quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Rabicho"

RABICHO
  
As  guaricangas  tremiam,  sussurrando  soluços,  porque  um  vento  bravo  passara  pelo  brejo e tivera o atrevimento de bulir com elas: vendo as palmeirinhas tremer assim e os sacis  bater  as  asas  cheias  de  riscas,  fazendo  tal  e  qual  como  quem  está  presa  de  susto  ou  dor,  a  gente – se fosse crendeira – diria que a tristeza andava passeando aquela tarde pelo país do rio  verdinho.

Na  verdade,  isso  não  podia  continuar.  A  madrugada  rasgara-se  acompanhada  de  ventania: o sol apareceu, sem que a ventania abrandasse; e agora, com as primeiras fusquinhas  do crepúsculo no ocidente, a ventania ainda se tornara mais irada.

Vem a hora de passar o bando dos patos, a hora em que os piris e as taboas palpitam  no  cimo  d’água,  saudando-os.  A  terra  inteira  pareceu  recolher-se  para  receber  no  âmago  o  derradeiro espasmo do sol: assim que ele imergiu no fundo das montanhas, ela agitou-se por  instantes numa convulsão demorada, e cobriram-se de vivo sangue as copas dos angicos, até  aí virginalmente brancas.

Mais tempo, menos tempo, saía de um rancho sufocado entre dois montes, a um lado  do rio verdinho, o Renato da Mantiqueira, montado num cavalo mouro. Arranjara o animal a  capricho,  levando-o  primeiro,  raspando-lhe  o  pêlo  depois;  selara-o  com  um  socado  de  sorocaba, dos bons, adicionando-lhe peitoral e caçambas de prata que tiniam. Teso e cheio de  não-me-toques, ganhou a estrada que dizia para a grama; assobiou a música da araúna, ergueu  ao ar o chicote de bonito lavor, desceu-o às ancas do mouro, e seguiu com vontade.

Seu  coração  batia  forte,  acompanhando  quase  o  viajeiro  da  cavalgadura:  chegou  a  pensar umas coisas esquisitas, que eram comparações dos estrupidos das patas com o barulho  do  coração,  perguntando  a  si  mesmo  o  que  seria  que  andava  mais  ligeiro  –  o  coração  ou  cavalo?

Encontrou  gente  como  formiga.  Aborreceu-se  um  nada.  Queria-se  não  visto  e  só,  abrindo e fechando porteiras, namorando a estrela do pastor que não tardaria a entrar no circo  imenso  do  firmamento;  queria-se  invisível  entre  os  andaaçus  marginais  da  estrada  real:  amaldiçoou,  no  íntimo, aquelas  pessoas  que  o  observavam  com  tal  insistência,  que  se  diria   estarem  resolvendo  interrogá-lo  a  cada  sombra  mais  densa  de  gurrupiazeiro,  onde  luzia  em  triunfo a prataria dos bocais do mouro.

Deu-lhe na gana gritar que ia ver a Anica, a dona dos olhos mais perigosos de toda a  redondeza, a rapariga que ao andar tanto e tão bem rebolava o corpo, que o corpo dela fazia  pensar-se numa colina de geléia deliciosíssima. Ia, pois vê-la: que importava isso aos bocós,  agora?  Teve  desejos  de  livrar  o  peito  da  jeriza  que  o  oprimia.  Quis  mandar  os  importunos  cavaleiros e viandantes aos quintos dos infernos. Quis dizer muito; mas continuou sem dizer  nada, mas continuou a assobiar a música da araúna.

O  engraçado  foi  que  no  alto  de  um  morrinho,  por  sinal  que  um  morrinho  todo  florescido  de  maravilhas,  um  nambu  mineiro  estava  piando  com  delícias.  Havia  já  pedaço,  principiara  uma  série  de  pios,  e  não  conseguira  chegar  ao  fim,  pois  um  outro  lhe  volvera  pronta  resposta,  escondido  numa  touceira  de  maçambará.  O  Renato  passou  e,  como  recomeçasse  a  predileta  canção,  o  sonso  do  nambu  tomou  vôo  contra  ele,  cuidando-o  por  certo algum rival que requestava a mais que desejada nambu.

O  Renato  levantou  o  chicote,  varejou-o,  empuxando-o  contra  o  chão.  E  reparando  nele, que se estorcia nas vascas da morte, murmurou:

− Se até os passarinhos já têm ciúmes de mim, que dirá certa gente que se morre de  amores pela Anica!

Aquela  idéia  atravessou-lhe  o  espírito,  como  um  morcego  o  silêncio  de  uma  igreja.  Sobre ela acumularam-se outras, não menos ruins. Sobre estas, outras piores. De modo que o  rapaz, de alegre que estava, se pôs a banzar. Lembrou-lhe um fato, o de lhe haverem contado  que o pai da moça jurara matá-lo, se o soubesse rondando junto às janelas do terreiro.

Isso já era demais. Virava de zanga em ameaço. Enfurecesse-se o velho, tinha lá suas  razões. Mas ameaços, não os fizesse, que um peitudo da Mantiqueira não conta com desgraça  de jeito nenhum!

Quem pagou tudo, foi o mouro. Vergastadas intercadentes lambiam-lhe com raiva as  paletas.  Murros  –  até  murros!  –  adormeceram-lhe  as  fibras  de  sob  as  crinas.  Pés  nervosos,  descalços, correram-lhe as virilhas, por feição que o deixaram mais do que triste. Um animal  de estimação, como ele, apanhado à semelhança de burro chucro, já se viu só?

A  noite,  que  era  de  lua,  veio  com  todo  o  vagar.  Suindaras  gemiam  perdidas  numa  lonjura  incalculável  e  um  beija-flor  sem  juízo  trinava,  apesar  de  vinda  a  noite,  no  ramo  cimeiro de uma arvoreta. O Renato sentiu-se tomado de súbita melancolia; puxou as rédeas,   parou,  dirigiu  ao  pássaro  a  mágoa  de  que  percebia  inundados  os  próprios  olhos,  e  ouviu-o  cantar. A estrela do pastor já fulgia no céu e ele pensou entre si:

− Pode que o louquinho do beija-flor se esteja finando de paixão pela estrela!

E depois acrescentou: 

− Mas é mesmo um louquinho o tal, que não pode ter certeza de ser correspondido. Eu, que  gosto da Anica, sei pelo menos que ela gosta de mim. Gosta muito, mas mesmo muito!

Em seguida, abstraiu-se, com uma penetração estranha de vista para o mistério claro do luar,  e murmurou:

− Homem, quem sabe?

Estalaram chicotadas. O mouro disparou num galopão. Por quê? Porque o Renato precisava  conhecer o amor que a Anica possuía no coração de moça nova. Apresentara-se uma dúvida: pressa  se dava ele em desvendá-la.

Para logo romperam do lago de luar que transbordava pela estrada, ramalhetes de vegetação  densa e altaneira. Eram três jatobás que assombreavam a casa da linda Anica, e, achando-se perto  deles, o rapaz achou-se perto do peito dela. .

Ai! Que julgava já vê-la, num vulto visto à porta da casa! Mas não, não era! Talvez alguma  pomba esquecida do ninho, enrufando as penas, pousou ali e contemplava a serenidade do espaço:  quem sabe se uma travessa marrequinha, das alvas, estava perlongando aquelas regiões, antes de  tornar à quentura do ninho? Não, não era a moça!

Não era, mas então o que seria?

Foi-se aproximando. O vulto deu de crescer, de crescer. Cresceu de tal modo, que, afinal, o  Renato reconheceu nele a Anica.

As madressilvas de uma cerca próxima rescendiam; as laranjeiras vestiam-se de noivas e,  noivas perfumosas, enchiam o ar de piras emanações: de vez em vez uma viração mais apressada  mergulhava nas ramarias, e formava-se-lhes em torno uma atmosfera de inocência e de sonho.

O Renato achou-se envolvido na pureza dessa atmosfera e acreditou-se levado aos sete céus  da felicidade.

A prova é que falou, numa voz que se diria de êxtase:

− Anica, está deveras distraída!

Ela respondeu numa voz que era mais branda que um arrulho:

− Tenho motivos para distração.

− Para alegria?

− Antes fosse. Para distração que termina em sofrimento.

− Pois, Anica, uma coisa lhe juro: você empregava com acerto os seus pensamentos,  se eles ficassem presos numa idéia.

− Qual idéia, Renato?

− A da nossa dita.

− Aí está um impossível!

− Impossível, se você quer que seja impossível.

− Não, eu não quero.

− Então, você tem estima por mim?

− Não sei.

Às vezes o não sei é dito de tal forma que já é uma afirmativa. O Renato alegrou-se, e teve os olhos úmidos de satisfação. E daí sua voz banhou-se de satisfação também, como os  olhos, saindo-lhe trêmula:

− Já vê que nós havemos de ser ditosos.

− Não, atalhou Anica: não, porque papai não admite nem que se toque nesse assunto.

− Que me importa?

− Mas você bem sabe que eu sou de menor idade.

Nesse momento, reboou na calma da noite uma apóstrofe terrível:

− Desgraçado! Saia de lá que, senão, corre perigo!

− É a voz de papai, aventurou Anica: fuja! Fuja!

O Renato, porém, quedou-se-lhe à beira. Tomou-lhe uma das mãos, e bradou com toda  a energia:

− Quero muito bem a ela. Ela me quer muito bem. Deixe que nós casemos, é o que lhe  pedimos.

− Maldito! – a voz continuou: nunca eu lhe entregaria minha filha!

− Nunca?

− Nunca.

O Renato perguntou à Anica:

− O seu amor é grande?

− É.

− Você faz loucuras que eu fizer?

− Faço.

− Suba à garupa do mouro.

Ela montou. Cingiu-lhe o corpo com os seus braços cor de leite, notou que ele os premia  com afeição e creu-se venturosa.

O cavalo partiu num galopão desfeito. Viu-se uma fímbria de nuvem ondulando-lhe sobre a  cauda, uma nuvem de cassa ou de cambraia, e um longo chapéu de feltro, de abas largas, a sumir na  indecisão do luar. Depois, nada mais do que. . Poeira, poeira e mais poeira. 

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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007  

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