NA GOELA DO LEÃO
I
Quando o leão de púrpura dos
Silvas perder a sua língua negra acabará a família a que vais pertencer
profetizara o Roque a uma das suas netas, na véspera do casamento, uma noite de
luar coado a custo pelas abobadas do espesso arvoredo numa das avenidas da
quinta de Belas. O Roque nunca mentira. Nas suas aparições pelo parque ensinava
o paradeiro de tesouros escondidos, anunciava o advento de desejados herdeiros,
denunciava os culpados que comprometiam com roubos os criados fieis, e diz-se
até que consolara alguns corações com indiscretas confidencias. Se era alma
penada (e era decerto, pois assim o afirmam autoridades de que não é licito
duvidar) a ninguém metia medo. Sobrinhas e netas chamavam por ele, sem o menor
arrepio de terror, quando ouviam a sua voz autorizada, sem estremecerem quando
avistavam a barba branca e comprida do velho ministro do sr. D. Pedro II.
Aquela profecia fora para a
família dos Silvas, na qual a neta de Roque Monteiro casara, como um treno
bíblico credor de toda a fé. E perpetuara-se na tradição.
Ora naquela manhã o leão rompente
em campo de prata do escudo esquartelado, fecho do arco em madeira entalhada da
capela-mor de um antigo palácio do bairro de S. Vicente, perdera a língua negra
que o irreverente caruncho amputara. Foi a velha Brígida quem tal descobriu.
Quando fazia as suas orações,
depois de ter baixado sobre o lajedo os olhos humilhados perante a divindade,
ia levantá-los ao céu na invocação da Ave Maria; a sua vista porém parou
aterrada na contemplação do escudo truncado, e a Ave Maria gelou-se-lhe nos
lábios. Realizara-se a profecia do Roque. Ou o sr. D. Carlos o único
representante daquela casa ia morrer, ou se preparava a ultima derrocada tão
anunciada pelas sucessivas catástrofes dos últimos anos.
Levantou-se inquieta e assustada
e tão preocupada ia que, ao passar pela grande casa de espera de ladrilho
esburacado, azulejada até á altura de um homem, e de cujo teto, escurecido pelo
tempo, pendia um merencório lampião, pegou inconscientemente num maço de cartas
do correio que se achava sobre um dos bancos, única mobília do vasto casarão, e
com um andar apressado, quanto lho permitiam os anos e o reumatismo, dirigiu-se
ao quarto de Carlos.
Este passeava fumando um charuto,
de paletó abotoado, e ainda com a gravata branca que atara na véspera. Quando a
velha aia que o criara abriu a porta, voltou a cabeça interrogativamente,
quebrando o fio da ideia que o preocupava.
—Quer alguma coisa, Brígida!
Esperando vê-lo na cama, morto
talvez, em cumprimento da profecia, estacou indecisa entre a satisfação de
encontrar vivo, e a curiosidade do motivo que aquela hora, 10 da manhã, o tinha
ainda levantado. Carlos repetiu a pergunta, e quando ela lhe explicou a causa
da sua aflição, interrompeu-a com um sorriso afetuoso.
—Não se enganou talvez a
profecia, tia Brígida. Não morro eu, mas vende-se esta casa, hoje, em praça. O
Roque teve razão mais uma vez.
—Então sempre é certo! Olhe,
menino, ou eu me engano muito, ou aqui anda mais alguma pouca vergonha do tal
senhor que o ano passado comprou as Torreiras, e que, quando aqui veio entrou
na capela de chapéu na cabeça. Enfim já nada estranho. Desde que, puseram os
frades fora dos seus conventos não admira que ponham os fidalgos fora das suas
casas. E o menino que tenciona fazer?
—Ninguém me põe fora, Brígida. A
casa é vendida como foram vendidas as Torreiras e o resto, para pagar as minhas
dividas, e as deixadas por... Você sabe muito bem que quando meu pai morreu...
—Sei muito bem, sei. Seu pai
acreditou que se podia fazer dum marquês um negociante como se faz agora de um
negociante um marquês. Deus lhe perdoe que as suas intenções eram boas, assim
fossem os que o rodeavam. Mas o que passou está passado. E o menino que
tenciona fazer? — interrogou de novo dissimulando a custo a grande parte que o
seu coração tomava na resolução de Carlos. O beiço tapetado de abundante buço
tremia ligeiramente, o mirrado peito atravessado por um lenço branco arfava
ofegante, e atrás dos vidros dos óculos fixos os olhos traduziam interrogações
ansiosos. Carlos demorava a resposta com receio de desgostar a pobre velha a
quem queria sinceramente.
—O que conto fazer? Com o que me
resta, que não é muito, dificilmente vivo em Lisboa, onde além disso a família
que tenho, julga poder arrumar-se, como d'antes, ao morgado. Vou lá para fora
consigo, se me quiser acompanhar.
—Peça-me tudo o que quiser sr. D.
Carlos, exclamou ela visivelmente aterrada com a ideia. Exija-me a vida que de
boa vontade lha dou para não ver vender esta casa. Mas ir lá para fora na minha
idade, é atirar comigo á cova. E depois nunca me há de esquecer a desfaçatez
com que aqueles malditos dos franceses, quando estive em Paris com a sr.ª
marquesa me chamavam estrangeira..., a mim uma legitima portuguesa.
—Então mais tarde falaremos,
atalhou Carlos. Se não me engano tem aí o correio, e esquecia-se de mo
entregar.
A velha Brígida entregou-lhe as
cartas, jornais e revistas. E arrastando-se pesarosa, saiu resmungando: Deixar
esta casa nunca! nem á força!
Carlos passou pela vista as
cartas. Entre elas, uma que suspeitou ser de mulher, despertou-lhe a
curiosidade. Numa letra inglesa corrida, como a de todas as senhoras educadas
nas Salesias, o bilhete dizia apenas: «Alguém que se interessa por si, pede-lhe
que suspenda a venda de sua casa durante seis meses.»
Tolice! pensou Carlos. Se não a
suspenderia se pudesse! Se o credito de Silva Matos não excedesse já o valor
pelo qual o antigo palácio lhe fora hipotecado, consentiria que alguém fosse
dormir no quarto em que seu pai morrera, profanar a capela em que sua mãe
rezara, transformar, Deus sabe em quê, as salas onde havia ainda um ar de
grandeza, apesar da avessa fortuna dos últimos cinqüenta anos? Pressentia a má
sorte daquela casa, para si tão querida, construída como era, com frequentes
degraus pelos corredores escuros, exiguidade dos quartos subordinada á
magnificência da bem lançada escadaria, vastidão dos salões. Pela falta de nexo
nos diversos corpos do palácio cujo primitivo plano se adivinhava na disposição
do portão nobre comunicando com um pátio, centro de duas grandiosas azas dos
quais apenas existia a da esquerda, sentia que o futuro possuidor trataria sem
dó a característica incongruência do vetusto edifício.
A ousadia do primitivo projeto
incompleto na execução, as modificações que as sucessivas gerações foram
introduzindo segundo as suas necessidades, caprichos, alternativas de fortuna,
e gosto das épocas, o seu aspecto digno na velhice, triste no quase abandono, o
destino que o esperava, tornavam de fato essa casa a imagem da raça a que
tinham pertencido seus donos; e a sua historia acompanhava nas vicissitudes
daquela família, os esplendores e decadência de uma classe ora forte e
poderosa, ora abatida e arruinada.
Carlos não era como seu avô um
intransigente, nem como seu pai, um crente na transformação da força da classe
a que pertencia pelos modernos processos da industria e da finança. Via
claramente a onda do individualismo que subia submergindo todos os que pela
revelação de um caráter, pela manifestação do talento, ou pelo gênio da intriga
não conseguiam romper. Herdara com o sangue o espírito de raça, e o orgulho que
só pode dar o dever de conservar limpo um nome antigo. Na educação bebera todo
o sentimentalismo pelas ruínas da antiga grandeza, toda a poesia da tradição.
Esse sentimento contudo não fizera dele um misantropo, nem lhe tirara a
flexibilidade do espírito, porque condensara todo o orgulho n'alguns princípios
com os quais não transigia, porque materializara toda a vaga saudade do passado
na posse daquela casa que para ele significava o cofre onde guardamos tudo que
nos resta de uma felicidade que já acabou. Por isso perdê-la era-lhe tão
penoso, como se perdesse de uma vez a sua família, e o seu nome.
E havia uma mulher tão ingênua
que lhe pedia que impedisse a sua venda! Quem se interessaria?...
Duas pancadas na porta do quarto
vieram quebrar-lhe o fio das interrogações.
Abrindo, estacou admirado ao ver
a figura elegante de uma senhora, como uma resposta viva dada ao problema que o
intrigava.
—Nesta casa Matilde? No meu
quarto? exclamou Carlos entre contrariado e confuso com a inesperada visita.
—Parece-me que a nossa intimidade
me dá direito a procurá-lo sem mais avisos, respondeu. Há três dias que o não
vejo. Julguei-o doente, e vim. Incomodou-o?
Foi isto dito com um sorriso tão
cheio de provocações, envolviam-n'o em tanta ternura os olhos azuis que se
abrigavam sob as sobrancelhas desenhadas em negro, como uma aza d'andorinha, a
cabeça enquadrada no veludo cor de chumbo do chapéu inclinava-se tão
graciosamente sobre o ombro direito num gesto d'ave que escuta, no simples
justilho do mesmo veludo as linhas curvas do seu busto ondulavam com tanta
comoção, que não havia preocupação que desculpasse em Carlos um movimento de
impaciência ou contrariedade.
A viveza do olhar de Matilde tão
discutido nas salas, tão aclamado pelos homens a quem o contraste com o
encrespado cabelo negro seduzia, nunca o fascinara nem lhe penetrara no
coração. Mas a feminilidade que envolvia aquele corpo soberbamente modelado
numa atmosfera em que ninguém respirava impunemente, invadira-lhe as veias como
um filtro agitador de todo o seu sangue. E a incondicionalidade com que se lhe
entregara a encantadora viuvinha, sem exigir dele um juramento, sem quase
reclamar direitos como quem concede uma volta de valsa, a alegria com que o seu
riso leve e o seu espírito levíssimo tinha o segredo de perfumar os capítulos
ligeiros daquele romance nunca interrompido por uma lagrima de despeito, ou
escurecido por uma cena de ciúme, enchera-o de reconhecimento e dera-lhe do
amor, a ele que nunca o conhecera, a ideia com que o definiu Chamfort—L'echange de deux fantaisies, le
contact de deux epidermes.
—Mas que imprudência! continuou
ele pegando-lhe na mão, já despida da luva, e em que brilhava uma chuva de
diamantes e safiras encastoando os torneados dedos. Vir aqui a esta hora! Que
assunto para as línguas do mundo!
—E com a minha carruagem á porta
— acentuou ela. Preocupa-me tão pouco a opinião da sociedade a meu respeito que
não lhe sacrifico um único capricho. Alem de que, o mundo não é má pessoa;
ralha muito na ausência mas na presença sorri com tão bom modo, que se lhe
perdoa a intriga a que é forçado por falta de assunto.
E com a vista curiosa corria todo
o quarto, interessando-se pelas panóplias que enfeitavam as paredes,
perguntando os nomes dos autores das espingardas de caça que se enfeixavam nos
cabides e das quais ensaiava a pontaria sem embaraço, desprendendo as facas de
mato para lhes examinar os lavores. Fumava nos cachimbos turcos, segurando com
as mãos ambas os compridos tubos, envolvia-se na pesada manta alentejana
companheira das caçadas, traçando-a sobre o ombro com um gesto aciganado,
tirava o seu chapéu para, diante do espelho, ajeitar com um sorriso gaiato um
chapéu de feltro enfeitado com uma pena de perdiz, contente por se saturar da
vida de Carlos, por surpreender a sua intimidade.
Sobre o largo buffete servindo de secretaria,
inclinou-se com curiosidade, deixando ver com o dobrar gracioso do corpo, os
dois pés e o prolongar das botas acima do calcanhar. As duas linhas do busto
descaiam tão suavemente pelos ombros, e formavam desde os braços á cintura um
tão obtuso V, de cuja vértice saíam as curvas das ancas triunfantes, que pé
ante pé Carlos aproximara-se, e fazendo das duas mãos um cintilho, dispunha-se
a embrenhar o seu bigode no emaranhado frouxel da apetitosa nuca, quando a
vista incidiu no olhar severo do retrato de sua mãe, que na parede fronteira
parecia franzir um doloroso sorriso cheio de censuras. Enquanto as mãos
paralisadas desprendiam a cinta, que apertavam, outra boca se voltava como um
ímã vermelho em busca do beijo perdido. Diante porém da expressão do olhar de
Carlos, Matilde corou levemente e perguntou irrefletida:
—É sua mãe!
—É — respondeu secamente.
Ela então com a vaga intuição do
que se passara no espírito de Carlos, referiu-lhe que duas vezes naquela manhã
aparecera já um ponto negro no céu, até aí tão limpo da sua felicidade. Quando
entrara uma velha, a quem pediu que lhe indicasse o quarto dele, olhara-a com
mal dissimulado desprezo. Pensara então que se o seu coração não tivesse voado
tão levianamente á teia dourada em que se embaraçou, talvez hoje pudesse entrar
naquela casa pela braço dele com o seu nome. Sentia agora bem que nem um dos beijos
que dele recebia podia ser trocado diante daquele retrato. Muito embora! Nunca
se arrependeria porque lhes devia as horas mais completas da sua vida... Aquela
casa porém dava-lhe infelicidade.
—Será enguiço, superstição,
pressentimento. Será! E acrescentou: Diga-me. Quer muito a este velho casarão?
—Não sabe como lhe quero? Com que
intenção veio então hoje aqui? Com que fim me escreveu esta carta?
E apresentou-lhe o bilhete que
recebera.
Pelo espanto da encantadora
viúva, pelo véu de tristeza que lhe passou na cara, desfazendo as covas que o
habito do riso lhe cavara nas faces, pelo morder dos beiços mais de molde para
caricias de amor do que para ímpetos de despeito, Carlos compreendeu a
imprudência que cometera mostrando aquela carta.
—Nem a letra me conhece já! disse
Matilde com tristeza. E com a emoção de uma ideia súbita: — Pois bem, imagine
que fui eu que lhe escrevi essa carta e conceda-me o enorme prazer de lhe
evitar um desgosto. A minha fortuna...
—Por Deus não continue,
interrompeu Carlos tornando-se pálido. Avalio a generosidade do seu
oferecimento imprudente, mas peço-lhe que me evite o dissabor de recusar uma
esmola. Escrito por mão anônima esse bilhete vai esquecido para o cesto dos
papeis velhos. Mas se eu a escutasse, a si, Matilde, sem um protesto, desceria
no seu conceito, desceria no meu, dava direito á sociedade a que trocasse o
nome que tenho por outro, que a literatura francesa consagrou para resumir todo
o desprezo por uma classe. Estimaria que amanhã alguém apontando-me com o dedo
me chamasse: Monsieur Alphonse?
Enquanto Carlos passeava de um
extremo ao outro do quarto, Matilde deixou-se cair numa cadeira, e com a cabeça
encostada á mão esquerda, e os dedos internados no cabelo negro por entre o
qual os anéis coruscavam brilhantes, disse vagarosamente, separando as
palavras, como se falasse a si mesma:
—Um dia toma-se de assalto o
coração de uma mulher que o não defende... e o orgulho lisonjeia-se. Aceita-se
dessa mulher... o que para ela é ainda mais valioso que o próprio coração... e
o amor próprio não se revolta. Com o pretexto de que essa mulher tem umas mãos
de princesa cobrem-se-lhe os dedos de joias.. e a isso não se chama uma esmola.
Mas se ela, consultando só o próprio sentimento, mostra desejo de com a sua
fortuna, aquilo que menos preza no mundo, evitar um desgosto a quem mais
sinceramente estremece, então o orgulho convencional revolta-se por tão grande
atrevimento, e não se hesita num feroz movimento de egoísmo em atirar a essa
mulher com o epíteto pouco decoroso de...
Carlos tentou calmá-la. A própria
agitação, porém, causada pela excitação da noite passada em claro, pela
preocupação que o absorvia, pela dificuldade de moderar aquela fantasia
feminina, onde um primeiro grão d'areia começava talvez a formar a montanha do
ciúme, dava as suas palavras na intenção conciliadoras o tom decidido de
recusas terminantes.
—É ponto decidido, concluiu ele.
Antes porém de terminarmos de vez a conversa sobre este assunto deixe-me
contar-lhe uma historia. Conhece talvez a ameaça profética de um de meus avós
acerca do fim de minha família.
A um sinal afirmativo continuou:
—Quando eu era pequeno um santo
capelão obrigava-me a ler o velho testamento. Ha naquele livro, o livro dos
Juízes, e apontava para um grosso in-folio apertado entre outros na estante de
carvalho, um herói em cuja vida, como na minha, aparecem um leão e uma mulher.
Um dia que Sansão seguia o seu caminho, matou o leão feroz que ameaçava
devorá-lo. Poucos dias mais tarde da goela escancarada d'esse animal extraía um
doce favo de mel. No banquete de suas núpcias apresentou o seguinte enigma aos
moços filisteus que o rodeavam: «Da ferocidade tirei o alimento, da fortaleza a
doçura. Dou 30 túnicas a quem isto decifrar.» Ao sétimo dia as lagrimas de sua
mulher tinham-lhe arrancado o segredo. Ele então cheio do espírito do Senhor caiu
sobre Ascalão e matou trinta homens, cujas túnicas foram entregues aos filisteus.
Mais tarde adormecendo no regaço
de Dalila achou-se ao acordar tonsurado, fraco, desprezível, caído nas mãos dos
seus inimigos. Eterna lição para aqueles que se deixam embalar e adormecer ao
som enervante da voz de uma mulher ainda a mais sinceramente dedicada! Não
trouxe esta historia para lhe fazer a afronta de a comparar á lendária sereia
do forte e ingênuo nazareno. Mas aproximando os dois casos prefiro tirar da goela
do leão rompente a força para vencer, do que entregar-me ao riso dos filisteus
de Gaza acorrentado pelas mãos de uma mulher adoráveis e adoradas, e em vez de
traiçoeiras como as da pérfida do vale de Sorec, generosas e boas como as suas.
E segurando-lhe ambas deu-lhe um prolongado beijo na testa pensativa, e nos
olhos onde as lágrimas começavam a tremer.
Sem querer, inconscientemente comovia-o
o sentimento que encontrara onde até então apenas supunha capacidade para o
prazer.
Matilde retirou as mãos, desviou
a cabeça, e com um sorriso triste:
—Também conheço a historia de
Sansão. E que diferença! Sempre que a lia, nada me impressionava tanto como a
grandeza do amor daquele homem. Achava-o tão nobre adormecendo nos joelhos de
Dalila cuja traição conhecia, indiferente á miséria que o esperava, e
adorando-a apesar de tudo!... que me pareciam bem pequenos os que calculam até
que ponto as leis sociais lhe permitem que chegue o coração. Adeus! Oxalá que a
mão que escreveu esta carta (e atirou com o papel amarrotado sobre a mesa) não
lhe esmague mais do que a minha o seu orgulho. E saiu apressada, sem esperar
que Carlos a acompanhasse.
Ouviu-se o bater das ferraduras
dos cavalos sobre a calçada do pátio, e o rodar da carruagem afastando-se pela
estreita rua das Escolas Gerais.
Minutos depois, das janelas do
seu quarto voltado para ao ocidente, Carlos viu passar lá em baixo, junto ao edifício
monótono e triste do Terreiro do Trigo, a vitória puxada a trote largo. Pelos
passeios os que voltavam a cabeça para ver aquela mulher formosa, passar, como
levada num triunfo de riqueza e de bom gosto, não suspeitavam o doloroso
confrangimento do seu coração, a tempestade do seu pequenino e amoroso cérebro.
II
Ao jantar que nesse dia deram os
condes de Ponte Nova, Carlos ficou colocado entre uma senhora velha, parenta próxima
de um ministro, e a filha única do banqueiro Silva Matos, que pela sua beleza,
e principalmente pela importância do dote provável, era chamada a sorte grande,
quando passava pelo Chiado ao lado de sua mãe num landeau, aberto como uma melancia madura.
Por indicação da dona da casa,
sublinhada por um sorriso intencional, dera-lhe o braço para a conduzir. Na sua
frente, entre duas largas corbelhas de prata lavrada, de onde emergiam
montanhas enormes de flores silvestres, avistava o perfil risonho de Matilde
conversando com um francês que não conhecia, e que estava achando profundamente
antipático, e quase insolente na intimidade que afetava no dialogo.
Tratou de indagar da sua vizinha
da esquerda quem ele seria.
—Provavelmente um estrangeiro,
respondeu a velha.
A inteligência e perspicácia que
a resposta revelava inclinou-o para a direita, dirigindo a mesma pergunta.
—É um engenheiro francês, sócio
de meu pai na empresa de um cabo transatlântico, explicou-lhe a filha do
banqueiro, corando desde a orla do decote á raiz dos cabelos de um louro
cendrado.
Carlos reparou então na extraordinária
correção daquela beleza que lembrava vagamente os retratos das patrícias
venezianas, na frescura da sua pele, na suavidade do olhar escuro e aveludado,
na expressão serena e meiga tão em harmonia com a voz de contralto, funda,
arrastada, caridosa... Involuntariamente, com um pensamento malicioso, comparou
a distinção daquela rapariga com a fisionomia vulgar do banqueiro, gordo e de
testa pequena, beiço superior rapado, maçãs de rosto proeminentes, com uns
pequenos olhos vivos onde aparecia um lampejo de penetração, aguçada pela faina
constante do manejo de capitais. Procurou depois com a vista, em procura de uma
afinidade, a mãe, doce criatura insignificante, silenciosa e passiva, cujo
pequeno dote nas mãos habilidosas do marido tinha sido a primeira semente da
grande fortuna. E voltando de novo a olhar a sua vizinha, tão superiormente
bela, com o seu ar original de altivez rendida, pensou:
—E é capaz de ser inteligente.
De fato na conversa era atraente,
interessante, sem pretensões nem laivos de erudição de convento dos Oiseaux,
onde lhe contou que estivera dois anos, depois de sair das Salésias, e onde,
sem o conhecer, falava muito a seu respeito com uma prima dele que ali estava a
educar.
A atitude do francês cortou a
conversa, despertando de novo a atenção de Carlos. Matilde pegara distraidamente
num dos ramos de violetas, que, por sobre a fina toalha adamascada em extenso
cordão, circundavam as trabalhadas serpentinas, os cristais reluzentes, as
acasteladas pirâmides de frutas temporãs, o perrexil e conservas em custosos
covilhetes da Índia, e o soberbo centro, uma ninfa surgindo vencedora das
ondas, e sustentando com um braço sobre a cabeça uma larga salva de cristal da
Bohemia.
Enquanto a apetitosa viúva
aninhava as violetas entre o seio, e as rendas negras do vestido, o francês
curvava-se, abaixando a voz num quase segredo equivocamente madrigalesco, que
pareceu a Carlos tê-la contrariado. Conteve a custo uma frase que castigasse o
atrevimento. Lembrou-se porém que nenhum direito podia ter sobre os atos de Matilde,
e entre os dedos nervosos sentiu-se estalar a casca de uma noz.
Entretanto a conversa generalizava-se,
incidindo sobre a febre que se apoderara da Europa pelas coisas d'Àfrica. O
engenheiro, que percorrera uma grande parte da costa ocidental, falava com entusiasmo
na perspectiva brilhante das empresas européias, exploradoras das riquezas
escondidas no misterioso continente.
—Ali está, disse uma senhora
referindo-se a Carlos, quem não se deslumbra com a vida das roças, com a poesia
das mucamas, nem com as côrtes requintadas dos régulos e dos sovas.
—Peço perdão, minha senhora,
atalhou ele, para mim a África é hoje o único sport tentador de um europeu. As caçadas, as corridas, as próprias
touradas perderam todo o seu encanto. A civilização aperfeiçoou tanto as
espingardas de precisão que não ha meio de errar um inocente faisão, um
inofensivo veado, nem se afronta o menor perigo em atacar um javali; apurou de
tal modo as raças corredoras que dentro em pouco todos os cavalos correrão
igual numero de metros em igual numero de segundos; e finalmente estragou de
todo as touradas desde que minusculizou o M dos Marialvas adjetivando a palavra
e reduzindo-a a sinônimo de faia. A Índia transformada pelos ingleses em mágica
do Alhambra, e banalizada pelos romances de Mery não encerra o mais pequenino mistério,
nem, como no tempo d'El-Rei D. Manuel e de nossos avós, nos pode enriquecer com
a pimenta, o cravo, a canela, o açafrão e o almíscar. A África, só a África nos
resta. E logo que os paquetes da carreira tenham um cozinheiro suportável penso
em fazer as malas, pôr na cabeça o capacete de feltro, e untar os fechos da
minha carabina.
Maria a filha do banqueiro que o
escutara atenta, perguntou-lhe com um leve tom de ironia:
—E leva consigo a velha Brígida?
—Como sabe, interrogou Carlos a
meia voz, que entre as relíquias do passado, que me pertencem, existe essa
preciosa criatura?
—Não lhe disse já que houve um
tempo em que falei muito de si!
—De modo que, sem eu o saber, a
minha humilde pessoa ocupava a imaginação das duas mais belas educandas de um convento
de Paris?!
—Que em pouco mais tinham que
pensar do que em Telêmaco e as suas aventuras, respondeu ela sorrindo, em
quanto destacava uma a uma, com as mãos muito brancas, as películas de uma
tangerina.
Mas a verdade é que o adorava,
apesar daquela aparente tranquilidade, do seu ar de estatua insensível, da
serenidade do seu porte de rainha coroada pela estriga loira de uma roca de
fada, o seu negro olhar enigmático a que uma ligeira miopia dava o sabor
irritante de um problema irresolvido começava a intrigar Carlos, quando acabado
o jantar a conduzia pelo braço. Voltando da sala, onde a deixou, sentiu no
ombro a pesada mão do banqueiro que lhe dizia:
—Interesso-me muito por V. Ex.ª.
Carlos surpreendido pelo prólogo
ex-abrupto inclinou levemente a cabeça num gesto de fria polidez.
Silva Matos bebendo vagarosamente
o café cominou: Já me interessava por seu pai a quem muitas vezes tive ocasião
de o mostrar. Infelizmente porem ele não aproveitou as ocasiões nem os
conselhos que lhe dei. V. Ex.ª é um rapaz novo, tem diante de si um futuro
brilhante, pode, querendo, tomar uma posição eminente e adquirir grandes
cabedais, o que, acredite-me, é a mola mais poderosa para a vida na sociedade
em que vivemos. Para isso porem é necessário não se deixar levar por falsos
orgulhos, aceitar o mutuo auxilio, sem o qual nada se faz, admitir as
concessões de favores, indispensáveis em todo o negocio. Isolado é quase impossível
conseguir-se alguma coisa. Soube ontem por minha filha que V. Ex.ª tinha um
grande desgosto em desfazer-se da sua casa. Resolvi desde logo impedir que na
praça tivesse comprador, e com efeito não foi vendida, porque desejava falar
consigo a tal respeito. Porque não me procurou? É verdade que eu tencionava
adquiri-la para a habitar, mas tudo se poderia harmonizar, porque com palavras
é que a gente se entende. No grande campo das transações a confiança publica e
o favor dos governos representam um valioso capital. Ora V. Ex.ª tem direito a
um lugar na câmara dos Pares, tem relações, pode ter influencia, e a sua
reputação de severidade dá-lhe a confiança dos que temem comprometer-se. Todos
estes elementos são aproveitáveis, e podem concorrer para assegurar o êxito das
mais arriscadas operações. O grande segredo na industria e na finança que,
havendo esperteza devem andar sempre nas mesmas mãos, é a união. Juntas — as
nossas forças podem em pouco tempo acumular milhões e da associação podemos
fazer uma família (e prolongou intencionalmente esta ultima frase); separados
a — sua casa tem de voltar á praça brevemente, e eu não sei se encontrarei
associado com quem tanto simpatize.
Carlos, que, durante o confuso
arrazoado do banqueiro mordera o charuto visivelmente impaciente, e irritado
com o sentido que adivinhava naquelas palavras, com os dedos nas cavas do colete,
as pernas abertas em compasso, e os sobrolhos reunidos num vértice,
perguntou-lhe num tom decidido:
—Acabou?
E a um gesto afirmativo
acrescentou:
—O contrato que o sr. Silva Malos
acaba de propor-me, não tem no Código Civil o nome de associação com que
erradamente o batizou, chama-se um contrato de compra e venda. Neste caso um
outro código que segundo vejo desconhece, o que o torna irresponsável, ensina a
repelir as propostas insolentes e atrevidas.
Tome no sentido em que quiser as
minhas palavras, mas veja nelas a recusa terminante de me deixar despojar da
dignidade, como infelizmente me vejo obrigado a abandonar tudo quanto me resta.
E voltando-lhe as costas entrou
na sala enquanto o banqueiro pondo a xícara do café sobre o mármore de um tremo,
encolhia os ombros num gesto de quem tira de si a responsabilidade de um suicídio
e abanava a cabeça, com o beiço inferior estendido murmurando baixinho: É tolo.
Carlos pela força do habito
sentou-se num a cadeira junto de Matilde e só depois de aí estar, lembrando-se
da cena de manhã, ia levantar-se pedindo-lhe perdão, quando ela adivinhando a
intenção lhe disse:
—Fique, porque temos que falar.
Contou-lhe então que saindo de casa dele resolvera, levada de um ímpeto de ciúme,
descobrir quem escrevera aquela carta, que dera lugar a ouvir a condenação
cruel de todo o seu passado amor. Falando, as suas palavras revelavam quanta
paixão verdadeira se tinha escondido, e ainda agora existia sobre a frívola aparência
de um capricho passageiro; quanto sofrera desde essa manhã.
Agora porem que o caso lhe fizera
descobrir a mão que, inconscientemente quebrara o fio doirado da sua leviana existência,
essa mesma mão lhe indicaria o caminho da única vingança possível, embora nesta
empresa esmagasse de vez o coração. Neste momento, dizia ela, uns olhos negros
que o envolvem numa atmosfera de adoração estão-me silenciosamente revelando as
torturas porque nesta ocasião passam, e que eu próprio por meu mal conheço tão
bem? A diferença é que eles podem olhar, para o futuro com o direito que lhes
dá a inocência, e a legitimidade do seu sentimento, e os meus só podem ver no
passado a condenação de todas as esperanças, e afastam-se com horror do isolamento
futuro a que me condenei.
Um conselho de quem lhe quer
muito...— continuou ela. Alguém, que não eu, pode talvez dar-lhe a felicidade
completa, deixe que o braço que ainda ha poucos minutos se encostava ao seu,
nele se ampare para toda a sua vida. Ela é boa segundo todos dizem, bonita como
ninguém, tem no espírito suficientes recursos para fazer esquecer os vícios
d'origem...
—Fala-me de Maria, a filha de
Silva Matos e afirma-me que foi ela quem esta manhã me escreveu aquela absurda
carta. Talvez! Obedeceu as ordens do pai que acaba de oferecer-me a filha, e
algumas centenas de contos, em troca do meu voto na câmara dos pares, e de não
sei que influencia, que imagina eu tenho. Não queira medir o coração dos outros
pelo seu que é generoso e bom. Não utilize em favorecer as ambições de um argentário
e os caprichos de uma pretensiosa, o sacrifício que faz, e que eu aceito,
porque não posso com dignidade evitá-lo.
Daí a momentos saía, seguindo a
pé pelas ruas tortuosas, estreitas e úmidas, abobadadas com roupa estendida,
desde a véspera, em cordéis esticados nas pontas de pequenos paus, que se
fincavam nos peitoris das janelas. A velha Alfama dormia tranquila e silenciosa
como nas noites em que era acordada pelas danças, trebelhos e folgares do
folião D. Pedro I, ou pelos rugidos e ameaças populares dos sequazes de Álvaro
Paes contra a bela Leonor Teles.
Apenas de alguma janela mal
fechada saíam as últimas notas do fado repenicadas na guitarra por fadista
estremunhado, em quanto nos cafés, á espera da madrugada, vultos dormiam de
bruços sobre o mármore das mesas.
E Carlos, com as mãos escondidas
nas algibeiras do paletó, caminhava pensando na brutalidade da sorte que o
perseguia. Com todas as qualidades que podem tornar um homem distinto, útil a
si e aos outros, ele, ligado de pés e mãos, não podia dar um passo que não
parecesse o de um humilde solicitador, não podia fazer um gesto que não se assemelhasse
ao de estender a mão a uma esmola. E até se duas mulheres, belas, novas e
ricas, tentavam arrancá-lo do caminho a que era impelido, achava-se na dura
necessidade de as repelir quase brutalmente para não parecer que se alugava aos
caprichos da amante, ou vendia o seu nome á filha do banqueiro. Era contudo bem
a custo que desviava de si a generosa viúva tão deliciosamente apaixonada, e á
qual ele sentia agora que o ligavam laços bem difíceis de desfazer, era com um
ligeiro remorso que se recordava, de ter acusado, quase sem fundamento, de
cumplicidade com seu Pai, Maria, a dona dos tristes olhos pretos. E para quê,
todos os sacrifícios? Valeria a pena tanta isenção? Cedendo, teria a riqueza, o
amor, a consideração publica, todos os caminhos abertos para a gloria, para o
prazer, para a vida brilhante; resistindo, esperava-o o obscuro e ignorado
destino dos que tem que trabalhar para viver. E qual a compensação?
Parou um instante como a procurar
a formula do sentimento que o agitava. Passados minutos, bateu com o pé no chão
com um gesto enérgico, e terminando o monologo mental que trazia exclamou: A
estima de mim mesmo, com todos os diabos! E continuou silencioso.
Quando chegou a casa, e abriu a
janela para a varanda, vinha rompendo o dia. Aos seus pés, na frente, para a direita,
e para a esquerda, caía em cascata até o rio pela encosta abaixo a casaria do
velho bairro, alternando as largas manchas escuras dos telhados, com as
brancuras do alvejar da cal. Ao longe, por detrás da linha tortuosa das
montanhas da Outra Banda, o sol nascendo vinha tocar oblíquo na superfície das águas,
que acordavam num arrepio, encrespadas pelo nordeste. O pontal de Cacilhas,
como a quilha dum grande navio ali naufragado, rasgava a corrente suave da maré
que baixava. As faluas, moscas negras pousadas no azul pardacento do rio
dormiam ainda, indiferentes ao dia que subia, puxando, impelidas pela corrente,
as cadeias que as seguravam.
Dir-se-ia que todas as embarcações
ancoradas, esquadra fantástica iluminada pela luz dúbia da madrugada, eram
impelidas pela força da água descendente para as bandas da barra, escondida á
direita pelo perfil anguloso da montanha. E o espírito de Carlos acompanhava-as
naquela derrota ideal.
O mesmo caminho tinham levado
todos os seus avós! Por ali tinham seguido nas galés que iam á conquista do
Algarb sarraceno; por aquela estrada á gloriosa tomada de Ceuta e de Tanger, e
na esquadra que foi bloquear Sevilha, com o neto do genovês Pessagna. Por sobre
aquelas águas tinham seguido nas naus que buscavam a esquiva Atlântida, e os
encantados domínios do Prestes João. Lá de baixo, do Restelo, um dos seus
partira nas naus que em busca da Índia dobraram o Cabo da Boa Esperança, outro
na brilhante armada que ia atirar, levada na fantasia da sublime criança, a
vida dos últimos portugueses da Renascença ás adustas areias de Alcacer Kibir.
As fustas, galeões, bastardas, caraças e caravelas que, ou limpando as costas
de Portugal dos atrevidos mouros, ou indo conquistar Ormuz, Goa, Malaca,
implantavam o domínio português no oriente, tinham levado alguns dos seus que
ilustrando o nome de sua família o ligavam á historia da humanidade. O destino
já agora impelia-o também por aquela estrada úmida á misteriosa e indecisa empresa
de salvar varonilmente o seu nome da voragem em que ameaçava submergir-se!
III
O antigo palácio dos Silvas, fora
transformado numa banal e cômoda habitação moderna.
Apenas lhe conservaram as linhas
gerais do edifício, e o brasão da porta de entrada, por coincidir com um dos
apelidos do novo proprietário o nome da família que o possuíra.
Durante meses, o martelo dos
carpinteiros ecoou pelos corredores ainda ha pouco silenciosos, e
desabitados, a trolha dos pedreiros rebocou as fendas abertas pelo tempo nas
velhas paredes, e a dos estocadores substituído pelos complicados lavores do
gesso, a pintura um pouco desbotada das características folhagens miudinhas nas
paredes dos camarins, das alegorias mitológicas no teto da casa de jantar.
Caíram os altos roda-pés carunchosos, foram arrancados os azulejos da escada,
e as sedas empalidecidas da sala do trono.
Tudo remoçado como velha matrona
que se prepara para segundo casamento!
Rasgaram-se janelas, abateram-se
antigas divisões, fez-se luz nos recantos obscuros, cortaram-se os degraus
imuteis, introduziu-se nas paredes a teia miudamente ramificada dos
encanamentos modernos, envidraçou-se a varanda, estucou-se de cores garridas
desde a vasta cozinha lajeada até á sala do baile.
Cada manhã, quando o exercito de
operários entrava para o trabalho, era recebido no patamar da escada por uma
velha que, ora em monossílabos agressivos e frases hostis, ora em suplicas
humildes e lamentações chorosas tentava impedir-lhes a obra devastadora!
Era Brígida, a criada que
defendia aquela casa, d'onde nem as instancias de Carlos, nem as ordens do novo
proprietário, nem as obras que tudo revolucionavam, nem as chufas dos operários
tinham conseguido expulsá-la. Agarrara-se com a tenacidade do molusco ao casco
daquele velho navio a que a prendiam as raízes do coração, e a poderosíssima
força do habito de mais de sessenta anos.
A grande catástrofe da saída de
Carlos, seguida pelo suplicio diário das transformações sucessivas que
preparavam a profanação final — invasão do palácio pelos novos proprietários — tinham-lhe
pouco a pouco esmorecido o fraco e cansado cérebro que conservava apenas viva,
forte, implacável a ideia da defesa daquele domínio, da resistência ás
inovações.
Convencido da inutilidade dos
esforços para a fazer sair por bem, Silva Malos consentira que a velhota se
acomodasse, nos quartos do pátio; e os operários habituaram-se tanto aos seus impropérios
que se alguma manhã tardava em aparecer iam provocá-la á porta dos seus
aposentos.
—Falta-nos cá hoje a maluca! E
cada um ia procurá-la, desafiando-a com grosseiras invectivas.
Ela então tentava correr sobre
eles com um sarrafo na mão tremula, insultando-os. Sentindo-se porém fraca,
abatida, impotente, encostava-se a uma parede numa convulsão de choro, e as
lagrimas caíam uma a uma sobre o lenço branco do peito. E era tão simpática e
comovedora a sua dor que todos se afastavam envergonhados, quase contritos, diante
dessa velha de cabelo branco.
Expulsos os legítimos senhores
daquela casa, ficara ela, a encarnação da domesticidade dedicada que pelos hábitos
tradicionais era considerada família e que, como tal, se julgava incumbida por
uma força superior de guardar intacto o sacrário das suas afeições, esperando
talvez, que um poder sobrenatural lhe trouxesse das longínquas terras para onde
lhe anunciava que partia em breve, Carlos, rico, poderoso, constituindo uma família
que perpetuasse a sua nobreza pelo mais afastado futuro, deixando-a a ela então
morrer descansada na serena e consoladora convicção de ter sido o gênio tutelar
da casa de seus amos!
Cada dia porém ia vendo fugir-lhe
mais e mais a possibilidade da realização desse sonho. Já quase desconhecia a
nova divisão interna, e visto pelo exterior o palácio remoçado e casquilho
dava-lhe o sentimento de viuvez de um pai que, depois de longa ausência,
encontra pervertida, impudica, a filha que deixara inocente e pura.
Por vezes quase chegara a ter ódio
áquelas paredes que numa passividade cobarde se deixavam assim violar com desonra,
sem ao menos usarem do seu privilegio de velhice para protestarem esboroando-se
num cataclismo.
Estranhara também de começo que
Carlos tentasse levá-la dali, e lamentava que, ficando, ele não a acompanhasse
naquela heróica defesa. Enternecendo-se, porém, dizia consigo: Coitado,
falta-lhe coragem para assistir a esta desgraça! De fato, Carlos nunca mais
entrara naquele bairro, nunca mais falara na sua casa desde que, havia meses,
ela fora vendida ou antes encontrada no credito de Silva Malos.
Limpo de dividas e das relações
que elas trazem começou a pensar praticamente no problema da sua vida até então
apenas esboçado na fantasia cavalheirosa.
Ir para a África!
Hoje porém que já não se podia
alistar nas falanges aguerridas que iam conquistar Tanger, Argila e Azamor,
acabadas as guerras de raça e de religião e a força expansiva que levava
Portugal ao Império de Marrocos, extinto o espírito militar que conservava
aquelas praças para exercício e tirocínio da cavalaria fidalga, só lhe restavam
três caminhos — o da administração, — o do comércio, — o da ciência.
Ser empregado, ser mercador, ou
ser explorador.
Lembrou-se então de ter lido
algures, que ao sul de Mossamedes nos territórios de Owampo as areias brilhavam
com fulgores metálicos, e que nas margens do N'gami um negro tinha achado uma
pequena pedra com água superior á dos brilhantes do Cabo.
A sua educação permitia-lhe
estudar aquele problema, que podia significar um futuro desassombrado, e a
imaginação impelia-o áquela empresa vaga e indefinida, ao encontro do desconhecido,
eterno recurso dos espíritos doentes, no continente misterioso onde, se não
achasse a fortuna, teria ao menos a morte, longe do cenário triste dos
primeiros episódios da sua vida.
Ao coração que inoportunamente
começara a sentir quando ele já irremediavelmente perdera a esperança de poder
harmonizar a execução dos seus projeto com a posse de Matilde, imporia
silencio, encerrando-o no cofre de energia de que necessitava para caminhar sem
hesitações.
Ela, por seu lado, prosseguindo
na heróica abnegação, empregara todos os meios de o convencer que, sem abjeção
nem desdouro, podia e devia casar com Maria, que na realidade o adorava.
—Olhe, Matilde, disse-lhe ele uma
vez, se algum dia a fortuna deixar de ser avessa para mim, só uma mulher me
poderá dar felicidade, e então irei pedir-lhe, a si, que, para epilogo do
começado romance juntemos os nossos destinos, embora as cabeças branquejem,
anunciadoras de velhice.
Bem no intimo esta resposta de
Carlos lisonjeava-a, acariciava o bocadinho de egoísmo que acompanha sempre os
mais sublimes sacrifícios.
E sem desistir da sua resolução heróica,
sem permitir a mínima concessão ás exigências do seu coração de mulher, sentia contudo
mais fácil a conformidade, achava mais suave a viuvez a que se condenara.
A sua vibrátil feminilidade assim
como lhe tornava airosos os movimentos, e lhe imprimia graça nas maneiras,
transformava todas as suas ideias em sentimento, obrigando-a a pensar pelo
coração.
Em Maria, pelo contrario, a
paixão revelava-se pela ideia fixa. A sua natureza impetuosa e ardente coloria
com os tons vivos do entusiasmo, exagerava com a desproporção de uma lente
convexa qualquer sentimento. O amor nela, era a vibração intensa de um cérebro
exaltado, a excitação agitadora de todo o sistema nervoso.
O que nas criaturas docemente
amorosas como Matilde dá o êxtase; o abandono de todo o ser a uma aspiração
vaga, a dedicação submissa, e a deliciosa abstenção da própria individualidade,
nas almas violentas produz a preocupação continua, a monomania do amor, o delirium tremens da paixão, o desejo
ideal da posse absoluta, um estado de hipnotismo constante. É o amor cerebral
das que adoram, e das que matam. A sua sensualidade racional é mais terrível,
mais indomável, que a das histéricas. Pode dominar-se uma paixão; ninguém tem
em si força própria para submeter uma alucinação.
Maria adorava Carlos assim.
A sua fantasia imaginava-o aquele
conjunto de qualidades romanescas, de generosas loucuras, de audácias heróicas
que formam a ave azul de todos os dezoito anos ainda os mais dados a prosa chã
da vida. E de fato, Carlos, belo na sua despreocupada elegância, valente,
nobre, inteligente, um quase nada altivo, realizava, quando aparência na
sociedade cercado pela estima dos homens, aureolado pelos segredos surpreendidos
em todas as bocas femininas, o tipo ideal de molde para infiltrar no organismo
da exaltada criança aquele absorvente amor.
O Pai apesar de pouco perspicaz
em matéria de coração, descobrira essa tendência, e no empenho de a casar,
comprometera desastradamente o êxito da missão delicada. Desde esse dia, Maria,
conhecedora das relações entre seu Pai e Carlos, o que mais agravava o estado
do seu espírito, perdida a campanha de salvar a casa que o banqueiro resolvera
comprar, e a esperança de a habitar noiva e feliz, entrou a deixar-se apossar
da ideia de que a invasão daquele palácio e a sua renovação (quase um sacrilégio)
lhe trazia a infelicidade de toda a vida, a ruína de todas as aspirações.
O banqueiro por seu lado
supersticioso, como todo o homem de negocio, começou a ligar á posse daquela
casa a ideia de prosperidade nas vastas empresas. Lisonjeava também a sua
crescente ambição de nobreza o fato de habitar o antigo solar de uma família
ilustre.
Tardava-lhe portanto entrar para
lá, sem pensar que cada martelada, que apressava a conclusão das obras, era
como dada no coração de sua filha, que quando lançava os grandes olhos negros
ao retrato de Carlos julgava surpreender um sorriso irônico escarnecedor,
sobranceiro, e chamar-lhe com desprezo a filha do agiota!
Foi portanto como se a obrigassem
a cometer um desacato na piedosa capela onde fizera a primeira comunhão, como
se fizessem um feixe das suas crenças e a levassem a pisá-las profanando-as,
que possuída de um pavor quase sagrado, Maria se apeou numa tarde, do luxuoso landeau á porta da nova habitação.
Pela grande escadaria, agora
tapetada, os espelhos refletiam a sua figura elegante mostrando-lhe a cara
pálida e as olheiras profundas do criminoso que entra com remorso na casa da vítima.
Lá em cima no espaçoso salão da entrada iluminado fortemente pelas fachos de gás
que guerreiros de bronze seguravam em atitudes teatrais, os criados de librés vistosas aguardavam a entrada.
O largo reposteiro do fundo foi
afastado por uma mão débil e mirrada e por detrás, com o olhar odiento, os
punhos cerrados, os cantos da boca espumosos, apareceu a velha Brígida curvada
em atitude agressiva como hiena surpreendida e atacada no covil.
—Cheguei a tempo de receber os
nobres senhores desta casa! Entrem vilões para o palácio que roubaram!
E numa catadupa de palavras explosiva
a cólera, o ódio, a indignação da pobre alucinada. O banqueiro um pouco interdito
e visivelmente contrariado pela inesperada cena, deu ordem a um criado para que
a levassem para o quarto, em quanto não era recolhida a uma casa de saúde.
Maria no entretanto tentara
serená-la, mas Brígida como se a mordesse uma víbora, recuou um passo
exclamando com violência:
—Não te chegues alma peçonhenta!
Excomungada! Que quiseste ter palácio, ter salas, ter capela e obrigaste teu Pai
a expulsar daqui o sr. D. Carlos.
A filha do banqueiro ferida pela
injusta lancetada das ultimas palavras fugiu para o seu quarto. Abriu a janela
para a mesma varanda d'onde meses antes Carlos encontrara a resolução do seu
problema, e correndo com a vista a toalha negra do rio, salpicada de pontos
luminosos que se refletiam na água prolongados, tremeluzentes, fixou os olhos
febris num, que imaginava pertencer ao vapor onde n'essa tarde ele embarcara e
onde na seguinte manhã seria levado ao desconhecido destino!
Largas horas permaneceu assim.
Tarde, já bem tarde como se acordasse de um pesadelo doloroso, e tivesse achado
uma solução trabalhosamente procurada murmurou repetidas vezes com uma voz
gutural e seca:
—Só o fogo purifica as grandes
profanações! E repisando como numa ladainha aquelas palavras, dirigiu-se
vagarosa e solene ao seu pequeno leito, cujo cortinado branco, ligeiro,
virginal parecia prometer abrigar sonhos perfumados, proteger consciências serenas,
asilar esperanças felizes!
E com a mão firme e resoluta,
pegou no castiçal, e chegou a chama ao cortinado branco, ligeiro, virginal, que
parecia prometer abrigar sonhos perfumados, consciências serenas, e esperanças
felizes!
As labaredas subindo rápidas,
comunicaram-se á tela pintada do teto onde uma alegre chorea de pequeninos e
risonhos amores se enlaçava graciosa, como para inspirar sonhos perfumados,
proteger consciências serenas, sugerir esperanças felizes!
O fogo alastrou rapidamente.
Dentro em pouco ardia o palácio.
Ao mesmo tempo outro incêndio se ateava
no angulo oposto do vasto edifício, nos quartos habitados pela velha Brígida,
que assim terminava como um bravo a defesa da praça assaltada.
Aqueles dois corações tão
separados tinham-se encontrado no mesmo sentimento; as duas loucuras na mesma
ideia!
Na tolda do paquete Carlos passeava
desde a tarde contrariado com o acaso que o colocara em frente da encosta sobre
a qual se estende a Alfama. O sol poente iluminava com uns clarões alaranjados
a cantaria cinzenta da igreja de Santa Engrácia, triste como um monumento
tumular, enorme, misterioso. O colossal edifício de S. Vicente de Fora com as
suas torres á frente, semelhante a uma grande locomotiva caminhando para o sul
pesava abrutada sobre a casaria miudinha. Á esquerda o Limoeiro, amarelo, cor
d'óca, contrastava com a elegância severa das torres da Sé. E no centro do
semi-circulo formado pelos quatro edifícios, a sua casa, como um alfinete
garrido pregado num plastron usado
atraía-lhe inevitavelmente o olhar.
Não querendo porém abandonar-se a
um sentimentalismo piegas, resistia á tentação.
As sombras da noite cada vez mais
espessas, iam esfumando as linhas, apagando as cores, transformando o monte
numa informe massa negra salpicada de luzes débeis.
De súbito porém um clarão vivo
rompeu triunfante e logo outro bem perto.
Então a fantástica luz de um incêndio,
iluminou sinistramente o amplo teatro refletindo-se no mar e bafejando com o hálito
do fogo o céu esbraseado. Nuvens de fumo enoveladas saíam das janelas tomando
formas estranhas.
E Carlos julgou ver distintamente
desenhar-se no ar o dorso e cabeça colossal de um leão rompente, de cuja boca
saía uma língua de fogo. Seria o cumprimento da profecia do Roque? Seria um presságio
favorável nascido na goela do leão?
Pouco depois de chegar a África
um jornal de Lisboa deu-lhe conta minuciosa do incêndio. A noticia terminava
relatando, que nos trabalhos de rescaldo, se encontrara no desabamento de uma
parede da capela, grande soma de bons dobrões de El-Rei D. João V.
Uma fortuna para o novo proprietário!
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Nota:
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Nota:
Conde de Sabugosa: “Na Goela do
Leão” (1882)
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