quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Raul Pompéia: "A Batalha dos Livros"

A BATALHA DOS LIVROS

Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome  significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque  vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez  de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de idéias, fome de páginas; havia  alguma cousa de traça no seu apetite. Oh! Não lhe ser dado viver entre a  compressão erudita de dous capítulos de um livro fechado, tranqüilo e só, roendo,  roendo as saborosas folhas.

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água  do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não  tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o  bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador  honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as  intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado  em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem  apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco  inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor  hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a idéia de ir  perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em  compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva  como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os  seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre  elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré. 

Um

LEXICON

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos  científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim  de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as  Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de  aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da  navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto  Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o  incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo  rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranqüilas do  oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo.  Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com   hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu  bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta.  Aristóteles... Ora, ora! — de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um  organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos  escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de  noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do  mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas  daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de  enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, lingüísticos, históricos,  geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a  investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis  espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias,  desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma,  as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura  completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve  escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito,  erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo,  tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não  serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é  verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os  princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por  entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em  remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para  esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza,  para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa  contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com  redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados. 

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma  clarabóia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo  colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando  perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes  uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local,  tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos  terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente  arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios  amarrotados de páginas enormes — tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa.  Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A  cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à  cinta, heróico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o  desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

 Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de  jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda  sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa  contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces  cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção  espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação  da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro,  e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas  últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto  grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o  representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da clarabóia, chegava em toda luz aos nomes   gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que  escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de  sombra que rodeava a clarabóia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se  confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente — retratos de homens  ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do  estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso  da clarabóia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, ai na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o  murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros,  aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios,  perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absortas, com as suas obras prediletas,  ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um  divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca,  Moliêre, Klopstock, Cervantes, Byron, Guttemberg, Kepler, Beethoven, Miguel  Ángelo, Kant, Cesar, Sócrates, Lafontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão  X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam  bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do  gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio  chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si  alguma cousa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um  sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as  pernas, beribéri da glória! E ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura,  como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não  chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos  retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no  meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir  sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação,  como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a  preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável  dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu  espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao  desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A idéia fixa escravizou-o. A dificuldade  teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as cousas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito  tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A  biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários  no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma cousa no  interior da biblioteca, cousa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro  corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício  da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou  um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela  auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho  acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

— Não deseja descansar, meu ti?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se  bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a  mão magra para a saída da ante-sala onde se achavam, rangendo entre dentes,  com a voz surda e as sílabas trincadas:

— Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de  que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância,  observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar  em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho,  observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

— Tanto esforço mental... Explicou o facultativo com proficiência. 

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara  necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar  os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da  sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente  enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e  horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos  adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das  esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de  escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e  literatura. Dous capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! 

Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas  alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia a pena  comunicar-lhes as grandes cousas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas  contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de  relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas  idéias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! Era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da  gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio.
Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta,  flutuavam-lhes as idéias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a  qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão  se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células  educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada  da   luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu  espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do  pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe  saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopéia de rumores, cada noite mais  assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos  preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos  e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dous palmos  pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como  mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das  vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os  mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a  palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam  viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção  percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma  página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos  como as folhas das árvores: era o rumo da História.

À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro  barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel  desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o  rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos  parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se  uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de  vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando  o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos,  reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras  de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal  dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam  na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou  das vergonhas.

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era  impunemente que ele fruia esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o  seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da  fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu  observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o  carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde  chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais  acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à  fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único ritos que lhe  agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os  lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou  ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia  extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo  foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos  livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

— Ah! Exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que  lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! Nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.
  
Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o  sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! Quando provavelmente ia resolver o grande problema da  paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não  explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca,  que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável  estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se  tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus  companheiros de cinqüenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de  papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor  cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma  expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamleto, tenebroso e irônico,  Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias,  Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a  fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos  retratos admiráveis de grandes homens.

---
Nota:
Raul Pompéia: Contos (s/d)   

Nenhum comentário:

Postar um comentário