MARIA
ROSA MÍSTICA - I
SERMÃO I: COM O SANTÍSSIMO
SACRAMENTO EXPOSTO
Loquente Jesu ad turbas, extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit
illi: Beatus venter qui te portavit et
ubera quae suxisti. At ille dixit: Quinimmo beati, qui audiunt
verbum Dei et custodiunt illud.
CAPÍTULO I
Propriedade do presente Evangelho
à nova festa do Rosário. A perfeita oração definida por S. Gregório Niceno e S.
João Crisóstomo. Assunto do sermão: a oração vocal do Rosário, figurada no
diálogo entre Cristo e a mulher do povo, é a mais alta e levantada de todas.
Pregando Cristo, Redentor nosso,
a uma grande multidão de bons e maus ouvintes, depois de ter convencido, com
força de evidentes razões, a rebeldia dos maus, levantou a voz uma boa mulher,
dizendo: Beatus venter qui te portavit et
ubera quae suxisti (Lc 11, 27): Bem-aventurado o ventre que trouxe dentro
em si tal Filho, e bem-aventurados os peitos a que foi criado. — Não negou o
Senhor o que disse a devota mulher, porque eram dignos louvores da bendita
entre todas as mulheres; mas, porque no rompimento daquelas vozes mostrava bem
o inteiro juízo que fizera do que tinha ouvido, respondeu o Mestre divino: Quinimmo beati qui audiunt verbum Dei et
custodiunt illud (ibid. 28): Antes te digo que bem-aventurados são, como tu
fizeste, os que ouvem a palavra de Deus e a guardam. — Isto é pontualmente, e
letra por letra, tudo o que nos refere o evangelista S. Lucas no texto que
propus, largo para tema, mas breve para Evangelho, e mais em dia de tão grande
solenidade.
O que nele noto, e me admira
muito, é que em tal tempo e em tal concurso esta mulher falasse com Cristo, e
Cristo lhe respondesse. Não é ponderação minha, senão do mesmo evangelista: Factum est autem, cum haec diceret:
extollens vocem quaedam mulier de turba, dixit illi. Aquele termo factum est autem, é uma prefação, em que
mostra o evangelista que passa a dizer um caso raro, notável, novo, que de
nenhum modo se podia esperar nem presumir. E assim foi. Que no meio da pregação
fale uma mulher, não é novidade, mas que levante a voz: extollens vocem — e que fale, não com outrem, senão com o mesmo
pregador: dixit illi - caso foi muito
notável. Porém que o pregador, sendo Cristo, no meio e no fim da pregação: Cum haec diceret — não só dê ouvidos à
mulher, mas lhe responda, e pelos mesmos termos: beatus venter, beati qui audiunt — maior caso, e mais notável
ainda. Mas assim havia de ser, e assim importava que fosse. Por que, ou para
quê? Para que os pregadores, que nos mistérios e solenidades da Virgem, Senhora
nossa, temos tanto trabalho em acomodar os Evangelhos, tivéssemos um Evangelho
muito próprio, muito proporcionado, muito natural e muito fácil, com que pregar
do seu Rosário. E esta é a razão por que a Igreja Católica, alumiada pelo
Espírito Santo, instituindo novo Ofício e nova Missa do Rosário, mandou cantar
nela, não outro, senão o Evangelho que ouvistes, e eu referi todo. Assim que
este Evangelho é o mais próprio e acomodado, e este, na sua mesma brevidade, o
mais capaz de se poder pregar nele a devoção santíssima do Rosário, e se
declararem por ele a essência e excelências de tão soberana oração.
S. João Crisóstomo e S. Gregório
Niceno, dois grandes lumes da Igreja, e seus intérpretes, definiram a perfeita
oração desta maneira. S. Crisóstomo, falando da oração em comum no livro
primeiro De Orando Deum, diz que a perfeita oração é um colóquio do homem com
Deus: Colloquium animae cum Deo. — E
S. Gregório Niceno, comentando particularmente a oração do Padre-Nosso, que é a
primeira e principal do Rosário, diz que a oração perfeita é uma prática e
conversação com Deus: Est conversatio,
sermocinatioque cum Deo. E que fundamento tiveram estes grandes doutores, a
quem seguem Santo Tomás, e todos os teólogos, para definir a oração com nome de
colóquio, de conversação e prática com Deus? O fundamento que ambos tiveram foi
porque o colóquio, a prática e a conversação, não só é falar, senão falar e
ouvir: é dizer de uma parte, e responder de outra; e nesta comunicação
recíproca consiste a essência e excelência da perfeita oração. Na oração menos
perfeita fala o homem com Deus; na perfeita e perfeitíssima fala o homem com
Deus e Deus com o homem. E isto é o que reciprocamente exercita o Rosário, como
oração perfeitíssima, nas duas partes de que é composto. O Rosário compõe-se de
oração vocal e mental; vocal nas orações que reza: mental nos mistérios que
medita. Enquanto rezamos falamos com Deus: enquanto meditamos fala Deus
conosco. O nosso rezar são vozes, o nosso meditar é silêncio; mas neste
silêncio ouvimos melhor do que somos ouvidos nas vozes, porque nas vozes
ouve-nos Deus a nós, no silêncio ouvimos nós a Deus.
Tal é o colóquio da oração
perfeita, tal a prática do Rosário, e tal, com toda a propriedade, o diálogo do
nosso Evangelho. A mulher falou com Cristo, e Cristo respondeu à mulher; a
mulher disse da sua parte: dixit illi
— e Cristo também disse da sua: at ille
dixit — : ela disse bem, porque disse beatus
venter — : o Senhor disse melhor porque disse quinimmo beati. E porque na
parte vocal ouve Deus, e na mental ouve o homem, ela levantou a voz, para que o
Senhor ouvisse as suas palavras: extolens
vocem — e o Senhor louvou os ouvidos com que ela tinha ouvido as palavras
de Deus: Qui audiunt verbum Dei.
Suposto, pois, que no caso do
presente Evangelho temos historiado o Rosário, e resumida, com tanta
propriedade, a idéia de sua admirável composição, assim como Deus primeiro
formou o corpo de Adão, e depois lhe infundiu a alma, o mesmo farei eu. A parte
mental, que é a alma do Rosário, ficará para outro discurso; neste tratarei só
da vocal, que é o corpo: queira Deus que me caiba nele. O assunto não há de ser
meu, senão de quem levantou a voz: extollens
vocem. A mesma que levantou a voz levantou o assunto. Assim que o que
determino mostrar, e havemos de ver hoje, será: que a oração vocal do Rosário,
enquanto vocal, é a mais alta e levantada de todas: extollens vocem. Para que a Senhora nos assista com sua graça,
ofereçamo-lhe agora uma vez o que tantas repetimos no Rosário: Ave Maria.
CAPÍTULO II
A oração da mulher do Evangelho
foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou e por quem louvou;
do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem
pede, e por quem pede. A oração panegírica ou laudatória, e a oração
deprecatória.
Extollens vocem.
Para compreender a excelência e
alteza de qualquer oração vocal, nas mesmas vozes ou palavras de que é
composta, se devem considerar três respeitos ou três partes essenciais: o que
se pede, a quem se pede, e por quem se pede; o que, a quem, e por quem. Esta
mesma distinção observou a mulher do Evangelho. A sua oração foi panegírica e
laudatória, e na voz que levantou: extollens
vocem — tocou os mesmos três pontos e os mais altos a que podia chegar o
mais levantado espírito. O que louvou foi o mistério altíssimo da Encarnação; a
quem louvou foi a pessoa do mesmo Verbo encarnado; e por quem o louvou foi pela
Mãe que o concebeu em suas entranhas e o criou a seus peitos: Beatus venter qui te portavit. Não
pudéramos desejar nem melhor texto para dividir o nosso discurso, nem melhor
guia para o seguir. A oração vocal do Rosário só se distingue desta do
Evangelho pelo fim porque o fim, desta oração, como panegírica, foi louvar e a
do Rosário, como deprecatória, é pedir. Aquela voz foi altíssima na
consideração do que louvou, a quem louvou, e por quem louvou; e do mesmo modo é
altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem
pede. E estas serão as três partes do nosso discurso. Alta e altíssima a oração
vocal do Rosário pela alteza das petições que nela fazemos: extollens vocem; alta e altíssima pela
alteza da Majestade, a quem as presentamos: extollens
vocem; e alta, finalmente, e altíssima pela alteza da intercessão de que
nos valemos: extollens vocem. Ouçam
agora com atenção os devotos do Rosário, e com inveja e arrependimento os que o
não forem.
CAPÍTULO III
Primeira parte: É alta e
altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza da majestade a que presentamos
nossas petições. A oração de Davi. A esfera da vista e a esfera da voz. Os
céus, onde chegam os anjos com a vista, chegam os homens com a voz. Ana, mãe de
Samuel, excelente figura dos que rezam o Rosário. Por que oramos a Deus
enquanto está no céu? A oração do fariseu e a oração do publicano. A presença
de Deus na terra e a Majestade de Deus no céu considerados na oração do Filho
Pródigo.
Considerando, pois, em primeiro
lugar, a alteza da majestade a que presentamos nossas petições, e começando —
para maior clareza — por onde começa o Rosário, qual é a sua primeira voz? A
primeira voz do Rosário é: Pater noster
qui es in caelis (Mt 6, 9): Padre Nosso, que estás em os céus. — E voz que
chega da terra ao céu, e ao céu onde está Deus, vede se é alta e altíssima: extollens vocem?
Nós não reparamos nesta que parece
vulgaridade; mas o maior mestre de orar, que foi Davi, faz grande reparo nela: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit de
monte sancto suo. Davi era grande contemplativo, mas nesta ocasião — que
foi quando fugia de seu filho — orou vocalmente. Isso quer dizer voce mea, oração vocal. E o que muito
pondera é que esta voz, saindo do vale do Cedrão, por onde caminhava, fosse
ouvida no Monte Tabor da glória, onde Deus tem o trono de sua majestade: De caelo et sublimi throno gloriae suae —
comenta S. Atanásio. O céu, onde Deus tem o trono de sua majestade, não é algum
dos céus que vemos, senão outro céu sobre estes, quase infinitamente mais
levantado e sublime; por isso não dizemos: qui
es in caelo, senão: qui es in caelis.
Da mesma frase usou Cristo, quando disse que os anjos que assistem na terra em
nossa guarda sempre vêem a Deus que está, não no céu, senão nos céus: Semper vident faciem Patris, qui in caelis
est. E, combinando um texto com outro, é prerrogativa verdadeiramente
admirável que, onde chegam os anjos com a vista cheguem os homens com a voz. A
esfera da voz é, sem comparação, mais limitada que a da vista. Mas isto se
entende da voz com que falamos, e não da voz com que oramos. A voz com que
falamos mal se estende a toda esta igreja; e a vista tem tanto maior e mais
alta esfera que chega ao firmamento, onde vemos as estrelas. Porém, a voz com
que oramos, não só chega ao firmamento, que vemos, que é o céu das estrelas,
mas ao mesmo empíreo, que não vemos, que é o céu de Deus. O céu que vemos é o céu
da terra; o céu onde está Deus é o céu do céu: Caelum caeli Domino. E isto é o que ponderava e admirava Davi na
voz da sua oração: Voce mea ad Dominum
clamavi, et exaudivit me de monte sancto suo.
Mas daqui mesmo se vê que a
alteza desta voz ainda é mais maravilhosa nos que rezam o Rosário. Davi diz que
clamou e bradou com a sua voz: Voce mea
ad Dominum clamavi — e no Rosário não é necessário clamar, nem ainda soar.
Ana, mãe de Samuel, foi uma excelente figura dos que rezam o Rosário. Dela diz
o texto sagrado que, multiplicando as preces, somente se lhe viam mover os
beiços, mas a voz de nenhum modo se ouvia: Cum
multiplicaret preces coram Domino, tantum labia illius movebantur, et vox
penitus non audiebatur. O mesmo passa cá pontualmente. Ana multiplicava as
suas preces, e quem reza o Rosário também as multiplica, porque repete muitas
vezes a mesma oração. A Ana só se lhe viam os movimentos da boca, porém a voz
não se ouvia; e vós rezais o vosso Rosário com uma voz tão interior — e por
isso mais devota - que nem os que estão muito perto vos ouvem, nem vós mesmos
vos ouvis. E quando vós não ouvis a vossa mesma voz, é ela tão alta, e sobe tão
alto: Extollen vocem — que chega ao
céu dos céus, onde está Deus: Qui es in
caelis.
Não faltará, porém, quem diga que
esta circunstância de orarmos a Deus enquanto está no céu parece uma cerimônia
supérflua, e não só não necessária, mas nem ainda conveniente. Comentando Santo
Agostinho estas palavras, que em seu tempo ainda não eram do Rosário, mas eram
as mesmas, diz assim: Non dicimus Pater
noster, qui es ubique, cum et hoc verum sit, sed Pater noster, qui es in caelis.
Deus, por sua imensidade, está em toda a parte, e não só conosco, senão em nós,
em qualquer lugar onde estivermos. Logo não é necessário invocar a Deus
enquanto está no céu, pois também o temos na terra quanto mais que invocá-lo no
céu, parece que é afastarmos a Deus de nós, e orar de longe, quando fora mais
conveniente e mais conforme ao afeto da devoção fazê-lo de perto. Não é mais
conveniente falarmos com Deus onde ele está e nós estamos, que onde ele está e
nós não? O mesmo Davi, tão grande mestre desta arte, pedia a Deus que a sua
oração chegasse muito perto do seu divino acatamento: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo. E o Rosário, antes de
as Ave-Marias convertidas em rosas lhe darem este nome, chamava-se o Saltério
da Virgem, porque o de Davi se compõe de cento e cinqüenta salmos, e o da
Senhora de outro tanto número de saudações angélicas. Pois, se Davi, no seu
Saltério, pede a Deus que a sua oração chegue muito perto dele: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo
— como nós, no Saltério da Virgem, nos pomos tão longe de Deus, ou a Deus tão
longe de nós, quanto vai da terra ao céu: Qui
es in caelis?
Digo que não é diferente o nosso
ditame, senão o mesmo que o de Davi. E por quê? Porque quanto o que ora se põe
mais longe de Deus, tanto a sua oração chega mais perto dele. Põe-se a oração e
o que ora diante de Deus como em duas balanças: enquanto o que ora mais se
abate e fica mais longe, tanto a oração mais sobe e chega mais perto: ele mais
longe por reverência, e ela mais perto por aceitação. Foram dois homens ao
templo a orar, diz Cristo, um fariseu e outro publicano. O fariseu, como
religioso que era daquele tempo, chegou-se muito perto do altar e do Sancta Sanctorum, e ali representava a
Deus suas boas obras. O publicano, pelo contrário, pôs-se lá muito longe: Stans a longe (Lc 18, 13) — e sem se
atrever a levantar os olhos ao céu, batia nos peitos, e pedia perdão dos seus
pecados. Esta foi a diferença dos oradores e das orações. E qual foi o sucesso?
Descendit hic justificatus ab illo. O
que se chegou muito perto do altar e de Deus ficou a sua oração muito longe,
porque foi reprovada, e o que se pôs muito longe: Stans a longe — chegou a sua oração muito perto de Deus, porque foi
aceita. Ele longe por respeito, e a sua oração perto por agrado; ele longe por
reverência, e ela perto por aceitação: Non
audebat appropinquare, ut Deus ad eum appropinquaret — diz o Venerável
Beda. E isto é o que nós fazemos logo no princípio do Rosário. Ainda que Deus
está em toda a parte, não o invocamos de perto, enquanto assiste na terra por
imensidade, senão de longe, e tão longe, enquanto preside no céu por majestade:
Qui es in caelis — e quanto nós, como
é razão, mais nos abatemos, tanto a voz da nossa oração mais se levanta: Extollens vocem.
É verdade, como ponderava Santo
Agostinho, que para a eficácia da nossa oração bastava orar a Deus na terra,
mas para a dignidade não. Porque Deus na terra está só por presença, como
imenso, no céu está por majestade, como Altíssimo. Esta foi a diferença que
considerou e distinguiu o Pródigo na sua oração: Peccavi in caelum, et coram te (Lc 15, 18 ) : Pequei contra o céu,
e na vossa presença. - E por que fez aquele moço, já bem entendido, esta
diferença de lugar a lugar e de Deus a Deus? Porque na terra reconhecia a sua
presença, e no céu considerava a sua majestade. No coram te confessava a
presença ofendida, no peccavi in caelum
a majestade lesa. E como Deus na terra está só por presença, como imenso, e no
céu por majestade, como Altíssimo: Tu solus
Altissimus in omni terra — por isso
o divino autor desta divina oração, para que conhecêssemos o modo de orar
altíssimo, que nos ensinava, nos mandou que orássemos a Deus, não enquanto está
por presença em todo lugar, mas enquanto está por majestade no céu dos céus: In caelis. O publicano que orou bem, mas
a modo da lei velha, diz o evangelista que nem os olhos se atrevia a levantar
ao céu: Nolebat nec oculos ad caelum
levare (Lc 18, 13) —porém, o Mestre divino da lei da graça, não só quer que
levantemos os olhos e as mãos ao céu, mas que logo no princípio da nossa oração
a presentemos no céu dos céus diante do divino acatamento, e que onde Deus
assiste por majestade como Altíssimo, lá entre confiadamente a nossa oração, e
lá suba e se levante a nossa voz: Extollens
vocem.
CAPÍTULO IV
A ousadia da língua mortal ao
pronunciar: Pater Noster. O sagrado
horror com que o faz a Igreja Católica. A altura de que Lúcifer caiu porque
entendeu que havia de haver um homem que chamasse a Deus pai, é a mesma a que
nós subimos: muito alta quando dizemos: Qui
in caelis, mas infinitamente mais alta quando dizemos: Pater noster. Excelência da nossa oração em comparação da oração
dos patriarcas e profetas. Por que Cristo, na sua Paixão, três vezes orou a
Deus como Pai, e uma só vez como Deus?
E se esta voz ou esta oração
vocal do Rosário se levanta tanto, e é tão alta quando dizemos: Qui es in caelis, quem poderá
bastantemente declarar a alteza, não só inacessível, mas tremenda, aonde se
levanta e remonta a mesma voz, quando com ela se atreve a língua mortal a
pronunciar Pater Noster? O grande S.
Pedro Crisólogo, cujas palavras, por antonomásia, foram chamadas de ouro,
subindo um dia ao púlpito de Ravena, onde, como arcebispo seu era visto
freqüentemente, começou desta maneira: Hodie,
quod audituri estis, stupent angeli, miratur caelum, pavet terra, caro non
fert, auditus non capit, non attingit mens tota non potest sustinere creatura,
ebo dicere non audeo, tacere non possum: O que trago hoje para pregar, e o
que haveis de ouvir — diz Crisólogo — é um caso de que pasmam os anjos, de que
se assombra o céu, de que tem medo a terra, de que se estremecem as carnes: é
um caso que não cabe nos ouvidos, que não alcançam os entendimentos, que não
tem ombros para o suportar toda a máquina das criaturas, e que eu me não atrevo
a dizer nem posso calar: Dicere non
audeo, tacere non possum. — Tende mão, Demóstenes divino. E que exórdio é
este tão desusado? Que caso tão novo, tão inaudito, tão tremendo para a terra,
tão espantoso para o céu, e para homens e anjos tão estupendo? Ainda é maior do
que tenho representado, e maior que quanto se pode encarecer nem imaginar. E
qual é? É — conclui o grande teólogo e eloqüentíssimo orador — é que se pode
atrever a língua humana a dizer a Deus: Pater
noster. Pois dizer a Deus: Padre nosso, esta voz tão breve, este nome tão
amoroso, é aquele trovão que faz estremecer o céu e a terra, o pasmo dos anjos,
o assombro dos homens, o horror de todas as criaturas? Sim. E se nós tivéssemos
entendimento para compreender o mesmo que dizemos quando olhássemos para as
alturas, aonde se levanta a nossa voz: Extollens
vocem — antes havíamos de emudecer que pronunciá-la, e dizer como
Crisólogo: Dicere non audeo.
Ainda depois de Cristo nos mandar
orar por estes termos, ainda depois de sua majestade nos dar esta licença, e
seu amor esta confiança, vede o tento, a submissão, o recato e o sagrado
horror, com que o faz a Igreja Católica: Praeceptis
salutaribus moniti, et divina institutione formati, audemus dicere; Pater
noster: Obrigados, Senhor, do vosso preceito, admoestados da vossa
doutrina, e instruídos na forma da vossa divina instituição, ousamos a vos
dizer! quê? Pater noster. — De sorte
que invocar a Deus com o nome de nosso Pai, é uma coisa tão alta, tão sublime,
tão superior a toda a capacidade humana que, ainda depois de instruídos, e
admoestados e obrigados com preceito a orar por estes termos, e a invocar a
Deus com este nome, lhe chama a Igreja ousadia: Audemus dicere. Tão grande ousadia, se não fora preceito, era a
maior arrogância, e se não fora fé, a maior soberba. Assim o entendeu S.
Agostinho, quando disse: Non ergo hic
arrogantia est, sed fides; non superbia, sed devotio. Invocarmos a Deus com
o nome de Pai nosso, é graça e doutrina de seu próprio Filho; logo, não é
arrogância, senão fé, logo não é soberba, senão devoção. Mas fé e devoção tão
alta, que a soberba de Lúcifer se precipitou do céu, só porque entendeu que havia
de haver um homem que chamasse a Deus Pai. E esta altura, de que ele caiu, é a
mesma a que nós subimos: muito alta quando dizemos: Qui es in caelis, mas imensa e infinitamente mais alta quando
dizemos: Pater noster.
E por quê? A diferença é
manifesta. Porque quando dizemos: Qui es
in caelis, sobe a nossa oração no céu até o trono de Deus: mas quando
dizemos: Pater noster, sobe a mesma
oração em Deus até o seio do Padre. O seio do Padre é o lugar de seu Unigênito
Filho: Unigenitus qui est in sinu Patris
— e onde o Filho tem o assento por natureza quis que nós tivéssemos o acesso
por graça, e que ao mesmo Pai, de quem ele é Filho, disséssemos nós com
verdade: Pater noster. Assim o ensina
com toda esta especialidade não menos que o apóstolo S. Paulo — Non enim accepistis spiritum servitutis
iterum in timore, sed accepistis spiritum adoptionis filiorum, in quo clamamus:
Abba, Pater. Exorta-nos o apóstolo a que vivamos conforme a dignidade do
nosso estado, não com espírito de temor, e servil, como os da lei velha, mas
com espírito de amor, e filial, como nascidos na lei da graça, advertindo — diz
— que vos levantou Deus ao lugar de seu próprio Filho, adotando-vos por tais,
como bem se mostra na confiança com que as nossas vozes dizem, ou nós dizemos a
vozes: Padre nosso: In quo clamamus:
Abba, Pater. — Primeiro que tudo notai o Pater e o clamamus: o clamamus, que é próprio da oração vocal, e o Pater, que é a primeira voz do Rosário.
Mas, se Moisés, Josué, Davi, Elias, Eliseu, e os mais, também oravam, e oravam
ao mesmo Deus que nós invocamos, em que consiste esta diferença ou excelência
da nossa oração, que S. Paulo tanto encarece em comparação da sua? Consiste,
como declara o mesmo apóstolo, em que na nossa oração chamamos a Deus Pai: In quo clamamus: Abba, Pater. Na lei
velha, nem em Deus era conhecido o nome de Padre, nem o Padre tinha comunicado
aos homens a adoção de filhos. Uma e outra coisa fez Cristo. Deu a conhecer o
nome do Padre: Pater, ego manifestavi
nomen tuum hominibus — e deu aos
homens a graça de poderem ser filhos do mesmo Padre: Dedit eis potestatem filios Dei fieri — e por isso os da lei velha,
como servos, oravam a Deus como Deus, e os da lei da graça, como filhos, oramos
a Deus como Pai.
Grande texto na mesma pessoa do
Filho, e com inteligência pouco observada e, porventura, não sabida. Quatro
vezes orou Cristo na sua Paixão, mas não pelos mesmos termos. Três vezes orou a
Deus como Pai, e uma vez como Deus. No Horto como Pai: Pater, si possibile est; quando o pregavam na cruz como Pai: Pater dimitte illis; quando finalmente
expirou como Pai: Pater in manus tuas
comendo spiritum meum. Porém, quando se lamentou de se ver desamparado e
deixado, não chamou a Deus Pai, senão Deus, e Deus repetidamente: Deus meus, Deus meus, ut quit dereliquisti me?
Pois, se Cristo, se o Filho do Eterno Padre em tantas outras ocasiões o invocou
com o nome de Pai, como agora lhe não chama Pai, senão Deus? Maior dúvida
ainda, e mais nova. As outras orações em que Cristo usou do nome de Pai, todas
refere o texto sagrado, assim grego, como latino, na mesma língua vulgar, e só
esta, em que o Senhor usou do nome de Deus, lê o Evangelho na língua hebraica: Eli, Eli, lamma sabacthani (Mat 27,
46). — Qual é, logo, a razão de uma e outra diferença, ambas tão particulares e
tão notáveis? A primeira — torno a dizer — por que só nesta oração chama Cristo
ao Padre Deus? A segunda, por que só esta oração se escreve na língua hebraica?
Direi. Cristo Redentor nosso na cruz, como quem atualmente estava pagando pelos
pecados de todo o gênero humano, representava em sua pessoa os dois povos, de
que o mesmo gênero humano se compunha: o judaico e o gentílico. E como Deus
naquela hora deixava e lançava de si o povo judaico, por isso Cristo, enquanto
representava o mesmo povo, se lamentava de se ver deixado: Ut qui dereliquisti me? Assim expõe este texto Teofilato, e, creio,
entenderão todos os doutos, que é o sentido mais próprio e mais literal dele: Ut quid dereliquisti me, id est, meum genus,
meum populum, qui secundum carnem mihi cognati sunt. — E daqui ficam
finalmente respondidas ambas as nossas questões: a de se referir só este texto
na língua hebréia, porque Cristo naquela ocasião representava o povo judaico
deixado, e em seu nome se lamentava; e a de orar então a Deus como Deus, e não
como Pai, porque os do mesmo povo, por mais santos e favorecidos que fossem,
não falavam a Deus como Pai, senão como Deus. É pontualmente tudo o que dizia
S. Paulo. Eles, porque viviam à lei de servos: In spiritu servitutis — oravam a Deus como Deus, nós, que vivemos
em foro de filhos: In spiritu adoptionis
filiorum -oramos a Deus como Pai: In
quo clamamus: Abba, Pater. — E notai outra vez a palavra clamamus, que não só significa voz senão
voz muito alta e levantada. Porque aquela grande altura, aonde nunca puderam
chegar as orações e vozes dos maiores patriarcas, por essa começamos nós hoje
com a primeira oração e a primeira voz do Rosário: Extollens vocem.
CAPÍTULO V
Segunda parte: Alta e altíssima é
a oração vocal do Rosário pela alteza das petições que nela fazemos. As três
primeiras petições do Padre-nosso: o nome de Deus, o reino de Deus e a vontade
de Deus. A oração perfeita não é pedirmos nós para nós, é pedirmos a Deus para
Deus. A oração ao Senhor da messe. As três petições do Rosário representadas
nas alegações de Judite a Deus, durante o cerco da cidade de Betúlia. Os que
rezam o Padre-nosso às avessas, como os sitiados de Betúlia.
Passando à segunda parte do nosso
discurso, vejamos agora como a mesma voz, ou oração vocal do Rosário, não é menos
alta e altíssima pela alteza das petições que nela fazemos. As do Padre-nosso,
antes de chegar a Ave-Maria — em que fazemos uma só — são sete; e as três por
onde começamos — para que as ponderemos por junto — muito notáveis. A primeira:
Sanctificetur nomen tuum — em que
pedimos a Deus a santificação de seu nome; a segunda: Adveniat regnum tuum — em que pedimos a propagação universal do seu
reino: a terceira: Fiat voluntas tua,
sicut in caelo et in terra — em pedimos a execução da sua vontade, tão inteiramente
na terra como no céu. Mas estas petições, se bem se consideram, parece que o
não são. Quem pede a Deus — como bem argúi aqui S. Gregório Niceno — ou pede o
remédio de suas necessidades, ou o socorro de seus trabalhos, ou o aumento e
conservação de seus bens, ou outra coisa sua, e para si. Mas nestas petições
nada é nosso, nem nos pertence a nós; tudo é do mesmo Deus a quem pedimos: nomen tuum: o teu nome; regnum tuum: o teu reino; voluntas tua, a tua vontade. Pois, se tudo isto é seu, e não nosso, se tudo
pertence a Deus, e não a nós, por que lho pedimos a ele? Porque esta é a alteza
altíssima da oração vocal do Rosário: Extollens
vocem. O mais alto ponto a que se pode levantar e subir a oração humana não
é pedir a Deus para nós, é pedir a Deus para Deus. Quando Cristo, Senhor nosso,
ajuntou ao número dos apóstolos o dos setenta e dois discípulos, disse-lhes
assim: Messis quidem multa, operarii
autem pauci. Rogate ergo dominum messis ut mittat operarios in messem suam
(Lc 10, 2): A seara que vos mando cultivar é muita, mas os operários ou
lavradores são poucos; pelo que rogai ao Senhor da seara que mande mais
operários à sua seara, ou à seara sua: In
messem suam. Este suam e aquele ergo parece que não fazem boa conseqüência. Se Cristo é o Senhor da
seara: Dominum messis: se a seara é sua:
In messem suam — como nos manda a nós que lhe roguemos e peçamos a ele que
mande operários? Não é o mesmo Senhor aquele vigilante pai de famílias que
madrugou muito cedo, e em todas as horas do dia saiu em pessoa à praça a chamar
e alugar operários para a vinha, não por outra razão, senão porque era sua: Ite et vos in vineam meam ? — Pois, se a
cultura e a colheita da sua seara está à conta da sua providência e do seu
cuidado, por que a encomenda às nossas orações: Rogate Dominum messis? — Se a seara fora nossa, então nos incumbia
a nós rogar e pedir a Deus nos desse os meios para ela; mas que, sendo a seara
de Deus, nós hajamos de rogar ao mesmo Deus que se lembre da cultura da sua
seara: Ut mittat operarios in messem suam?
— Bem se mostra que o mesmo autor do Padre-nosso é o mestre desta doutrina.
Manda que, sendo a seara de Deus, e não nossa, sejamos nós os que roguemos por
ela, porque a oração perfeita e perfeitíssima não é pedirmos nós para nós, é
pedirmos a Deus para Deus. Pedirmos nós para nós é procurar os nossos
interesses; pedirmos a Deus para Deus é solicitar a sua glória. E isto é o que
fazemos nas primeiras três petições do Rosário. Se dizemos sanctificetur, para glória de Deus: nomen tuum; se dizemos adveniat,
para glória de Deus outra vez: regnum
tuum; se dizemos fiat, para
glória de Deus do mesmo modo: voluntas
tua.
Um rei houve no mundo, tão
soberbo e tão louco, que tudo isto quis para si. Quis a exaltação de seu nome,
fazendo-se chamar Deus; quis a dilatação de seu reino, tratando de o estender
por todo o mundo; quis a execução universal da sua vontade, mandando que ela
só, e nenhuma outra, fosse obedecida. Já sabeis que falo de Nabucodonosor, mais
que bruto quando entrou neste pensamento que quando pastava no campo. Tinha
cercado a cidade de Betúlia, mais apertada já da sede que do mesmo sítio; orou
Judite a Deus; mas como orou? Lástima é que o não fizesse com um Rosário nas
mãos. Mas por isso disse S. Paulo que tudo o que se fazia na lei velha era figura
da nova: Omnia in figura contingebant
illis. A oração que fez depois de alegar as maravilhas de Deus em favor e
defesa do seu povo foi nesta forma: Erige
brachium tuum sicut ab initio, et allide virtutem illorum in virtute tua: cadat
virtus eorum in iracundia tua (Jdt 9, 11 ): Levantai, Senhor, vosso
onipotente braço como antigamente, quebrantai o poder de nossos inimigos com a
força do vosso, e sinta a soberba e violência dos seus exércitos o justo rigor
da vossa ira. — Isto é o que pede a oração de Judite; agora se seguem os
motivos que alega a Deus: Qui promittunt
se violare sancta tua, et polluere tabernaculum nominis tui, et dejicere gladio
suo coru altaris tu ( Jdt 9, 11 ): Porque vêm prometendo e ameaçando que
hão de violar o sagrado de vosso santuário, que hão de profanar o tabernáculo
de vosso santíssimo nome, e que com o ferro das suas armas hão de destruir e
arrasar os vossos altares. — Pois, senhora, isto é o que só alegais a Deus?
Muito mais é o que promete, muito mais o que ameaça o inimigo, de que está
cercada e tão apertada Betúlia. Ameaça que há de assaltar a cidade e levá-la à
viva força; ameaça que, a quantos a quiserem defender, não há de perdoar a
vida, mas serem passados todos ao fio da espada; ameaça que o saco e despojos
hão de ser a rica presa de seus soldados, em que a vossa casa terá mais que
roubar; ameaça que os poucos que escaparem da primeira fúria, grandes,
pequenos, homens, mulheres, meninos, hão de ficar cativos — ou não hão de ficar
— porque todos serão levados em cadeias ao desterro remotíssimo da terra dos
assírios. Pois, se isto, e muito mais, é o que ameaça o exército de Holofernes,
e a fama e terror de seu nome, como vós só alegais a Deus os sacrilégios do seu
santuário, as injúrias do seu tabernáculo, a desolação de seus altares? Eis
aqui porque na oração de Judite, e nestas três alegações que faz a Deus, se
representaram as três petições do Rosário. Nada teme e nada pede a Deus para
si: tudo teme e tudo pede a Deus para Deus. Assim como nós dizemos: Nomen tuum, regnum tuum, voluntas tua,
assim Judite não diz nem representa outra coisa a Deus, senão: Sancta tua, tabernaculum nominis tui, cornu
altatis tui.
E se alguém me disser que somos
humanos, e não divinos, de carne, e não espíritos, que padecemos trabalhos,
necessidades, misérias, e que, assim como pedimos a Deus para Deus, devemos
também pedir a Deus para nós, respondo que assim é verdade, e que nem por isso
devemos perder a devoção ao Rosário, nem a piedade ao Padre-nosso. Deixada a
quarta petição para melhor lugar, assim como nas três primeiras só pedimos para
Deus, assim nas três últimas só pedimos para nós. Nas três primeiras tudo para
Deus: Nomen tuum, regnum taum, voluntas
tua: nas três últimas tudo para nós: Dimitte
nobis, ne nos inducas, libera nos.
Mas, em que se vê a ordem e diferença de umas a outras petições, digníssima da
sabedoria do seu divino autor? Vê-se — como bem notaram Santo Tomás e S.
Boaventura — vê-se em que as que pertencem a nós vão em segundo lugar, e as que
pertencem a Deus no primeiro. Oh! se guardássemos esta ordem, como seriam
aceitas nossas orações! Mas muitos rezam o Rosário e o Padre-nosso às avessas.
E queira Deus que não haja alguns que todo seu emprego ponham na quarta petição
mal interpretada, e só tratem do panem
nostrum, quando não seja do alheio.
Deixados porém estes, os que
rezam o Padre-nosso às avessas são os que põem em primeiro lugar o que lhes
toca a eles, e no último o que pertence a Deus. Na mesma Betúlia e sem sair das
linhas do sítio, temos o exemplo. Já ouvimos a oração de Judite: ouçamos agora
a dos outros cercados, e, não só guiados pelo seu ditame, senão pelo dos mesmos
sacerdotes, que é o que mais me escandaliza. Cobriram os sacerdotes os altares
de luto e de cilício, e fizeram a sua oração desta maneira:
Clamaverunt ad Dominum unanimiter ne darentur in praedam infantes
eorum, et uxores eorum in divisionem, et civitates eorum in exterminium et
sancta eorum in pollutionem (Jdt 4, 10). — Vede por onde acabam e por onde
começaram.Clamaram a Deus — diz o texto — pedindo que seus filhos não ficassem
cativos, que suas mulheres não fossem divididas deles e desterradas, que suas
cidades e casas não fossem destruídas, e que as coisas sagradas não fossem
profanadas. — Pois agora? Sim, agora. O sagrado e o de Deus no último lugar;
nós e o nosso no primeiro. Oram os homens como vivem. Os interesses e
conveniências temporais diante de tudo, como se faz na vida; o de Deus, o da
consciência, o da alma lá para o fim, como se faz na morte. E esta ordem, ou
desordem, tão encontrada com a disposição das petições de Cristo, não é de quem
reza quinze vezes no Rosário a oração do Padre-nosso, nem de quem sabe o que
pede, ou como há de pedir.
CAPÍTULO VI
As três últimas petições do
Padre-nosso. Com a primeira: Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós
perdoamos aos nossos devedores — dizemos a Deus que nos imite a nós.
Comentários de S. Pedro Crisólogo e de Hugo Cardeal sobre o perdão dos pecados.
Mas vamos às três últimas
petições, também por junto, porque não sofre outra coisa a brevidade, e veremos
que ainda que em todas elas tratamos de nós, nem por isso a voz de cada uma é
menos alta e levantada: Extollens vocem.
A primeira é altíssima na confiança, a segunda altíssima na generosidade, a
terceira altíssima no juízo, e todas três altíssimas na importância. Dimitte nobis, diz a primeira — sicut et nos dimittimus debitoribus nostris:
perdoai-nos as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores. Quem
há de dizer que fala com Deus quem assim fala? Há tal modo de pedir? Há tal
resolução? Há tal confiança? Isto é pormo-nos nós a Deus por exemplo, isto é
dizermos a Deus que nos imite a nós, e que faça o que nós fazemos. Assim o nota
em próprios termos S. Gregório Niceno: Ut
Deus facta nostra imitetur: ut dicas; Ego
fecit Domine fac; solvi, solve; dimisi, dimitte. Não se poderá argüir nem
encarecer melhor. Mas não diz isto o santo e doutíssimo padre para estranhar a
confiança da petição, senão para declarar a alteza a que Deus nos levanta,
mandando-nos orar em tal forma. Quando Cristo nos manda que lhe peçamos perdão,
alegando juntamente que nós também temos perdoado, cuidava eu que era o mesmo
que fazer a petição com folha corrida. Porém, os santos, que o entendem melhor,
não querem que seja tão pouco.
S. Pedro Crisólogo, escrevendo
sobre esta mesma petição, diz que, quando perdoamos as ofensas que nos fazem
nossos inimigos, nós mesmos nos damos o perdão das ofensas que temos feito a
Deus: Homo, intellige, quia remittendo
aliis, tu tibi veniam dedisti. Com razão disse a santo: Homo intellige: Homem, entende porque
isto parece que se não pode entender. Dar perdão de pecados é jurisdição ou
regalia somente de Deus: Quis potest
dimittere peccata, nisi solus Deus? Logo, como me posso eu dar a mim mesmo
o perdão de meus pecados? Tu tibi veniam
dedisti? Funda-se esta sentença naquela promessa de Cristo: Dimittite, et dimittemini ( Lc 6, 37):
Perdoai, e sereis perdoados. — E como esta promessa é condicional, e a condição
depende de mim, quando eu cumpro a condição eu sou o que me perdôo. Deus não me
pode perdoar as suas ofensas sem que eu perdoe as minhas; e, se eu perdôo as
minhas, não pode Deus deixar de me perdoar as suas. Daqui vem que o perdão mais
depende de mim que de Deus porque Deus está obrigado à sua promessa, e eu não estou
obrigado à condição. Deus não pode faltar ao perdão, ainda que quisesse, e eu
não posso perdoar, se quiser. Tanto assim que não duvidou Hugo Cardeal de
proferir uma proposição que não sei como coube no juízo de um teólogo tão douto
e tão insigne.
Diz que ao homem que perdoa o faz
Deus seu senhor. As palavras são estas: Jubet
remittere, ut conscientiam purget, promittit veniam, ut statuat in spe, et te
facit dominum suum : Manda-te Deus perdoar para te purgar a consciência;
promete-te o perdão para te confirmar na esperança: Et te tacit dominum suum:
e te faz Deus seu senhor. — Mas como se pode entender ou defender que Deus,
neste caso, faça ao homem seu senhor? A razão ou sutileza deste pensamento é
que, como Deus se pôs a si mesmo aquela lei de perdoar a quem perdoa; o homem
fica livre, e Deus obrigado; o homem fica senhor da lei, e Deus sujeito a ela.
E quando o homem é senhor da lei, e Deus não, fica o homem por este modo senhor
do mesmo Deus: Te facit dominum suum.
Explica Hugo o seu dito, acrescentando em ·nome de Deus! Sicut decreveris de eo, et ego de te decernam: Assim como tu
julgares de quem te ofendeu, assim julgarei eu de ti. — Parece-se este
privilégio com o das chaves de S. Pedro; mas S. Pedro julgava como vigário, e o
que perdoa, como senhor, e como senhor, neste caso, não de outrem, senão do
mesmo Deus: Te facit dominum suum.
— Isto é, em uma palavra, fazê-lo
Deus senhor do seu poder, o qual se não distingue dele. E como os que rezam o
Rosário dizendo tantas vezes: Sicut et
nos dimitimus, demitem de si o senhorio que têm sobre aquela lei, e, por
este modo, sobre o mesmo Deus, vede se é alto e altíssimo o ponto a que sobe e
se levanta a voz desta petição: Extollens
vocem.
CAPÍTULO VII
Segunda petição: Não nos deixeis
cair em tentação O alvoroço e alegria da tentação figurada no cavalo generoso
do Livro de Jó. Não pedimos a Deus que nos livre das tentações como tímidos e
fracos, senão somente que nos não deixe cai nelas. Como pôde Jacó lutar tão
forte e porfiadamente com o anjo, de tal sorte que o venceu?
E se esta é altíssima pela
confiança do que diz e do que supõe pedindo, a que se segue não é menos alta,
pela generosidade do que pede e do que não pede: Et ne nos inducas in tentationem: E não nos deixeis cair em
tentação. — Notai o que pedimos e o que não pedimos. Não pedimos a Deus que nos
tire ou nos livre das tentações: pedimos que nos não deixe cair nelas. Nenhuma
versão traduziu melhor o ne nos inducas
que a nossa portuguesa. Cair dizemos, e não derrubar porque derrubar é força e
impulso alheio; o cair, fraqueza ou descuido próprio. Quem diz: Não nos deixes
cair, de si se teme mais que do inimigo, contra si pede o socorro que pede para
si. Mas, se na tentação está o perigo, não seria mais conveniente e mais seguro
pedirmos a Deus que nos livrasse de ser tentados? Não. O mal não está em ser
tentado; está em ser vencido. Se fora melhor não ser tentado, como bem discorre
Cassiano, não permitira Deus as tentações, mas quer que haja batalhas, porque
nos tem aparelhada a coroa. O soldado generoso estima a guerra, porque deseja a
vitória; e não recusa o combate, porque aspira ao triunfo. Por isso diz São
Tiago — e é a primeira coisa que diz — que não havemos de receber as tentações
com horror e tristeza, senão com alvoroço e alegria: Omne gaudium existimate cum in tentationes varias incideritis . O
cavalo generoso — como se descreve no livro de Jó, com maior elegância do que o
pudera pintar Homero — em ouvindo o sinal da guerra, fita as orelhas, quebra as
soltas, bate a terra, enche de relinchos o ar, não lhe cabem os espíritos pelas
ventas, treme todo de fogo e de coragem com o alvoroço e brios de sair à
batalha. Este é o instinto da generosidade, ainda onde falta a razão; e esta é
a razão que nós temos para pedir a Deus, não que nos não deixe tentar, mas que
nos não deixe cair.
Se Deus nos deixara tentar mais
do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as
tentações; ouvi, porém, o seguro que nos dá S. Paulo: Fidelis Deus est, qui non patietur vos tentari supre id quod potestis
(1 Cor 10, 13): Deus é fiel, o qual não consentirá jamais que sejais tentados
sobre o que podeis resistir. — E diz nomeadamente o apóstolo neste case que
Deus é fiel: Fidelis Deus est porque
o contrário seria espécie de engano, e meter-nos Deus na cilada para cairmos
nela. É verdade, como nota o mesmo S. Paulo, que a nossa luta nas tentações não
é de homem, senão de homens de carne e sangue contra o poder e astúcia dos
espíritos das trevas: Non est nobis
colluctatio adversus carnem et sanguinem: sed adversus principes et potestates
tenebrarum harum, contra spiritualia nequitiae. Mas, para que possamos sair
vencedores em uma luta tão desigual, vede como iguala Deus os partidos, e lhes
modera a eles o excesso das forças, e as mede com as nossas.
Lutou com Jacó aquele anjo, o
qual Orígenes e outros querem que fosse anjo mau; mas, pelo que toca às
tentações, tanto importa ser anjo, como demônio porque não são os mais feios os
que mais tentam. O que faz ao nosso caso é que sendo Jacó homem, e o anjo, com
quem lutava, espírito como pode ser que lhe pudesse resistir e prevalecer
contra ele? Muitos mil homens não têm parelha nas forças com um só anjo, como
se viu no exército dos assírios, em que um só anjo, em uma noite, matou mais de
cento e oitenta mil homens. Pois, se as forças de Jacó eram tão inferiores às
do anjo, como lutou com ele tão forte e porfiadamente, e o apertou de tal sorte
que finalmente o venceu? A razão é porque não permitiu Deus ao anjo que usasse
de todas as forças naturais que tinha, mas somente em tal medida e proporção,
que Jacó, com as suas, lhe pudesse resistir e prevalecer. Isto mesmo é o que
diz S. Paulo: Non patietur vos tentari
supra id quod potestis . E isto, e pelo mesmo modo, é o que Deus faz em
todas as tentações, não permitindo jamais que sejam tão fortes e poderosas que
as nossas forças, ajudadas da sua graça — com que nunca falta — as não possam
resistir e sair com vitória. E como desta parte estamos seguros, não quer Deus
que lhe peçamos nos livre das tentações como tímidos e fracos, senão somente
que nos não deixe cair nelas, e que, como valentes e generosos soldados, nos
ponhamos em campo por seu serviço, em defesa de sua lei e para glória de seu
nome. Aos homens, ou os tenta Deus para os provar, ou os tenta o demônio para
os perder, ou os tentam os outros homens para os oprimir. Se Deus não tentara a
Abraão, como seria a sua obediência tão celebrada? Se o demônio não tentara a
Jó, como seria a sua paciência tão gloriosa? Se Saul não tentara a Davi, como
seria a sua caridade tão heróica e a sua humildade tão exaltada? Por isso não
pedimos a Deus, nem Cristo quer que lhe peçamos, que nos livre de tentações,
senão somente que nos não deixe cair reconhecendo, porém, e confessando a nossa
fraqueza, para que, sobre o baixo deste fundamento, suba mais seguramente ao
alto a voz de nossa oração. Extollens
vocem.
CAPÍTULO VIII
Terceira e última petição: Mas
livrai-nos do mal. A misteriosa oração de Cristo na última Ceia em favor de
seus discípulos parece que verdadeiramente não foi ouvida. Todos os que o mundo
chama males não são males, senão o pecado. O pecado, mal de que o Eterno Padre,
como Pai, livrou unicamente a seu Filho.
Finalmente, a terceira e última
petição é altíssima no juízo. E por quê? Porque entendemos, julgamos e
declaramos que todo o mal é o pecado, e que, entre todos os que vulgarmente se
chamam males, só o pecado verdadeiramente é mal e deste mal pedimos a Deus que
nos livre quando dizemos: Sed libera nos
a malo. Oh! se os homens acabassem de se persuadir, e penetrassem
inteiramente ou se deixassem penetrar desta grande verdade! Com quão diferente
afeto fariam a Deus esta petição, e desejariam o que nela se pede! Todas as
infelicidades do mundo, donde cuidais que têm a sua primeira raiz? Todas nascem
da equivocação de dois nomes, todas nascem daquele engano e erro geral com que
anda equivocado em todas as línguas o nome do mal e o do bem. Por isso se
lamentava e bradava Isaías: Vae qui
dicitis malum bonum, et bonum malum (Is 5, 20): Ai de vós os que chamais
mal ao bem! — Não há outro bem neste mundo que seja verdadeiramente bem, senão
a graça de Deus nem outro mal que seja verdadeiramente mal, senão o pecado. Por
estes dois artigos de fé se ata o fim do Padre-nosso com o princípio da
Ave-Maria. Como começa a Ave-Maria? Ave gratia
plena, Dominus tecum. Pois, Anjo tão bem entendido como bem-aventurado, não
tendes outro título mais alto, não tendes outro nome de maior majestade com que
saudar a vossa Rainha? — Não. Porque na graça de que está cheia, se inclui todo
o bem, assim como no pecado, a que nunca esteve sujeita, foi livre de todo mal.
A graça não pode estar junta com o pecado; e como Maria, desde o instante de
sua conceição sempre foi cheia de graça, nesta graça e nesta isenção de pecado
consiste toda a soberania da sua grandeza, ainda maior que a de ser Mãe de
Deus, que eu lhe venho anunciar. Tão grande bem é a graça, tão grande mal é o
pecado!
E para que ninguém duvide que
este mal de que pedimos a Deus nos livre é todo o mal, e não há outro, ouçamos
ao mesmo Mestre, que assim nos ensinou a pedir e cerrou todas as outras
petições com esta, como a chave e mais importante de todas. Naquela misteriosa
oração que Cristo fez a seu Eterno Padre sobre a última Ceia, recomendando
muito debaixo de sua divina proteção os discípulos, de quem se apartava, a
cláusula com que rematou a recomendação foi esta: Non rogo ut tollas eos de mundo, sed ut serves eos a malo (Jo 17,
15): Não vos peço Pai meu, que os tireis do mundo, para cuja conversão são
necessários mas o que muito vos rogo, é que os guardeis e livreis do mal. Esta
foi a oração, e parece verdadeiramente que não foi ouvida. Que pobreza, que
fomes, que sedes; que perseguições, que cárceres, que desterros; que afrontas,
que desprezos, que ignomínias; que calúnias, que acusações, que injustiças; que
açoites, que tormentos, que martírios, não padeceram aqueles mesmos apóstolos
em todas as partes do mundo, e em todos os dias e horas da vida, até finalmente
a perderem cruel, e afrontosamente, uns crucificados, como Pedro, outros
aspados, com André, outros esfolados, como Bartolomeu, e todos, sem exceção de
um só, tão bárbara e desumanamente atormentados, quanta era a impiedade e ódio
infernal dos tiranos? Pois, se todos os trabalho, misérias, desgraças,
aflições, penas, desonras enfim, se todos os males do mundo se uniram e
conjuraram contra estes homens, e se empregaram e apuraram neles, sem que Deus
o impedisse nem os livrasse, deixando-os padecer e morrer como se cumpriu —
pois não podia deixar de ser ouvida — a verdade da oração de Cristo: Ut serves
eos a malo? Eles padeceram todos os males, e o Padre livrou-os de todo mal?
Sim. Porque confirmando-os em graça, livrou-os do pecado, e todos os que o
mundo chama males, não são males: só o pecado é mal: Non dicit ut serves eos a tribulationibus, ab odiis, a persecutionibus,
sed a malo, hoc est a pecato, quod simpliciter est malum — diz o Cardeal
Caetano e não era necessário que nem ele nem outro algum o dissesse. Este é o
mal de que pedimos a Deus nos livre, e esta a coroa em que Cristo rematou a sua
oração, para que dissesse o fim com o princípio. No princípio disse: Pater noster; no fim diz: Sed libera nos a malo; e este foi
unicamente o mal de que o Eterno Padre, como Pai, livrou unicamente a seu
Filho. Não o livrou das pobrezas, nem dos trabalhos, nem das perseguições, nem
dos desterros, nem dos ódios, nem das injúrias, nem dos açoites, nem da morte,
e morte de cruz: o de que só o livrou foi o pecado, dando à humanidade de
Cristo a união hipostática, com que a fez impecável. E como o altíssimo juízo
desta última petição mete debaixo dos pés todo aquele mundo de horrores a que o
mesmo mundo chama males, e dizendo: Libera
nos a malo só reconhece por mal o pecado, por ser ofensa de Deus nem na
terra, nem no céu, nem dentro do mesmo Deus pode haver conceito mais levantado
que o deste juízo, nem voz mais alta que a desta petição: Extollens vocem.
CAPÍTULO IX
A quarta petição: O pão nosso
super-substancial nos dai hoje. Por que é sobre-substancial e nosso? Por que
razão o pôs Cristo na quarta petição, quando parece que lhe era devido o
primeiro lugar? A semelhança com o sol no quarto céu, imagem deste mistério. A
base do candelabro do Templo, figura do SS. Sacramento, e as sete petições do
Padre Nosso. Os lavores de que era ornado e as contas do Rosário.
Voltando agora atrás, e pondo-nos
na quarta petição, que para este lugar reservamos, o que ela diz é o que se não
podia entender quando se disse. O que se entendeu então, foi que o Senhor
falava só do pão ordinário e usual, com que se sustenta o corpo; mas depois que
o tomou em suas sagradas mãos, e o consagrou, então se manifestou que falava
principalmente de seu próprio corpo, o qual nos deu debaixo das espécies de
pão, para sustento da alma. Por isso S. Lucas lhe chamou pão cotidiano com o
nome comum, e S. Mateus, com vocábulo novo e próprio daquele mistério, pão
super-substancial: Panem nostrum supersubstantialem
da nobis. Chama-lhe sobre-substancial e nosso, sendo que não cai nem diz
bem o nome de nosso na mesma petição em que o pedimos. Mas por essa mesma razão
é nosso, porque é sobre-substancial. É pão sobre-substancial porque os
acidentes que vemos são de pão; mas a substância não é de pão, senão do corpo
de Cristo, que é substância sobre toda a substância. E porque esse pão é
Cristo, por essa mesma razão é pão nosso porque o mesmo Cristo já era nosso
antes que fosse pão. Foi pão depois do Sacramento, e já dantes era nosso desde
o nascimento: Parvulus natus est nobis,
et filius datus est nobis.
Mas este mesmo pão sobre-substancial
e nosso que pedimos, por que razão o pôs Cristo na quarta petição, ou com que
proporção e mistério lhe deu este lugar, quando parece que por todos os títulos
lhe era devido o primeiro? Hugo Cardeal, nesta observação mais que nunca
eminentíssimo, notou que entre as sete petições do Padre-nosso a quarta é a do
meio, e diz com singular pensamento, que sinalou o Senhor este lugar àquele
sagrado pão, para que, posto no meio como na raia e horizonte de dois
hemisférios, os alumiasse a ambos, e confinando por este modo, assim com as
petições que vão dirigidas ao céu e a Deus, como com as que pertencem a esta
vida e a nós, em umas e outras nos confortasse igualmente com sua divina
virtude: Media petitio, scilicet panem
nostrum da nobis, est communis, et quasi confinium utrarumque confortans et
dirigens transeuntem de vita temporali ad aeternam. Nas três primeiras
petições só tratamos do céu e de Deus, pedindo a santificação de seu nome, a
dilatação de seu reino, a execução de sua vontade; nas três segundas, ou
últimas, tratamos desta vida e de nós, pedindo que nos perdoe nossas dívidas,
que nos não deixe cair em tentações, e que nos livre do pecado; e para tudo
isto nos fortalece, posto em meio, o Diviníssimo Sacramento: Hic panis datur de caelo, et comeditur in
terra: Este pão — continua o mesmo autor — dá-se do céu, e come-se na
terra. — Enquanto se dá do céu, eleva-nos a Deus; enquanto se come na terra,
conforta-nos a nós: a Deus, para que sobretudo procuremos sua glória; a nós,
para que contra tudo evitemos suas ofensas. E este é o único e duplicado fim
por que pedimos Santíssimo Sacramento no quarto lugar, e no meio de umas
petições e das outras.
Vejamos com os olhos a admirável
proporção de ser este lugar entre sete o quarto. Criou Deus o sol, e não o pos
no primeiro, nem no segundo ou terceiro, senão no quarto céu. Pois, o sol, rei
dos planetas, pai e fonte de toda a luz, no quarto lugar? Sim, diz
excelentemente Filo, como quem trouxe a filosofia no nome: Cum planetarum quisque plus splendoris habeant lucidissimos ad terram
usque mittunt radios, sed praecipue sol eorum medius. Nec male conjicere mihi
videntur, qui soli medium locum tribuunt, tres supra eum, totaidem infra
locando: Os planetas, como todos sabem são sete; e por isso — diz Filo —
pos o autor da natureza o sol no quarto lugar e no quarto céu, para que,
ficando-lhe três planetas acima, e três abaixo, e ele no meio, dali os
alumiasse melhor a todos, e lhes comunicasse igualmente os efeitos e
influências da sua luz. — Nem mais nem menos Cristo nas sete petições do
Padre-nosso. Pôs no quarto lugar, e no meio delas, a petição do Santíssimo
Sacramento: Panem nostrum
super-substancial em da nobis — para
que dali alumiasse igualmente a todas e lhes influísse a virtude de sua luz, e
tanto às três de cima, como às três de baixo: Tres supra eum, et totidem infra. As três petições de cima são as
primeiras que sobem a Deus: Sanctificetur
nomen tuum; adveniat regnum tuum;
fiat voluntas tua; as três de baixo são as últimas que descem a nós: Dimitte nobis debita nostra ne nos inducas
in tentationem; libera nos a malo; e assim como para as primeiras nos eleva
como pão sobre-substancial, assim para as últimas nos conforta como pão nosso.
Ainda tem mais semelhança com o sol no quarto céu. Porque do mesmo modo que o
sol alumia uns e outros planetas, não só de dia, senão de noite, nem só quando
está descoberto a nós, senão quando eclipsado e coberto de nuvens, assim
Cristo, no Divino Sacramento eclipsado e encoberto debaixo da nuvem dos
acidentes, e na noite deste mundo e escuridade da fé, tanto nos fortalece os
afetos no que pedimos a Deus para Deus, como nos comunica e estabelece os
efeitos no que pedimos a Deus para nós.
Esta foi a primeira imagem deste
mistério que Deus pintou no céu, que é o seu templo, e esta foi também a
segunda, que colocou no desenho da sua Igreja, que é o nosso. No Templo de
Salomão, e antes dele, no Tabernáculo de Moisés, mandou fabricar Deus aquele
famoso candelabro, que defronte dos Pães da Proposição alumiava o Sancta Sanctorum. A matéria era de ouro
puríssimo, a forma como de uma árvore artificial, de cujo tronco, em igual
proporção, saíam de uma e outra parte, três ramos meio arqueados, no remate dos
quais, como também no do tronco, que era direito, ardiam sete lumes. Este candelabro,
pois, diz S. Próspero que significava o Santíssimo Sacramento, e o mesmo
sentido e argumento seguiu e entendeu modernamente, com suma erudição, Teófilo
Rainaldo. Nota, porém, este diligentíssimo autor que, sendo miudíssima a
Escritura em descrever todo o artifício e partes do candelabro, e ainda os
instrumentos exteriores que a ele pertenciam, só da base não faz menção: Praeteriit Scriptura basim candelabri, ita
ut, tametsi adeo solicite reliquas candelabri partes quasi dissimilares
expresserit, basis tamen nusquam meminerit. — Pois, se esta famosa obra da
arquitetura divina, traçada e mandada lavrar pelo mesmo Deus, se descreve parte
por parte tão exata e acuradamente, da base por que se não faz menção, sendo
muitos os lugares da História Sagrada, e não menos de vinte, os que falam neste
candelabro? Tornielo, Saliano, Cornélio, e os demais supõem que o candelabro
tinha base, cansando-se muito em adivinhar a figura de que era formada. E eu
não posso deixar de estranhar, e ainda de me doer, de que Teófilo faça o mesmo,
privando-se de uma grande prova, e da mais elegante confirmação do seu
argumento.
Digo, pois, que a Escritura não
faz menção da base do candelabro porque o candelabro não tinha base; e digo que
a não tinha, assim como Melquisedec não teve pai nem mãe. De Melquisedec diz S.
Paulo, que não teve pai nem mãe, não porque os não tivesse, mas porque a
Escritura não faz menção deles (Hebr.7, 3). E por que não faz a Escritura
menção do pai e mãe de Melquisedec? Porque Melquisedec era figura de Cristo, o
qual no céu não tem mãe, e na terra não tem pai. Da mesma maneira no nosso
caso. O candelabro tinha base, mas não faz menção dela a Escritura, como se a
não tivera. Por quê? Porque o candelabro era figura do Sacramento. E como no
Sacramento, estarem os acidentes sem sujeito é a mesma maravilha que
sustentar-se o candelabro sem base, por isso cala a Escritura e não faz menção
da base do candelabro, como se a não tivera, para que a figura se parecesse com
o figurado.
Provada, pois, esta excelente
figura, e a grande semelhança daquele soberano mistério do altar com o
candelabro do Templo, quem não vê nos sete lumes dele o que o divino Sacramento
obra nas sete petições do Padre-nosso? Assim como no candelabro os três lumes
de uma parte e os três lumes da outra todos saíam do mesmo tronco onde estava o
lume do meio, assim as três primeiras petições do Padre-nosso, para serem
aceitas a Deus, e as três últimas, para que sejam proveitosas a nós, toda a sua
luz e calor, todo o seu valor e eficácia recebem do pão sobre-substancial que
pedimos no meio delas. As primeiras, em que pedimos para Deus, nascem daquele
sacrossanto mistério, enquanto sacrifício, cujo fim é o culto divino; e as
últimas, em que pedimos para nós, nascem do mesmo mistério, enquanto sacramento,
cujo fim é o nosso remédio.
E para que não faltasse à mesma
figura a mais particular e não imaginada propriedade, assim o tronco como os
ramos do candelabro, em que se sustentavam os lumes, qual vos parece que seria
o lavor de que estavam ornados? Era um lavor torneado em contas e esculpido em
rosas: Sphaerulae per singulos, et lilia.
Em lugar de Lilia, Vilhalpando e Lipomano lêem rosas, e em lugar de sphaerulae vertem outros, com maior
expressão, globuli, que é o próprio
nome das contas por onde rezamos. Para que na mesma figura do candelabro nem as
contas nem as rosas faltassem à primeira e principal oração do Rosário, como
nem o número misterioso de suas petições à proporção e consonância altíssima de
suas vozes: Extollens vocem.
CAPÍTULO X
Terceira parte do discurso: alta
e altíssima é a oração vocal do Rosário pela alteza da intercessão de que nos
valemos. O tribunal diante do qual intercede a Rainha dos Anjos. Os títulos em
que se funda a eficácia da intercessão que pedimos: Santa, Maria, Mãe de Deus.
A força da mediação de que nos valemos. Se quando invocamos a Deus dizemos Pater noster, por que, quando invocamos
a Senhora, não dizemos também Mater
nostra? A intercessão de Maria e a bênção de Jacó aos filhos de José. A
coroa de Salomão e a intercessão de sua mãe.
Resta a terceira e última parte
do nosso discurso, a que sinto muito chegar tão tarde; mas a minha brevidade e
a vossa devoção farão tolerável este defeito. Prometi provar neste último ponto
quão alta e altíssima é a oração vocal do Rosário pela alteza da intercessão de
que nos valemos: e esta valia e intercessão é a da Virgem Santíssima, Senhora
nossa, cujo poderosíssimo patrocínio tantas vezes imploramos quantas são as
Ave-Marias no Rosário, repetindo no mesmo dia cento e cinqüenta vezes: Sancta Maria Mater Dei, ora pro nobis
peccatoribus. O tribunal, diante do qual intercede a Rainha dos Anjos, é o
supremo consistório da mesma majestade divina a quem presentamos nossas
petições e a quem, na primeira palavra do Rosário, invocamos com nome de Pai,
como próprio da piedade e misericórdia, em que, como pecadores, temos posta
toda confiança. Os títulos, finalmente, em que se funda a eficácia da
intercessão que pedimos, como se vê da mesma súplica, são três: Santa Maria Mãe
de Deus roga, por nós: que rogue por nós como santa, que rogue por nós como
Maria, que rogue por nós como Mãe de Deus. Todos estes títulos declarou o Anjo
na sua embaixada, com a mesma distinção e pela mesma ordem: primeiro o de
Santa: Gratia plena; depois o de Maria: Ne
timeas Maria; ultimamente o de Mãe de Deus: Paries Filium et Filias Altissimi vocabitur. E nas mesmas três
palavras, se bem notardes, se inclui inteiramente toda a oração da Ave-Maria,
resumida cada cláusula a uma só palavra, porque ao Ave Maria responde Maria, ao
gratia plena responde Santa, e ao benedicta tu in mulieribus, et
benedictus fructus ventris tui, responde Mãe de Deus.
Com razão dizemos, logo, que a
oração vocal do Rosário, também por esta intercessão, de que nos valemos, é
alta e altíssima: Extollens vocem —
por que, sendo altíssimo na Senhora o título de Santa, altíssimo o de Maria, e
altíssimo o de Mãe de Deus, todos juntos, e uns sobre os outros, que altura
farão? Agora tomara eu tempo para os combinar e comparar entre si, e excitar
sobre eles outras tantas questões: Se é mais forte para interceder o título de
santa, ou o de Maria? Se é mais suave para obrigar, o nome de Maria, ou o de
Mãe de Deus? Se é mais poderoso para conseguir, o respeito de Mãe de Deus ou o
de santa? Mas seja resolução o que pudera ser disputa. E digo que cada título,
em seu gênero, compreende em grau altíssimo as perfeições de todos. O de santa,
porque a santidade de Maria, depois da santidade de Deus, é a maior santidade;
o de Maria, porque o nome de Maria, depois do nome de Deus, é o maior nome; o
de Mãe de Deus, porque a dignidade de Maria, depois da dignidade de Deus, é a
maior dignidade. Intercedendo, pois, por nós, posto que pecadores, a maior
santidade, o maior nome e a maior dignidade, como poderá resistir a divina
justiça, nem negar-se sua misericórdia a uma tão forte, tão suave e tão
poderosa intercessão?
A intercessão, como o significa o
mesmo nome, é um meio entre dois extremos, e, para ser poderosa e eficaz, há de
tocar a ambos: àquele com quem intercede, que neste caso é Deus, e àqueles por
quem intercede, que são os pecadores. E a Senhora, postada entre Deus e os
pecadores, quão chegada é a um e outro extremo? É tão chegada a Deus, com quem
intercede, que só lhe falta o ser Deus; e tão chegada aos pecadores, por quem
intercede, que só lhe falta o pecado.
S. Mateus, tecendo a genealogia
da Virgem Maria, fê-lo com tal artifício, que pôs a Senhora entre Deus e os
pecadores fazendo-a filha de pecadores e Mãe de Deus, como verdadeiramente é. É
filha de pecadores por natureza, e Mãe de Deus por graça; mas por tal modo de
graça, que a mesma natureza que recebeu dos pecadores, para ser sua filha, foi
a segunda natureza que deu a Deus, para ser sua Mãe. E sendo intercessora e
medianeira entre Deus, de quem é Mãe, e entre os pecadores, de quem é filha,
vede que graça se poderá negar a uma intercessão tão estreita por natureza?
Essa foi a ventura de um ladrão, e a desgraça do outro no Calvário. Cristo
estava no meio de ambos; mas em meio da cruz de Cristo e da cruz do bom ladrão
estava a Senhora; em meio da mesma cruz de Cristo e da cruz do mau ladrão, não
estava. E onde entre o pecador e Deus mediou a Mãe de Deus, salvou-se o
pecador; onde não mediou, não se salvou. E esta é a força da mediação de que
nos valemos, esta a intercessão altíssima que pedimos quando dizemos: Sancta Maria Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus.
Não posso, porém, deixar de
reparar muito que neste caso invoquemos a intercessão e patrocínio da Senhora
com nome de Mãe de Deus, e não de Mãe nossa. Assim como já acatamos o fim do
Padre-nosso com o princípio da Ave-Maria, atemos agora o fim da Ave-Maria com o
princípio do Padre-nosso. Se, quando invocamos a Deus, dizemos Pater noster, quando invocamos a
Senhora, por que não dizemos também Mater
nostra, senão Mater Dei? Temos
ousadia, como dissemos, para chamar a Deus nosso Pai, e não temos confiança
para chamar à Senhora nossa Mãe? Sim, temos. Não é falta de confiança: é fineza
de saber alegar e pedir. Muito mais adiantamos e encarecemos a intercessão que
pedimos invocando a Senhora como Mãe de Deus que como Mãe nossa. Porque se
intercedera por nós como Mãe nossa, empenhara-se por nós como por filhos seus;
mas, intercedendo por nós como Mãe de Deus, empenha-se por nós como por filhos
de seu Filho, que é muito mais. Quando nós dizemos Pater noster, quem é nosso Pai, e de quem somos filhos? Somos
filhos do mesmo Deus, de quem a Senhora é Mãe; logo, muito maior empenho é o do
seu amor intercedendo por nós, enquanto filhos de seu Filho, que enquanto filhos
seus.
Quando Jacó lançou a bênção a
todos seus filhos, aplicou a bênção de cada um à pessoa do mesmo filho: a de
Rúben à pessoa de Rúben, a de Simeão à pessoa de Simeão, a de Levi à pessoa de
Levi, e assim nos demais; mas quando chegou a José, não lhe aplicou a bênção a
ele, senão aos filhos do mesmo José, Manassés e Efraim. Pois, se aos outros os
abendiçoou em si mesmos, em José por que mudou de estilo, e em vez de lhe
aplicar e dar a bênção a ele, a dá e aplica a seus filhos? Porque a José amava
mais que a todos os outros; e maior empenho e demonstração foi do seu amor o
dar a bênção a Manassés e Efraim, que eram filhos de seu filho, do que se a
dera ao mesmo José, que era filho seu. Dando a bênção a José satisfazia só ao
seu amor; mas dando-a aos filhos de José satisfazia ao seu amor e mais ao amor
do mesmo José porque não só mostrava amar muito ao filho, senão aos filhos do
filho. No nosso caso ainda é maior a razão, e infinitamente maior. A Senhora,
ainda que como Mãe nossa nos ama muito, como Mãe de Deus ama infinitamente
muito mais a Deus: logo, muito mais segura fica a sua intercessão, e muito mais
poderosa e eficaz intercedendo por nós como filhos de seu Filho que como filhos
seus, porque não só intercede por nós com o grande amor com que nos ama a nós,
senão com todo o amor com que ama a Deus. Sendo isto verdadeiramente assim, e
da parte da mesma Mãe de Deus e Mãe nossa, com maior certeza e afeto do que se
pode encarecer nem imaginar, o que só resta é que todos nos valhamos do
altíssimo e poderosíssimo patrocínio de tão soberana intercessora, com aquela
confiança que nos assegura a grandeza de sua piedade, e com aquela eficácia e
instância que requer a grandeza da nossa pretensão. O que em suma pretendemos,
em tantas e tão várias petições, é o reino do céu: Adveniat regnum tuum. De conseguir ou não conseguir esta pretensão
não é menos o que depende que a felicidade ou infelicidade eterna. Vede se é
grande a importância, e qual deve ser o nosso cuidado. E posto que o supremo
Senhor, diante de quem requeremos, seja Pai, e invocado como Pai: Pater noster, qui es in coelis — se nos
faltar a intercessão da Mãe muito podemos temer que nos não valha, nem baste o
nome de filhos. Dois filhos tinha Davi, pretensores ambos ao mesmo reino,
Adonias e Salomão; e qual levou a coroa? Adonias, que tinha de sua parte a
prerrogativa de primogênito, perdeu-a e Salomão foi o herdeiro do reino, não
com outra razão de preferência mais que a intercessão de sua mãe: Egredimini, filiae Sion, et videte regem
Salomonem in diademate quo coronavit eum mater sua. Assim o deixou escrito,
para eterna memória do caso, o mesmo Salomão: — Saí, filhas de Jerusalém, e
vede a el-rei Salomão triunfante com a coroa com que o coroou sua mãe. —
Leia-se a história dos Reis de Israel, e achar-se-á que o mesmo Davi, pai de
Salomão, foi o que o nomeou por rei e o mandou coroar. Pois, se consta da
Escritura que o pai coroou a Salomão, como diz o mesmo Salomão que o coroou a
mãe? Porque, se não fora a intercessão da mãe, não havia ele de herdar o reino.
E entendeu Salomão, como tão sábio, que mais devia a coroa à intercessão da
mãe, que à graça e nomeação do pai. E que foi tudo isto senão uma
representação, no teatro da terra, do que passa e nos há de acontecer no reino
do céu? É verdade, como crê e confessa a nossa fé, que o reino do céu, que
pedimos, não se alcança senão por graça de Deus, que é o Pai; mas quer o mesmo
Deus que entendamos que só por intercessão de sua Mãe se alcança essa graça
nesta vida e a coroa da glória na outra.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Maria Rosa Mística - I"
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