
O DUPLO
— Temos,
então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?
— Quem te
disse ?
— Laura.
Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim,
meneando com a cabeça,
desabafou contrariando:
— Laura...
Laura faz mal em andar contando essa história por aí.
— Que
tem?
— Ora!
Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se
deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua
conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe
sentir que não me agradavam os seus remoques
e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes
paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas.
Não ando
a pregar doutrinas: não sou sectário, não freqüento sessões nem leio, sequer,
as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da
morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que
não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os
Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais
"termos" não dou um passo — nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás
acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram
meus pais, que foram os meus
iniciadores, aí ficarei até morrer.
Contei a
Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de
palestra nos salões que freqüenta. O resultado disso é o que se está dando
comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e,
se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo
pelos cabelos.
— Mas,
afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do
sobrenatural. Os fatos ai estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os
explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente,
manifestam-se visível, sensivelmente.
Os
cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com
que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos
achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou
melhor — Mistério.
Mas já é
muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares
de outro mundo, há alguma coisa que... Ninguém sabe o que é.
A porta
mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como
átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações
para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade...?
— Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais
angustiosos da minha vida.
Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria
Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges
sobre coisas da vida.
O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos
milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós
e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está
parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas.
Enfim,
deixando
o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os
jornais.
O meu
bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um
obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham.
O bonde
partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a
olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os
olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como
deve acontecer com os aviadores que vêem,
de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o
alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes.
Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal — a mesma confusão, o mesmo
empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu
amigo, vi...!
—
Viste...?
— A mim
mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que
dá costas à plataforma. Era eu, eu! Como refletido em um espelho, e certo
estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos
voltaram-se encarando-se de má sombra.
Pasmado,
sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições,
na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:
Se tal se
dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta
deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava,
no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E,
em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não
fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos.
Desamparado,
o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da
minha morte, o reconhecimento do meu cadáver
pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa.
Que
angústia, meu amigo! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me,
então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a
minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava,
raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios
podiam ser ainda restos de energia d'alma que me houvessem ficado nas células,
como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado.
Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se
me fosse congelando, a
começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.
Fiz um
esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando
os braços, pus-me de pé.
A matrona
levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que
me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me
do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra
quadrada de ufano com entono de desafio.
Mas que
me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao
procurar com os olhos o meu outro "eu", não o vi mais.
Teria
descido? Não! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de
viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao
fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.
E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo
de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.
Eis o meu
caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura,
a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.
E crença
que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou
a um dos que conduziam o esquife: “Quem era o morto?" E logo lhe foi
respondido:
— É D.
Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e
outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto
era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi
num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? A mim! Como explicas
tal coisa?
— Essas
coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos,
elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.
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Nota:
Coelho Neto - Contos avulsos (data não identificada)
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Nota:
Coelho Neto - Contos avulsos (data não identificada)
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