A
ANDORINHA DA TORRE
Cada
um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as
mais antigas por baixo, numa ordem admirável,
que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou
deslocando-se outras. Basta, porém, que uma
causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do
passado. Esta causa pode ser qualquer, uma
harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um
painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto...
Que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos
impressionaram...
Sempre
que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene,
religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas
e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como vôos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos
sinos, cantando saudosamente na linha azul
do horizonte, como um vago psalmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas
de veludo franjado a ensanefarem as
arcarias do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo cousas fantásticas no ar; nem do dorso do
padre recamado de florões de ouro sobre cetim
branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que
sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante;
o sino de nada disso me faz lembrar, nem
mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas
de pau mal talhado...
Desde
muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...
Era
aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos
grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula
enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho
da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...
Os
mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre
o
mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha.
Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o
avô da mais galante criança que se tem
visto.
Por
aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito,
davam-lhe doces e beijos que não havia mãos
a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que
moravam lá no alto as pessoas da cidade
que tanto a queriam.
Mas
como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e
pachorrentos como uns homens de idade, mas,
em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns,
precipitarem-se no espaço como se fossem
desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.
Pareciam
mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho
Emílio, toda aquela imobilidade movia- se em viravoltas céleres e vertiginosas,
toda aquela mudez vociferava, em sonorosos
estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.
A
pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do
espírito aqueles monstros boquiabertos que
sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo
profundo e escuro, clarear-lhes os dourados
de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...
Havia
amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.
Uma
vez, na Semana Santa de 18..., a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar
os dias no alto da igreja em companhia
de Emílio) adoeceu gravemente.
Caiu
de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.
Do
quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil
a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do
sino grande, onde tantas vezes estivera a
seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e
enfiavam-se por um lado da torre para
sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.
Sofria
a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.
Por
maior infelicidade, havia dous dias que os sinos coaservavam-se desesperadamente calados...
Emílio
não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a idéia de perder aquela criança, que era a recordação
viva da filha e do genro que a fatalidade
lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.
No
Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...
Uma
alegria, sobretudo agitava-a deliciosameate.
O
sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse
tomar o seu posto.
Rita
ia ouvir novamente a voz dos sinos!...
Certo
de que eram reais as melhoras da netinha, tranqüilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava
salva, sorrindo à idéia de que a neta se
havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente
a testa da criança, deixou-a entregue
aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.
Da
janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.
A
vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse
o
leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos
bons e brandos; parecia-lhe até que ela
acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora. Eram onze horas e meia. Emílio estava
impaciente. Os minutos passavam longos,
como se em vez de minutos fossem horas...
Do
alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se
indefinidamente pela cidade afora. As
ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos
de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta
e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros
alastrados de roupa branca onde o sol brilhava
deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras,
correndo daqui para ali, as cozinhas em
movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das
ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o
tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés
fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a
findar à última hora dos magros dias da
quaresma.
O
velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que
os altos pontos de vista desvendam numa
cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...
Um
movimento de espanto fê-lo recuar da janela...
Estava
suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e
agitava desesperadamente um lenço em direção
à torre.
Acenava-lhe,
sem dúvida.
Mas
o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão;
talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer
que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.
O
lenço frenético significava alegria? Significava terror?... Urgia saber-se!
Emílio
ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:
—
Olha o sino!... Olha o sino!... Já passa da hora... Já cantaram a Glória!
Emílio,
atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as,
desvairado, e agita os sinos como um doudo,
confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na
torre uma tempestade de detonações
incríveis, infernais.
—
Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.
Depois
de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da
netinha. Estava suspensa como antes da
Aleluia e ninguém mais se via.
—
Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... Pensou o velho...
E,
mais tranqüilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre.
Na escada, teve de sentar-se muitas vezes,
antes de chegar ao último degrau.
—
Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...
Em
casa, encontrou morta a pequena Rita.
—
Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.
O
velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o
espaço profundo, e caiu.
Na
rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.
É
esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado
que me vem à mente, a voz dos sinos,
cantando na um vago psalmear flutuante...
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Nota:
Raul Pompéia: Contos (s/d)
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