A PESTE
A João Antonio Brandão
E de súbito, um indizível
pavor prega-me ao banco. É um dia brumosamente invernal. O azul do céu parece
tecido de filamentos de brumas. O sol como que desabrocha dentre as brumas. O
ar, um pouco úmido e um pouco cortante, congela as mãos, tonifica a vegetação,
e o mar, que se vê à distância num recanto de lodo, tem reflexos espelhentos de
grandes escaras de chagas, de óleo escorrido de feridas à superfície quase
imóvel. O cheiro de desinfecção e ácido fênico, o movimento sinistro das carrocinhas
e dos automóveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela sujeira
requeimada e manchada das calçadas, o ar sem pinga de sangue ou supremamente
indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de choro que
os meus olhos vão vendo, põe-me no peito um apressado bater de coração e na
garganta como um laço de medo. A bexiga147! a bexiga! É verdade que há
uma epidemia... E eu vou para lá, eu vou para o isolamento, eu!
Um mês antes ria dessa
epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico,
roem para todo sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E
Francisco, o meu querido Francisco a que eu amava como a melhor coisa do mundo,
pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informações. A média de casos fatais
é de trinta por dia. Ela vem aí, a vermelha148, dizia. E já organizara um
regimen, tomara quinino, tinha o quarto cheio de antisépticos, os bolsos com pedras
das farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe
dizia
— Mas criatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas
ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de
preocupações.
De manhã, porém, nós líamos
juntos, ao almoço, os jornais. Para que mentir? Havia, havia sim! A sinistra
rebentava em purulências toda a cidade. Um dia em que passava por uma igreja,
Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a curiosidade de saber
por quem tão tristes badalavam e perguntou a um velho.
— É promessa, meu senhor, é
para que Santo Antônio não mate a todos nós de bexiga.
Francisco ficou como
desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.
— Ah! filho, falta-me o
apetite. Estamos perdidos. É impossível lutar. Ela está aí.
— Acabas doido.
— Antes! fez no orgulho da
sua beleza.
Há uma semana, indo por uma
rua de subúrbio encontrou com gritos e imprecações um bando de gente que
arrastava ao sol um caixão. Era uma pobre família levando à igreja o cadáver de
uma criança em holocausto, para que Deus tivesse piedade e misericórdia. A
impressão prostrou-o. Chegou à casa ainda mais assustado.
— Sabes! Estamos perdidos.
A polícia já deixa arrastarem os variolosos pela rua. Dentro em pouco só lepra,
a lepra de dentro encherá as ruas. Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta.
Quando chegará a nossa vez?
— Mas vai embora, homem,
sobe à montanha, afasta-te...
E comecei eu também a
indagar, a querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de
bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias
espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente,
apodrecendo em horas! Palavra, não era para brincadeiras. O Francisco abalara
para o Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abraço, e de repente
naquela manhã, hoje, sabia por urna nota que ele estava no S. Sebastião, com
bexiga também, talvez morto! Deu-me um grande ímpeto! Covarde! Fôra o medo. E
agora? Era preciso vê-lo, não era possível deixa-lo morrer sem um amigo ao
lado. Nunca tive medo de moléstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade
estava tão alegre, tão movimentada, tão descuidosa. Tomei o tramway149 quase
tranquilo. Mas ali, tudo indica a morte, a angústia, o horror, ali é
impossível, e eu sentia um frio,
um frio...
— Estamos no ponto
terminal; não salta? diz-me o condutor, virando os bancos. Faço um esforço, salto.
E vou. Vou devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção
violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage150 inglês
aviltado por usinas de porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como
deve morrer gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua
atordoado, com um zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações,
de lodo que se bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morta. O
chão está todo sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá,
que para lá vão. Quase não ha rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama
de algodão nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param — como elas
param ! — é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pús,
seguindo para a cova... Espero que não haja nenhuma carroça à porta,
precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase a correr, paro à
porta de uma sala que parece escritório.
— O diretor?
— É alguma coisa de
urgente? indaga um jovem.
— É. É e não é.
— Vou preveni-lo. Sente-se.
O senhor está pálido.
Caio numa cadeira. Sinto as
mãos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh! muito medo... E aquele trecho
de secretaria não é para acalmar o destrambelhamento dos meus nervos. Tudo é
branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes, nos móveis sem uma
poeira. Os empregados porém movem-se com a precipitação triste a que a morte
obriga os que ficam. Retintins de telefone repicam seguidamente nos quatro
cantos. Os diálogos cruzam-se, diálogos em que as vozes falam para dores
— Mais um doente?
— Ah! sim, ciente.
-— Qual? Não há mais lugar.
O de nome José Bernardino? Vou ver.
E mais adiante:
— Olhe, 425? Morreu ontem à noite. Se já
seguiu? Já.
Enquanto essas notícias são
dadas à boca dos fones, há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas
dos seus doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em
que o mistério da morte, lá fora, entre as árvores, incute um apavorado
respeito e uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera
da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro
dos que lhe deram o ser. Ela não respeita idade, passa a foice purulenta em
tudo, está lá reinando, fora, no jardim, entre as árvores, morro acima. Os
funcionários têm uma delicadeza fria.
— Que deseja, minha
senhora?
— Saber do meu filho. É
390.
— Há quantos dias?
— Há quatro. Ainda elas não
tinham saído. Foi o médico que disse. Ai! o meu pequeno!
— Está decerto no pavilhão
de observação. Vou mandar ver.
— Meu senhor, a minha
mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.
— Espere, homem. Nada de barulho.
Os retintins telefônicos
continuam. Algumas faces não dizem nada. Estão lá sentadas, esperando, esperando,
esperando. E há marcados, marcados do terrível mal, que vão sair, não morreram,
estarão dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida, roída, desfeita para
todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficará assim? Assim, horrível, horrível... É
preciso vê-lo! É preciso!
O rapaz volta, faz-me um
gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro, com a sua face inteligente
vincada de tristeza.
— Então por cá? não teve
medo? Está com a mão fria. Ah! meu amigo, a apostar que não acreditava na
devastação do mal? Pois é horrível, é inaudito. Tenho presentemente no hospital
setecentos e vinte doentes desde a varíola hemorrágica. que mata em horas, até a
bexiga branca que nem sempre mata. Já não há lugares. Nunca S. Sebastião esteve
assim. Mandei construir à pressa mais dois pavilhões. Estou arrasado de
trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado, sempre se tem
coração para sentir a dolorosa atmosfera de desgraça... Mas que deseja? diga.
— Eu desejava tomar uma
informação. Está aqui no hospital um rapaz do norte, Francisco Nogueira,
estudante...
— Francisco? Há tanta gente
que entra e tão pouca que sai... Em que dia entrou?
— Creio que anteontem. Vou
mandar ver.
Tocou um tímpano. Apareceu
um funcionário. Falaram ambos. O funcionário saiu, e desde que saiu, um tremor
apoderou-se do meu corpo. Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de
ouro e de rosas já se teria transformado numa chaga purulenta? E se estivesse
morto? Uma criança tão cheia de esperanças, tão entusiástica, tão pura, sem os
pais aqui, sem ninguém a não ser eu que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam
dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de encobrir tamanha emoção forçava-me a
fingir um sorriso, a dizer mundanamente coisas frívolas ao homem bom cujos
olhos tinham tanta piedade.
— É o diabo. A epidemia tem
impedido vários prazeres da season. As grandes estrelas mundiais, os
teatros.
— Pouca gente.
— Menos do que se devia
esperar. Não frequenta?
— Não tenho tempo.
— Ninguém dirá entretanto
que a varíola...
— Nas grandes cidades as
pestes dão uma impressão muito menos dolorosa do que outrora.
— Na Idade Média, não, doutor.
Mas um nó subitâneo
estrangula-me a frase. O funcionário voltara, dava informações baixo ao diretor.
O médico pôs-se de pé e diante de mim:
— Está cá. Entrou
anteontem. Está vivo, O médico da enfermaria diz que há esperanças.
— Quero vê-lo, doutor.
Houve uma pausa grave.
— É vacinado?
— Sou.
— Já viu um varioloso?
— Não.
— Gosta desse rapaz?
— É meu amigo.
O diretor pensou. Depois:
— É melhor não vê-lo.
Aceite o meu conselho. A ele nada falta. O senhor parece tão comovido. Tenha
esperança, vá descansar. As emoções fazem mal neste período...
—- Quero vê-lo, doutor,
quero. É um grande obséquio que lhe fico a dever.
O diretor ainda hesitou um
instante, mas diante da minha resolução que se fazia súplica, fez um gesto e eu
acompanhei o funcionário, passei a secretaria, entrei no jardim, comecei a
subir para o morro, onde entre as árvores erguiam-se os grandes pavilhões, com
as redes das janelas pintadas de vermelho. Era ali, naqueles enormes galpões,
com janelas forradas de tela rubra que a varíola punha putrefações e gangrenas
em corpos dias antes bons. O homem ia depressa, e eu arquejava atrás, sem forças,
com as têmporas batendo. Meu Deus! Que iria ver? Que se daria? De repente,
parou, subiu uma escada. Subi também. Abriu uma porta de tela, entrou. Entrei
com ele. Abriu outra, passou. Passei com ele. Encaminhou-se para um
compartimento. Segui-o. Onde estava eu? Sei lá! Não sabia! Não sabia! Vi-me diante de um leito, onde um cobertor
tapava, por completo, um pequeno volume. Para diante havia outros leitos
cobertos de vermelhos, outros muitos, cobrindo a negregada. Certo cavalheiro indagava:
— Quer ver então?
— Sim, senhor.
— Não é grave. Esta escapa.
Mas tenha coragem!
Depois, com infinito
cuidado, pegou das pontas do cobertor e foi levantando aos poucos. Fechei os
olhos, abri-os, tornei a fecha-los.
— Não há engano?
— A papeleta não erra. É
ele mesmo.
Eu tinha diante de mim um
monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para
rebentar em sânie151. Os olhos desapareciam meio afundados em lama amarela,
já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se
aquela face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas152 e em apostemas153 a epiderme. Quis recuar, quis aproxima-me. Só consegui
dizer para o horror:
— Francisco, Francisco, então
como vais?
Os lábios moveram-se, e uma
voz, outra voz, uma voz que era outra, passou vagarosa:
— Ah! és tu?
Enquanto o corpo não fazia
um gesto. Era ele, ele, sim, porque sobre a travesseira, só uma coisa não
desaparecera dele e da podridão parecia tomar um redobro de brilho: a sua
enorme cabeleira negra, com reflexos de ouro azul-tinta...
Então veio-me um louco
desejo de chorar, um desejo desvairado. Fiz um vago gesto. O funcionário
abriu-me a porta e eu saí tropeçando, desci o morro a correr quase, entre os
empregados num vaivém constante e as macas que subiam com as podridões. Um
delírio tomava-me. As plantas, as flores dos canteiros, o barro da encosta, as
grades de ferro do portão, os homens, as roupas, a rua suja, o recanto do mar
escamoso, as árvores, pareciam atacados daquele horror de sangue maculado e de gangrena.
Parei. Encarei o sol, e o próprio sol, na apoteose de luz, pareceu-me
gangrenado e pútrido. Deus do céu! Eu tinha febre. Corri mais, corri daquela
casa, daquele laboratório de horror em que o africano deus selvagem da bexiga,
Obaluaiê154,
escancarava a face deglutindo pus. E atirei-me ao bonde, tremendo, tremendo,
tremendo...
Há epidemia, oh! sim, há
epidemia! E eu tenho medo, meu amigo, um grande, um desastrado pavor...
E Luciano Torres, após a
narrativa, caiu-me nos braços a soluçar. Era de noite e foi há dois dias. Ontem
vieram dizer-me que Luciano Torres, meu amigo e colega, fora conduzido em
automóvel da Assistência do seu elegante apartamento das Laranjeiras para o
posto de observação. Está com varíola.
Notas:
Notas:
147 - Varíola. Essa doença
era endêmica no Rio de Janeiro até o início do século XX, matando milhares de pessoas anualmente.
149 - Bonde. Em inglês no
texto.
150 - Casa de campo ou
veraneio. Chalé. Em inglês no texto.
151 - Pus.
152 - Bolha dágua.
153 - Abcesso.
154 - Obaluaiê ou Babaluaiê,
orixá da varíola no culto nos negros iorubás. O mesmo que Omolú ou Xapanã.
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Nota:
João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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