite uma apóstrofe terrível:
− Desgraçado! Saia de lá
que, senão, corre perigo!
− É a voz de papai,
aventurou Anica: fuja! Fuja!
O Renato, porém,
quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda a energia:
− Quero muito bem a ela.
Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe pedimos.
− Maldito! – a voz
continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!
− Nunca?
− Nunca.
O Renato perguntou à Anica:
− O seu amor é grande?
− É.
− Você faz loucuras que eu
fizer?
− Faço.
− Suba à garupa do mouro.
Ela montou. Cingiu-lhe o
corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os premia com afeição e creu-se venturosa.
O cavalo partiu num galopão
desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre a cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e
um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na indecisão do luar. Depois, nada mais do que.
. Poeira, poeira e mais poeira.
---
---
Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário